Em geral, a proporcionalidade ( * vide nota de rodapé ) é utilizada na solução de conflitos de Direitos Humanos ( DH ) ( *2 vide nota de rodapé ) redigidos com termos indeterminados e genéricos. Por isto, a necessidade de um critério que leve a prevalência de um direito em relação a outro no caso concreto.
Por outro lado, a Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e os tratados de DH possuem alguns direitos que são redigidos de forma determinada, tomando em consideração a interação com outros direitos, fixando-se limites. Em relação a tais direitos que já se apresentam redigidos de forma mais precisa, com limites estabelecidos, a dúvida é a seguinte: é possível aplicar o critério de proporcionalidade e ponderar de novo também este direito, mesmo diante do fato de que sua redação originária na CF - 88 já possui regras claras solucionando colisões?
Dois exemplos clarificando o problema:
1) a existência de várias decisões judiciais proibindo a divulgação de notícias, circulação de livros ou vídeos, bem como a realização de peças artísticas diversas por ofensa à intimidade e à vida privada ( *3 vide nota de rodapé ), apesar de a CF - 88 ter proibido expressamente a censura prévia ( *4 vide nota de rodapé ) de qualquer tipo; e
2) a autorização judicial de invasão policial noturna de domicílio, em que pese a CF - 88 ter estabelecido, entre outras condições, para a superação da inviolabilidade domiciliar ( *5 vide nota de rodapé ), que esta seja feira "durante o dia".
No primeiro exemplo, grosso modo, os direitos que incidem sobre a publicação de notícias, vídeos, livros etc. consistem na liberdade de imprensa, expressão e comunicação e ainda no direito à intimidade. A base de ambos os direitos está no Artigo Quinto: o Inciso Nono prevê que é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; o Inciso Décimo ( imediatamente após ) dispôs que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Além disto, a CR - 88 previu expressamente uma "regra de colisão", tendo já ponderado estes direitos ao dispor que a manifestação do pensamento ( *6 vide nota de rodapé ), a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na própria CF - 88 ( Artigo Duzentos e vinte ). Paralelamente, o Artigo Duzentos e vinte, Inciso Primeiro, prevê que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no Artigo Quinto, Inciso Quinto ( "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem" ) e Décimo ( "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" ).
Assim, a "regra de colisão" geral da Constituição na hipótese é a seguinte: a liberdade de expressão e comunicação pode ser exercida, mas seu titular que violar direitos referentes à intimidade, honra, imagem e vida privada de outros responderá pelos danos causados. É a "liberdade com responsabilização posterior": não se admite restrição sob qualquer forma ( Artigo Duzentos e vinte, Caput ), mas responsabiliza-se aquele que abusa.
Porém, os precedentes judiciais pós- CF - 88 caminham no sentido de possibilitar ao Estado-Juiz que interfira previamente e evite o dano à intimidade, vida privada, honra ou imagem. Vários são os casos; um deles, de grande repercussão na mídia, foi a proibição judicial de divulgação de vídeo envolvendo apresentadora de televisão e seu namorado, na praia de Cádiz ( Espanha ) ( *7 vide nota de rodapé ). Outro foi a decisão judicial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios ( TJDFT ) que proibiu o jornal O Estado de São Paulo que publicasse reportagem contendo fatos extraídos de autos criminais cobertos pelo sigilo judicial.
