Na esfera da Declaração número Quarenta e sete / Cento e trinta e três da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas ( ONU ) sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado ( DONUPTPCDF ) ( * vide nota de rodapé ), foi adotada, no âmbito da Organização dos Estados Americanos ( OEA ), em Nove de junho de Mil novecentos e noventa e quatro, em Belém do Pará, a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas ( CIDFP ). A CIDFP é um marco na prevenção, punição e eliminação do desaparecimento forçado, tendo inspirado dispositivos do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional ( ERTPI ) ( *2 vide nota de rodapé ), de Mil novecentos e noventa e oito, e da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado ( CIPTPCDF ) ( *3 vide nota de rodapé ), de Dois mil e sete.
A CIDFP entrou em vigor em Vinte e oito de março de Mil novecentos e noventa e seis e, em Dois mil e vinte, conta com Quinze Estados Partes ( *4 vide nota de rodapé ), o que é pouco se for levada em consideração a prática de desaparecimento forçado generalizada em diversos países nos tempos das ditaduras latino-americanas.
No âmbito nacional, a assinatura brasileira ocorreu em Onze de junho de Mil novecentos e noventa e quatro; a aprovação pelo Congresso nacional ( CN ) ocorreu por meio do Decreto Legislativo ( DL ) número Cento e vinte e sete, em Onze de abril de Dois mil e onze; a ratificação brasileira ocorreu em três de fevereiro de Dois mil e quatorze e a promulgação da CIDFP deu-se com o Decreto número Oito mil setecentos e sessenta e seis, de Onze de maio de Dois mil e dezesseis.
O preâmbulo da CIDFP reconhece que a prática sistemática de desaparecimentos forçados constitui crime contra a humanidade, e os principais objetivos da CIDFP são resumidos no Artigo Primeiro:
1) a proibição à prática, permissão ou tolerância ao desaparecimento forçado em qualquer situação, incluindo as excepcionais ocasiões de Estado de emergência e de suspensão de garantias individuais;
2) a punição interna dos autores, cúmplices e partícipes do crime ou da tentativa de crime de desaparecimento forçado;
3) a cooperação para prevenção, punição e erradicação do desaparecimento forçado; e
4) a adoção de medidas internas, de cunho administrativo, legislativo e judicial, para adimplir os compromissos assumidos na CIDFP.
Para a CIDFP ( Artigo Segundo ), o desaparecimento forçado consiste:
1) na privação da liberdade de um ou mais indivíduos ( a qual pode ocorrer de várias formas ), realizada
2) por agentes estatais ou pessoas autorizadas ou apoiadas pelo Estado, associada
3) á negativa ao reconhecimento da privação de liberdade ou ao fornecimento de informações sobre os indivíduos detidos, de modo a impedir o exercício dos direitos e garantias processuais inerentes á detenção.
Assim, o núcleo deste delito consiste nesses "três elementos":
1) privação de liberdade,
2) envolvimento direto ou indireto de agentes públicos e
3) negativa do reconhecimento da detenção.
Os Artigos Terceiro e Quarto tratam da obrigação estatal em adotar medidas legislativas para a tipificação do delito de desaparecimento forçado de pessoas no âmbito dos ordenamentos jurídicos internos. O Artigo Terceiro prevê que, na pendência da localização do paradeiro da vítima, o crime seja considerado como de natureza continuada ou permanente, bem como que a pena a ser imposta ao delito corresponda a sua extrema gravidade. Ainda, é facultado aos Estados o estabelecimento de circunstâncias atenuantes nos casos em que os partícipes do crime contribuam para o seu esclarecimento ou forneçam informações sobre o destino das vítimas.
O Artigo Quarto dispõe, incialmente, que os atos constitutivos do desaparecimento forçado de pessoas serão considerados delitos em qualquer Estado parte. Após, determina as hipóteses de jurisdição dos Estados Partes nos casos de desaparecimento forçado. Cabe ao Estado Parte adotar medidas para estabelecer a sua jurisdição quando:
1) os atos forem perpetrados no âmbito da sua jurisdição;
2) os agentes forem nacionais do Estado;
3) as vítimas forem nacionais do Estado, se apropriado; e
4) o agente estiver em seu território e o Estado não o extradite.
Assim, não obstante a CIDFP estipule que o desaparecimento forçado seja reconhecido como crime em todos os Estados Partes, não é permitido o exercício da jurisdição estatal ou das funções reservadas às autoridades internas em outro Estado Parte.
