segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Direitos Humanos: a vinculação internacional versus interna dos tratados

A Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) não contém capítulo específico sobre a relação do direito interno com o direito internacional: consequentemente, os dispositivos sobre a hierarquia dos tratados estão espalhados no texto da CF - 88. Sem ingressar ainda na temática dos tratados de Direitos Humanos ( DH ), os dispositivos tradicionalmente levados em consideração na análise da hierarquia dos tratados em geral são os Artigos:


1) Cento e dois, Inciso Terceiro, Alínea b;

2) Cento e cinco, Inciso Terceiro, Alínea a e

3) Quarenta e sete.


O Artigo Cento e dois, Inciso terceiro, alínea b, dispõe que cabe recurso extraordinário ( RE ) no caso de ter a decisão impugnada considerado inconstitucional "lei ou tratado". Já o Artigo Cento e cinco, Inciso Terceiro, Alínea a estabelece que caber recurso especial ( REsp ) ao Superior Tribunal de Justiça ( STJ ) quando a decisão impugnada houver violado ou negado vigência a "lei ou tratado". Finalmente, o Artigo Quarenta e sete estabelece que, no caso da espécie normativa não possuir quórum de aprovação especificado no texto da CF - 88, esse será de maioria simples, o que ocorre, por exemplo, com o decreto legislativo ( DL ) e com lei ordinária federal.


Esses três dispositivos constitucionais são os que normalmente são invocados para a determinação da hierarquia dos tratados internacionais comum perante o direito brasileiro.


Analisando esses três dispositivos em conjunto, o Supremo Tribunal Federal ( STF ) concluiu que os tratados internacionais incorporados possuem, em geral, o estatuto normativo interno equivalente ao da lei ordinária federal. Essa é a hierarquia ordinária ou comum dos tratados em geral: equivalência á lei ordinária federal. A justificativa é simples. Em primeiro lugar:, o Artigo Cento e dois, Inciso Terceiro, Alínea b, determina que o estatuto dos tratados é infraconstitucional, pois permite o controle de constitucionalidade dos tratados. Em segundo lugar, os Artigos Quarenta e sete e Cento e cinco, Inciso Terceiro, Alínea a, cuidam dos tratados da mesma maneira que as lei em dois momentos: no quórum de aprovação ( maioria simples para alei ordinária e para o DL ) e na definição de um mesmo recurso ( REsp ) para a impugnação de decisões inferiores que os contrariarem ou lhes negarem vigência.


Esse estatuto equivalente á lei ordinária foi consagrado, ainda antes da CF - 88, no RE número Oitenta mil e quatro, de Mil novecentos e setenta e sete / Sergipe - relator para o acórdão Ministro Cunha Peixoto, julgado em Primeiro de junho de Mil novecentos e setenta e sete, publicado no Diário da Justiça da União de Vinte e nove de Dezembro de Mil novecentos e setenta e sete ). Após o ano de Mil novecentos e oitenta e oito, o STF possui precedente claro sobre a hierarquia dos tratados internacionais: a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade ( ADI ) número Mil quatrocentos e oitenta. Nesse precedente, o STF estabeleceu, de início, que os tratados se subordinam à CF - 88, pois no "sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da CF - 88. Em consequência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno ( * vide nota de rodapé ), transgredirem, formal ou materialmente, o texto da CF - 88" ( ADI Mil quatrocentos e oitenta - Medida Cautelar ( MC ), relator Ministro Celso de Mello, julgada em Quatro de setembro de Mil novecentos e noventa e sete, Plenário, Diário da Justiça de Dezoito de maio de Dois mil e um ).


Para o STF, fundado na supremacia da CF - 88, no conflito entre qualquer norma constitucional ( *2 vide nota de rodapé ) e um tratado em geral ( exceto as situações especiais ), a CF - 88 sempre prevalecerá, devendo ser a incompatibilidade exposta nos controles difusos e concentrado de constitucionalidade. Os diplomas normativos a serem atacados serão o DL e o Decreto de Promulgação, pois seriam os atos domésticos que levaram á recepção das normas convencionais ao sistema de direito positivo interno.


