sexta-feira, 10 de maio de 2024

Direitos Humanos: o direito indígena - autonomia versus tutela

O regime tutelar foi estabelecido pelo Estatuto do Índio ( Lei número Seis mil e um / Mil novecentos e setenta e três ), que dividiu os indígenas em superadas categorias conforme o grau de incorporação à " comunhão nacional ". Assim, os integrados foram considerados capazes para o exercício de seus direitos e os não integrados ( denominados " isolados " ou " em vias de integração " ) deveriam ser tutelados pela União, através do órgão de assistência ( Fundação Nacional do Índio - FUNAI ) . O Código Civil ( CC ) de Dois mil e dois não repetiu o anterior, não situando o indígena como relativamente incapaz, mas sim previu que a capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial ( Artigo Quarto, Parágrafo Único ) .

Administrador Cláudio Márcio Araújo da Gama ( registrado no Conselho Regional de Administração de Santa Catarina - CRA/SC sob o número Vinte e quatro mil seiscentos e setenta e três ) ( de chapéu ) então Secretário - Geral do Conselho Estadual de Direitos Humanos de SC ( CEDH/SC ) com indígenas em Florianópolis em Dois mil e vinte e dois .


O Estatuto do Índio, em seu Artigo Sétimo, estabeleceu uma tutela individual e coletiva, abrangendo os indígenas não integrados - na terminologia ultrapassada - e suas comunidades . Esse regime especial tutelar civil individual e coletivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) ( * vide nota de rodapé ) e colide, ainda com a Convenção número Cento e sessenta e nove da Organização Internacional do Trabalho ( OIT ) ( de natureza supralegal ).


De início, convém observar que a CF  - 88 determinou que os indígenas, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, devendo o Ministério Público ( MP ) intervir em todos os atos do processo ( Artigos Duzentos e trinta e dois e Cento e vinte e nove, Inciso Quinto ) . Conjugando esse dispositivo ( *2 vide nota de rodapé ) com a igualdade de direitos ( *3 vide nota de rodapé ) prevista no Artigo Quinto, Caput, fica descartada a diminuição da capacidade civil do indígena, consagrando - se, pelo contrário, no pleno exercício dos direitos civis ( *4 vide nota de rodapé ) . Já o Artigo Oito ponto Três da Convenção número Cento e sessenta e nove da OIT é claro ao dispor que não deve impedir o exercício pelos indígenas de todos os direitos os direitos reconhecidos para os membros da comunidade envolvente.


Com isso, a prática dos atos da vida civil pelo indígena independe da manifestação da FUNAI, podendo exercer direitos e contrair obrigações . Nesse sentido, o Projeto de Lei ( PL ) número Dois mil e cinquenta e sete / Mil novecentos e novena e um ( Estatuto dos Povos Indígenas ), ainda em trâmite no Congresso Nacional ( CN ) ( *5 vide nota de rodapé ), trata o indígena como indivíduo com plena capacidade civil, devendo, quando aprovado, ser a " legislação especial " da qual se refere o CC em seu Artigo Quarto, Parágrafo Único .


Não cabe confundir, ainda, a tutela civil ( não recepcionada ) do indígena com a intervenção de natureza de direito público da FUNAI, que visa a proteger as comunidades indígenas, sob o manto do princípio da proteção e respeito à diversidade cultural, independentemente de como elas interagem com a sociedade envolvente ( *6 vide nota de rodapé ) .


Há ainda, contudo, diversos precedentes judiciais que sustentam ter sido recepcionada a tutela civil, como, por exemplo: " Não se pode tratar os silvícolas como absolutamente capazes e e exigir o discernimento próprio de um indivíduo civilizado, inclusive o CC de Dois mil e dois estabelece no Parágrafo Único do Artigo Quarto que a legislação especial regulará acerca da capacidade dos indígenas " ( Tribunal Regional Federal da Terceira Região - TRF3, Apelação Cível Dois mil ponto Sessenta mil ponto Vinte e cinco mil trezentos e vinte e nove, Relator Desembargador Federal André Nabarrete, julgada em Oito de julho de Dois mil e oito ) .


Há também, por outro lado, o entendimento na jurisprudência de que não foi recepcionado o regime tutelar do Estatuto do Índio, uma vez que, após a CF - 88 e a Convenção número Cento e sessenta e nove da OIT, o regime de tutela dos povos indígenas transformou - se em um regime de inclusão e promoção de Direitos Humanos ( DH ), com respeito à autonomia e ao autogoverno. Nesse sentido: " Não mais compete ao Estado, através da FUNAI, responder pelos atos das populações autóctones e administrar - lhe os bens, tal como ocorria enquanto vigente o regime tutelar previsto no CC de Mil novecentos e dezesseis e no Estatuto do Índio ( Lei número Seis mil e um / Mil novecentos e setenta e três ) . A partir do reconhecimento da capacidade civil e postulatória dos silvícolas, em Mil novecentos e oitenta e oito, remanesce ao Estado o dever de proteção das comunidades indígenas  e de seus bens ( à semelhança do que ocorre com os idosos  que, a despeito de serem dotados de capacidade civil, gozam de proteção especial do Poder Público ) " ( Apelação Cível Número Duzentos trilhões Cento e setenta e dois bilhões Dez milhões quarenta e três mil e oitenta, Relator Desembargador Edgard Antônio Lippmann Júnior, TRF4, Diário da Justiça de Vinte e quatro de novembro de Dois mil e oito ) .


Finalmente, a tutela pode gerar responsabilização da FUNAI por atos ilícitos praticados pelos indígenas . Há precedentes nos dois sentidos, tanto para isentar a FUNAI quanto para determinar sua responsabilidade . No sentido de responsabilizar a FUNAI, cite - se: " A FUNAI é responsável, na qualidade de tutora, pelos danos materiais e morais praticados a terceiros por silvícolas não integrados à comunhão nacional . Caso em que componentes de comunidade silvícola agrediram ( lesionando gravemente ) motorista que atropelou criança indígena em rodovia que atravessa aldeamento " ( Apelação Cível número Mil novecentos e noventa e oito ponto Quatro ponto Cento e dois ponto Sessenta e dois mil trezentos e trinta, Relator Brum Vaz, TRF4, Diário da Justiça de Dezessete de janeiro de Dois mil e um ) . 


P.S.:


Notas de rodapé:


* O direito dos indígenas na Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/04/direitos-humanos-o-direito-dos_29.html .


*2 Os princípios e dispositivos constitucionais de matéria indígena, no contexto dos Direitos Humanos, são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/04/direitos-humanos-o-direito-dos_30.html .


*3 O princípio da igualdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/05/direitos-humanos-o-direito-igualdade-e_16.html .


*4 Os direitos civis, no contexto dos Direitos Humanos, são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/04/direitos-humanos-pacto-obriga-estados.html .


*5 Ainda em trâmite após décadas de sua apresentação. Dados disponíveis em < www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=17869 > . Acesso em quinze de setembro de Dois mil e vinte .


*6 Anjos Filho, Rogério Nunes dos. A Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito, o Ministério Público Federal e os direitos dos povos indígenas no Brasil . In: Ministério das Relações Exteriores ( Organizador ) . Textos do Brasil: culturas indígenas. Brasília: MRE - Ministério das Relações Exteriores, Dois mil e doze, Volume Dezenove, Páginas Cento e quarenta e dois a Cento e quarenta e nove .     

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