O Artigo Quinto, por seu turno, disciplina a extradição dos agentes que praticarem o crime de desaparecimento forçado, proibindo-se que este seja considerado como delito político. Para os Estados que subordinam a extradição em todos os tratados extradicionais ( existentes e futuros ) celebrados entre os Estados Partes. Nos casos de inexistência de tratado de extradição entre os Estados Partes, a CIDFP pode ser utilizada como substrato jurídico para a solicitação de extradição relativa ao delito de desaparecimento forçado. Nos Estados nos quais os tratados extradicionais não são exigidos, o desaparecimento forçado será reconhecido como crime passível de extradição, sujeita ás condições estabelecidas pelo Estado requerido. Em ambas as situações, a extradição obedecerá a Constituição e nas leis internas do Estado requerido.
De forma complementar, o Artigo Sexto estabelece, caso negada a extradição, o dever de submissão dos casos às autoridades competentes internas ( aut dedere aut judicare - ou extradita ou julga ). Destarte, investigação e persecução penal devem ser processadas em conformidade com a legislação interna, como se o delito tivesse sido praticado no âmbito da jurisdição do Estado, com a comunicação da decisão ao Estado que originalmente solicitou a extradição.
Os Artigos Sétimo e Oitavo trazem cláusulas específicas para evitar a impunidade dos agentes responsáveis pelo desaparecimento forçado, ao estabelecerem:
1) a sua imprescritibilidade,
2) a impossibilidade de escusa pela obediência hierárquica e
3) a proibição de julgamento por jurisdição especial.
A imprescritibilidade ( da pretensão punitiva e da pretensão executória ) do crime de desaparecimento forçado está expressa no Artigo Sétimo, o qual, contudo, excetua dessa regra os Estados que possuam normas de caráter fundamental que vedem a imprescritibilidade ( o que não é o caso do Brasil ), hipótese em que o prazo prescricional para o desaparecimento forçado deve ser equiparado àquele estipulado para o delito mais grave previsto na legislação interna. Nesse ponto, a CIDFP é distinta da CIPTPCDF, que não parte da imprescritibilidade, mas ordena que a prescrição seja compatível com a natureza grave do crime ( Artigo Oitavo ).
Ademais, tampouco é possível contornar o dever de punir os responsáveis pelo desaparecimento forçado pelo reconhecimento da obediência hierárquica como excludente de ilicitude. O Artigo Oitavo da CIDFP é claro ao estipular, igualmente, que toda pessoa que receber ordens para perpetrar o delito em questão possui o direito e o dever de não obedecê-las. Para implementar a previsão contida nesse dispositivo, os Estados devem garantir que seja fornecida a formação pessoal e a educação adequada relativamente ao delito de desaparecimento forçado aos funcionários públicos encarregados da aplicação da lei penal.
Na mesma linha, para evitar a impunidade, o Artigo Nono fixa a jurisdição comum para o julgamento dos agentes responsáveis pela prática do crime de desaparecimento forçado, excluindo expressamente a possibilidade de incidência de qualquer jurisdição especial. Assim, não apenas é impossível a alegação de que o crime de desaparecimento forçado fora cometido no exercício de funções militares, bem como não são admitidas imunidades, privilégios e dispensas especiais nas ações penais que investiguem a prática deste crime ( ressalvadas, apenas, as disposições da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas ).
O Artigo Décimo reforça a proibição total à prática do desaparecimento forçado, independentemente do contexto sociopolítico interno. Instabilidade política, emergência pública, Estado ou ameaça de guerra, ou qualquer outra circunstância interna não podem ser utilizadas como justificativa para autorizar o desaparecimento foçado de pessoas. Nessas circunstâncias excepcionais, deve ser garantido o acesso a procedimentos judiciais expeditos e eficazes para determinar a autoridade responsável pela detenção e o paradeiro e condições das pessoas detidas. Para combater o desaparecimento forçado, é garantida às autoridades judiciárias que tiverem indícios da prática deste crime a livre entrada em todos os centros de detenção, inclusive àqueles sujeitos à jurisdição militar.
Já o Artigo Onze traz as garantias mínimas relacionadas à detenção. São deveres do Estado relacionados á privação de liberdade:
1) manter os detentos em locais oficialmente reconhecidos;
2) conduzir os detentos, sem demora e nos ditames da legislação interna, á autoridade judiciária competente; e
3) manter registros oficiais atualizados sobre detidos, com consulta disponível para os familiares e advogado do detido, bem como para os juízes, autoridades e outras pessoas com interesse legítimo.
Reconhecendo o caráter perene do desaparecimento forçado, bem como o seu impacto negativo sobre as entidades familiares, o Artigo Doze estipula a cooperação recíproca entre os Estados Partes para a localização, identificação e restituição de menores que tenham sido transportados para ou retidos em outros Estados como consequência do desaparecimento forçado de seus pais ou tutores.