Nas palavras do Ministro Celso de Mello: "Supremacia da CF - 88 sobre todos os tratados internacionais. O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro, está sujeito à observância das limitações jurídicas emergentes do texto constitucional. Os trtados celebrados pelo Brasil estão subordinados à autoridade normativa da CF - 88. Nenhum valor jurídico terá o tratado internacional, que, incorporado ao sistema de direito positivo interno, transgredir, formal ou materialmente, o texto da CF  -88. Precedentes" ( Mandado de Injunção número Setecentos e setenta e dois - Agravo Regimental, relator Ministro Celso de Mello, julgado em Vinte e quatro de outubro de Dois mil e sete, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte de março de Dois mil e nove ).


Podem gerar a inconstitucionalidade de um tratado:


1) transgressões formais e orgânicas à CF - 88, fruto da violação de iter ( *3 vide nota de rodapé ) de formação ( por ter o Presidente excedido suas atribuições, por exemplo e

2) as transgressões de fundo, no caso de texto de tratado colidir com o conteúdo da CF - 88.


A solução dos conflitos entre lei e tratado, de acordo com o STF, não é resolvida pelo critério hierárquico, mas sim pelo uso alternativo do critério cronológico 9 later in time, o último diploma suspende a eficácia do anterior que lhe for incompatível, ou, no brocardo latino, lex posterior derogat priori  - *4 vide nota de rodapé ) ou, ainda, quando passível, do critério da especialidade.


Em síntese, trata-se de paridade normativa entre tratados comuns e leis ordinárias, o que impõe, na visão do STF:


1) a submissão do tratado internacional ao texto constitucional;

2) a utilização do critério cronológico ou da especialidade na avaliação do conflito entre tratado e lei;

3) tal qual assinalava o voto do Ministro Leitão de Abreu ( RE número Oitenta mil e quatro / Mil novecentos e setenta e sete ), há suspensão de eficácia do texto do tratado e não sua revogação pela lei posterior contrária.


Apesar dos ventos da redemocratização e do apelo da CF - 88 à cooperação internacional ( Artigo Quarto, Inciso Nono ), não houve mudança drástica da orientação do STF quanto á hierarquia normativa dos tratado em geral.


A antiga orientação, consagrada no RE número Oitenta mil e quatro, de Mil novecentos e setenta e sete, foi seguida e atualmente ( até Dois mil e vinte ) os tratados internacionais comuns incorporados internamente são equivalentes à lei ordinária federal. Consequentemente, não há a prevalência automática dos atos internacionais em face da lei ordinária, já que a ocorrência de conflito entre essas normas deveria ser resolvida pela aplicação do critério cronológico ( a normatividade posterior prevalece - later in time ) ou pela aplicação do critério da especialidade.


Futuramente, é possível que, com a ratificação e incorporação interna em Dois mil e nove da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados ( CVDT ), o STF seja influenciado pelo seu Artigo Vinte e sete, que dispõe que nenhum Estado pode invocar dispositivos internos para não cumprir os comandos de um tratado, o que modificaria a paridade normativa hoje existente entre tratado e leis ordinárias.


Quadro sinótico


As normas constitucionais sobre a formação e incorporação de tratados


Terminologia:


1) CF - 88 utiliza terminologia variada para designar os tratados:

a) tratados internacionais,

b) convenção internacional,,

c) atos internacionais,

d) acordos internacionais e

e) compromissos internacionais.

2) Tais termos são sinônimos para a CVDT, que define tratado como: "um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica".


A teoria da junção de vontades


1) União: papel dúplice no Federalismo brasileiro: é ente federado, de igual hierarquia com os demais entes ( Estados, Municípios e Distrito Federal - DF ) e, ainda, representa o Estado Federal nas relações internacionais.

2) CF - 88 exigiu procedimento complexo para a formação da vontade do Brasil no plano internacional, que une a vontade concordante dos Poderes Executivo e do Poder Legislativo no que tange aos tratados internacional.