No Supremo Tribunal Federal ( STF ), este tema gerou polêmica. Em Dois mil e nove, o jornal O Estado de São Paulo ingressou com Reclamação no STF sustentando que esta decisão judicial de proibição de divulgação de fatos cobertos por segredo de justiça ( referentes à "Operação Boi Barrica" ) ofendia a liberdade de imprensa. A reclamação não foi conhecida, por maioria, mas dois votos desnudaram o problema envolvendo a colisão de direitos cuja ponderação teria sido realizada pela própria CF - 88. Em primeiro lugar, o Ministro Gilmar Mendes sustentou que o direito à proteção judicial efetiva e inafastabilidade de jurisdição ( Artigo Quinto, Inciso Trinta e cinco ) permitia que um determinado juiz protegesse a intimidade e outros valores constitucionais antes de sua violação pela publicação de determinada matéria. Assim, a responsabilidade "a posteriori" que a CF - 88 estabeleceu não excluiria a possibilidade de se solicitar uma providência judicial inibitória, apta a impedir previamente a realização do dano. Caberia, assim, uma "ponderação de segundo grau", agora perante o Poder Judiciário, abrangendo o direito à intimidade e os demais direitos envolvidos, uma vez que a solução constitucional ( reparação a posteriori ou ulterior ) pode ser insuficiente ( *8 vida nota de rodapé ) para todos os casos. Já Celso de Mello defendeu a aplicação, sem outra ponderação, da regra da responsabilização a posteriori e impossibilidade de qualquer censura, criticando duramente os magistrados que adotam outra postura da seguinte maneira: " ( ... ) A minuta crítica dirige-se a esses magistrados que parecem não ter consciência dos novos tempos que estamos vivendo" ( Voto do Ministro Celso de Mello, Reclamação número Nove mil quatrocentos e vinte e oito, relator Ministro Cezar Peluso, julgada em Dez de dezembro de Dois mil e nove, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e cinco de junho de Dois mil e dez ). Porém, em Dois mil e dezoito, o jornal foi vitorioso, tendo sido reconhecido que a de cisão judicial ( do TJDFT ) havia ofendido a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ( ADPF ) número Cento e trinta, relator Ministro Ayres Britto, na qual se proibiu a realização de qualquer forma de censura prévia. Para o STF, é proibida a censura de publicações jornalísticas, bem como é excepcional qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões. Eventual abuso da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização ( STF, Agravo Regimental no Recurso Extraordinário número Oitocentos e quarenta mil setecentos e dezoito, relator para o acórdão Ministro Edson Fachin, julgado em Dez de setembro de Dois mil e dezoito ).
O segundo exemplo é referente à proteção domiciliar. A CF - 88 estabelece, em seu Artigo Quinto, Inciso Onze, que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. A garantia constitucional ( *9 vide nota de rodapé ) da inviolabilidade domiciliar é abrangente e alcança, de acordo com os precedentes do STF, inclusive escritórios ou similares. Mesmo a administração tributária não pode ingressar, sem a permissão do dono ( invito domino ), em estabelecimentos comerciais ou escritórios de contabilidade, devendo obter previamente ordem judicial adequada. A autoexecutoriedade dos atos administrativos ( privilège du preálable ) subordina-se ao regime jurídico constitucional da inviolabilidade domiciliar ( Habeas Corpus número Noventa e três mil e cinquenta, relator Ministro Celso de Mello, julgado em Dez de junho de Dois mil e oito, Segunda Turma, Diário da Justiça eletrônico, de Primeiro de agosto de Dois mil e oito. Ver também Habeas Corpus número Oitenta e dois mil setecentos e oitenta e oito / Rio de janeiro, relator Ministro Celso de Mello ).
Porém, em inquérito perante o STF, foi autorizado pelo Ministro Cezar Peluso o ingresso de policiais durante a madrugada em escritório de advocacia, para instalação de escuta ambiental. O STF, por maioria, considerou lícita a conduta do Ministro relator, apesar da clara previsão constitucional de que a entrada sem consentimento ( e sem flagrante delito, desastre ou prestar socorro ) só poderia ocorrer por ordem judicial e durante o dia.
Por sua vez, foram votos vencidos os Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Eros Grau, que consideraram a prova ilícita, uma vez que "a invasão do escritório profissional, que é equiparado à casa, no período noturno estaria em confronto com o previsto no Artigo Quinto, Inciso Onze, da CF - 88" ( Inquérito número Dois mil quatrocentos e vinte e quatro, relator Ministro Cezar Peluso, julgado em Vinte e seis de novembro de Dois mil e oito, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e seis de março de Dois mil e dez - ver as citadas passagens dos votos no Informativo número Quinhentos e e vinte e nove, Brasília, de Dezessete a Vinte e um de novembro de Dois mil e oito ).
O voto divergente do Ministro Celso de Mello foi enfático: "O Departamento da Polícia Federal ( DPF ) não podia, ainda que munida de autorização judicial dada por esta Suprema Corte, ingressar, durante a noite, em espaço privado protegido pela cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar ( um escritório de Advocacia ), pois a CF - 88, tratando-se de determinação judicial, somente permite o seu cumprimento "durante o dia", como resulta claro, inequívoco, do que se acha previsto na parte final do Inciso Onze do Artigo Quinto da CF - 88" ( Informativo número Quinhentos e oitenta e quatro, Brasília, de Vinte e seis a Trinta de abril de Dois mil de dez ).