A importância do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos ( DH ) ( *5 vide nota de rodapé ) para prevenir e punir o crime de desaparecimento forçado está estabelecida nos Artigos treze e Quatorze. O Artigo treze dispõe que a tramitação de petições relativas a tal crime na Comissão IDH segue o rito estabelecido na CADH, bem como nos estatutos e regulamentos da própria Comissão IDH e da Corte IDH, com menção especial à possibilidade de adoção de medidas cautelares.
Paralelamente aos procedimentos perante o sistema interamericano, o Artigo Quatorze estabelece que, quando do recebimento de petição relatando desaparecimento forçado, a Comissão IDH requisitará ao Estado pertinente informação, em caráter urgente e confidencial, sobre o paradeiro e outras circunstâncias relevantes da pessoa supostamente desaparecida. Tal pedido de informação, contudo, não tem o condão de prejudicar a admissibilidade da petição apresentada á Comissão IDH.
O Artigo Quinze traz limitações á aplicabilidade da CIDFP, ao prever que ela não restringe tratados bilaterais ou multilaterais assinados pelos Estados partes, bem como não se aplica aos conflitos armados disciplinados pelas Convenções de Genebra de Mil novecentos e quarenta e nove sobre a proteção dos feridos, doentes e náufragos das forças armadas, e a prisioneiros civis em tempos de guerra.
Os Artigos Dezesseis a Vinte e dois trazem as condições para que um Estado se obrigue à CIDFP. Os Artigos Dezesseis e Dezessete preveem que a CIDFP está aberta para assinaturas por todos os Estados-membros da OEA, ficando sujeita à ratificação, a ser depositada na Secretaria-Geral da OEA. A adesão da CIDFP por outros Estados, mediante depósito do referido instrumento também na Secretaria Geral, é facultada no Artigo Dezoito.
A apresentação de reservas à CIDFP está autorizada no Artigo Dezenove, as quais podem ser realizadas na sua aprovação, assinatura, ratificação o adesão, desde que sejam específica e compatíveis com os objetivos da CIDFP. O Artigo Vinte determinou a entrada em vigor da CIDFP no plano internacional com o depósito de Segundo instrumento de ratificação ( IR ) e, para os Estados que a ratificarem posteriormente, a sua entrada em vigor no trigésimo dia a partir da data do depósito da sua ratificação.
Finalmente, o Artigo Vinte e um admite a possibilidade de denúncia à CIDFP, com a cessação de efeitos para o Estado denunciam após um ano contado do depósito do instrumento de denúncia ( ID ) na Secretaria Geral da OEA. Já o Artigo Vinte e dois prevê que o depósito do Instrumento original da CIDFP, nas línguas oficiais, será realizado também na Secretaria Geral da OEA, sendo enviada cópia autenticada do texto para o Secretariado da ONU. Ainda, haverá assinatura, ratificação, adesão, reserva ou denúncia á CIDFP, os Estados-membros da OEA serão comunicados.
Quadro sinótico
CIDFP
Objetivos:
1) proibição à prática permissão ou tolerância ao desaparecimento forçado em qualquer situação;
2) punição interna dos autores, cúmplices e partícipes do crime de desaparecimento forçado;
3) cooperação para prevenção, punição e erradicação do desaparecimento forçado;
4) adoção de medidas internas, de cunho administrativo, legislativo e judicial, para prevenir, punir e erradicar o desaparecimento forçado e
5) Reforça o dever dos Estados de prevenir, punir e eliminar os desaparecimentos forçados, com o reconhecimento de que a sua prática sistemática constitui crime contra a humanidade.
Definição de desaparecimento forçado: Restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada o agravada pelo ambiente econômico e social.
Mecanismo de monitoramento:
1) Adoção dos mesmos procedimentos previstos na CADH, permitindo a Comissão IDH e á Corte IDH zelarem pela observância da CIDFP.
2) novidade: ao receber a petição sobre desaparecimento forçado, a Comissão IDH pode pedir informações urgentes e em sigilo ao Estado tido como infrator, sem que isso interfira no processamento regular da petição em si.
P.S.:
Notas de rodapé:
*A Declaração da ONU sobre a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/05/direitos-humanos-convencao-protege_20.html .
*2 O Estatuto de Roma é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-um-tribunal.html .
*3 A Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas Contra Desaparecimento Forçado é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/05/direitos-humanos-convencao-protege_20.html .
*4 Disponível em: < http://www.oas.org/juridico/spanish/firmas/a-60.html >. Acesso em Quinze de setembro de Dois mil e vinte.
*5 O sistema interamericano regional de proteção dos Direitos Humanos ( DH ) é melhor introduzido em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-o-sistema-americano.html .
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