3) Bases constitucionais:

a) Artigo Oitenta e quatro, Inciso Oitavo ( estabelece competir ao Presidente da República ( PR ) celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional ( CN ) e

b) Artigo Quarenta e nove, Inciso Primeiro ( dispõe que é da competência exclusiva do CN resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional ).

4) Teoria da junção de vontades ou teoria dos atos complexos: para que um tratado internacional seja formado, é necessária a conjunção de vontades do Poder Executivo e do Poder Legislativo.


A hierarquia normativa ordinária ou comum dos tratados


1) Dispositivos constitucionais comumente utilizados para esclarecer o tema da hierarquia dos trtados, ante a ausência de dispositivo expresso sobre a questão:

a) Artigo Cento e dois, Inciso Terceiro, Alínea b: determina que cabe recurso extraordinário no caso de ter a decisão impugnada considerado inconstitucional "lei ou tratado"; assim, considera que o estatuto dos tratados é inconstitucional, pois permite o controle de constitucionalidade dos tratados.

b) Artigo Cento e cinco, Inciso Terceiro, Alínea a: determina que cabe REsp ao STJ quando a decisão impugnada houver violado ou negado vigência a "lei ou tratado"; assim, define o mesmo REsp utilizado para as leis para a impugnação de decisões inferiores que os contrariarem ou lhes negarem vigência.

c) Artigo Quarenta e sete: determina que, no caso de a espécie normativa não possuir quórum de aprovação especificado no texto da CF - 88, esse será de maioria simples; assim, dá tratamento igual a tratados e leis, ao estabelecer o quórum de aprovação ( maioria simples para a lei e para o DL ).

2) Analisando referidos dispositivos em conjunto, o STF concluiu que os tratados internacionais incorporados em geral possuem o estatuto normativo interno equivalente ao da lei ordinária federal.

3) Evolução da jurisprudência:

a) Antes da CF - 88: RE Oitenta mil e quatro de Mil novecentos e setenta e sete: estatuto equivalente à lei ordinária foi consagrado.

b) Após Mil novecentos e oitenta e oito:   precedente sobre a hierarquia comum dos tratados internacionais na ADI-MC Mil quatrocentos e oitenta, o STF:

i) estabeleceu o estatuto inferior à CF - 88, de forma que transgressões formais e de fundo podem gerar a inconstitucionalidade do tratado e

ii) consagrou o estatuto do tratado como equivalente ao da lei ordinária federal, de forma que as soluções de conflitos entre lei e tratado se dão por meio dos critérios cronológico e de especialidade, mas não pelo não hierárquico.

4) A paridade normativa entre tratados em geral e leis ordinárias impõe:

a) a submissão do tratado internacional ao texto constitucional;

b) a utilização do critério cronológico ou da especialidade na avaliação do conflito entre tratado e lei;

c) a suspensão de eficácia do texto do tratado e não sua revogação pela lei posterior contrária.

5) Não houve mudança da orientação do STF quanto à hierarquia normativa dos tratados em geral: atualmente, permanece a orientação de que os tratados internacionais comuns incorporados internamente são equivalentes á lei ordinária federal.


As quatro fases: da formação da vontade à incorporação


As fases que levam á formação da vontade do Brasil em celebrar um tratado, assumindo obrigações perante o Direitos Internacional:

1) A fase da assinatura:

a) É iniciada com as negociações do teor do futuro tratado, que são consideradas atribuição do Chefe do Estado.

b) Com a assinatura, o Estado manifesta sua predisposição em celebrar, no futuro, o texto do tratado.

c) A assinatura, em geral, não vincula o Estado brasileiro, sendo necessário o referendo do CN.

d) É possível a adesão a textos de tratados já existentes, dos quais o Brasil não participou da negociação.

e) Após a assinatura, cabe ao Poder Executivo encaminhar o texto assinado do futuro tratado ao CN, no momento em que julgar oportuno, já que a CF - 88 foi omissa quanto ao prazo.

2) Fase da aprovação congressual ( ou fase do DL )

a) Trâmite da aprovação congressual:

i) PR encaminha mensagem presidencial ao CN, fundamentada, solicitando a aprovação congressual ao texto do futuro tratado, que vai anexado na versão oficial em português. A exposição de motivos ( EM ) é feita pelo MRE.

ii) O trâmite é iniciado pela CD ( iniciativa presidencial ), no rito de aprovação de DL.

- A mensagem presidencial é encaminhada para a CREDN, que prepara o PDC.

- O PDC é apreciado pela CCJ, que analisa a constitucionalidade do texto do futuro tratado.

- CREDN emite parecer sobre a conveniência e oportunidade, bem como outras Comissões temáticas, a depender da matéria do futuro tratado.

- O PDC é remetido ao Plenário da CD, para aprovação por maioria simples, estando presente a maioria absoluta dos membros da CD.

iii) Após a aprovação no Plenário da CD, o PDC é apreciado pelo SF.

- O PDC é encaminhado à CREDN.

- No rito normal, após o parecer da CREDN, o PDC é votado no Plenário. No rito abreviado ( regimental ), o Presidente do SF pode, ouvidas as lideranças, conferir á CREDN a apreciação terminativa do PDC.

- Aprovado o PDC, o Presidente do SF promulga e publica o DL.

- Caso o SF apresente emenda, o PDC retorna para a CD para a apreciação, que a analisará. Rejeitada a emenda pela CD, o PDC segue para o Presidente do SF para promulgação e publicação.

- O texto do tratado internacional é publicado no anexo ao DL no Diário Oficial do CN ( DOCN ).

b) Caso o PDC seja rejeitado na CD ou no SF, há o envio de mensagem ao PR, informando-o do ocorrido.

i) O CN aceita aprovar tratados com emendas, que assumem a forma de "ressalvas". Se dispositivos não forem aprovados pelo CN, ficam ressalvados no DL e PR terá que impor reservas desses dispositivos no momento da ratificação. Se a emenda exigir a modificação de parte do texto do tratado, a nova redação também deve constar do DL. Se o PR não concordar com as ressalvas, sua única opção é n~]ao ratificar os tratados.

3) Fase da ratificação

a) Após a aprovação congressual, querendo o PR, pode em nome do Estado, celebrar o tratado em definitivo.

b) O PR  pode formular reservas, além daquelas que obrigatoriamente lhe foram impostas pelas ressalvas ao texto aprovado pelo CN. A reserva é o ato unilateral pelo qual o Estado, no momento da celebração final, manifesta seu desejo de excluir ou modificar o texto do tratado.

c) Não há necessidade de submeter essas novas reservas ao CN.

d) Não há um prazo no qual o PR deve celebrar em definitivo o tratado.

e) A entrada em vigor depende do texto do próprio tratado. A executoriedade no plano in ternacional é essencial para que o tratado possa ser, coerentemente, exigido no plano interno.


Fase de incorporação do tratado já celebrado pelo Brasil no plano interno ( após a ratificação )


4) Fase do Decreto Presidencial ( ou Decreto de Promulgação )

a) para que a norma válida internacionalmente seja também válida internamente, deve ser editado o Decreto de Promulgação ( também chamado de Decreto Executivo ou Decreto Presidencial ) pelo PR e referendado pelo MRE ( Artigo Oitenta e sete, Inciso Primeiro da CF - 88 ).

b) O Decreto inova a ordem jurídica brasileira, tornando válido o tratado no plano interno.

c) Não há prazo para sua edição, mas, ainda sem sua edição, o Brasil está vinculado internacionalmente, mas não internamente, o que pode ensejar a responsabilização internacional do Estado.    


P.S.:


Notas de rodapé:


* O positivismo nacionalista, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-positivismo.html .


*2 O conflito de direitos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh.html .


*3 iter, itineris: caminho, estrada; jornada, viagem; marcha; direito de passagem; modo, meio, recurso. Dicionário latim - português : termos e expressões / supervisão editorial Jair Lot Vieira - São Paulo : Edipro, Dois mil e dezesseis. 


*4 lex posterior derogat priori: a lei posterior derroga a anterior. Dicionário latim - português : termos e expressões / supervisão editorial Jair Lot Vieira - São Paulo : Edipro, Dois mil e dezesseis.


Mais em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-vinculacao-internacional-versus-interna-dos-tratados

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