A fundamentação da minoria ( em resumo: a autorização judicial ofendeu gravemente a CF - 88, pois, pois esta exige que a violação do domicílio nestes casos seja "durante o dia" ) é de fácil assimilação, pois consta de dispositivo expresso da CF - 88.
Já a fundamentação dos votos da maioria e, em especial, do Ministro relator, Cezar Peluso, nos aproxima, de novo, da aplicação do princípio da proporcionalidade mesmo na existência de direito redigido de modo preciso e limitado pela própria CF - 88. A intangibilidade dos domicílios durante a noite no mesmo diante de ordem judicial foi ponderada com os demais direitos constitucionais.
De acordo como o que consta no Informativo número Quinhentos e vinte e nove do STF, enfatizou-se que "os interesses e valores jurídicos, que não têm caráter absoluto, representados pela inviolabilidade do domicílio e pelo poder-dever de punir do Estado, devem ser ponderados e conciliados à luz da proporcionalidade quando em conflito prático segundo os princípios da concordância. Não obstante a equiparação legal da oficina de trabalho com o domicílio, julgou-se ser preciso recompor a ratio constitucional e indagar, para efeito de colisão e aplicação do princípio da concordância prática, qual o direito, interesse ou valor jurídico tutelado por esta previsão. Tendo em vista ser tal previsão tendente à tutela da intimidade, da privacidade e da dignidade da pessoa humana, considerou-se ser, no mínimo, duvidosa, a equiparação entre escritório vazio com domicílio scricto sensu, que pressupõe a presença de pessoas que o habitem. De toda forma, concluiu-se que as medidas determinadas foram de todo lícitas por encontrarem suporte normativo explícito e guardarem precisa justificação lógico-jurídica constitucional, já que a restrição consequente não aniquilou o núcleo do direito fundamental e está, segundo os enunciados em que desdobra o princípio da proporcionalidade, amparada na necessidade da promoção de fins legítimos de ordem pública".
Assim, utilizou-se a proporcionalidade e a concordância prática para justificar uma "ponderação de segundo grau", ou seja, apesar de a regra de colisão já ter sido estabelecida pela CF - 88 ( e o constituinte ter ponderado a limitação do direito à justiça e á verdade em face do direito à inviolabilidade domiciliar ) o STF decidiu submeter esta regra ( "durante o dia" ) a uma nova ponderação e, tendo em vista o caso concreto, autorizou a invasão noturna do domicílio, uma vez que o escritório de advocacia estaria a serviço dos criminosos - justamente aproveitando do seu direito à inviolabilidade domiciliar - e a colocação da escuta ambiental seria inviável durante o dia.
Semelhante à ponderação de Segundo Grau está o chamado "duplo controle de proporcionalidade". Trata-se de avaliar se a aplicação de normas que aparentemente não violariam direitos fundamentais poderiam, no caso concreto, resultar em violação de direitos ( *10 vide nota de rodapé ). A doutrina cita, como exemplo, o Caso Lebach na Alemanha, no qual foram discutidos, em concreto, a liberdade de informação e os direitos da personalidade. Em abstrato, não havia alguma ofensa à proporcionalidade pelo exercício do direito á informação por parte de órgão de imprensa, que noticia a prática de crime por determinado indivíduo. Em concreto, o Tribunal Constitucional da Alemanha considerou que a divulgação dos fatos criminosos e da identidade de envolvido em latrocínio rumoroso ( ocorrido no vilarejo de Lebach, no qual quatro soldados, que guardavam um depósito de munição, foram assassinados, com roubo de armas ), em programa de televisão, anos depois, ameaçava, de forma desproporcional, o seu direito ao pleno desenvolvimento da personalidade em um cenário de ressocialização ( *11 vide nota de rodapé ).
Do ponto de vista de Carvalho Ramos ( *12 vide nota de rodapé ), é plenamente possível a ponderação de Segundo grau, uma vez que o Poder Constituinte não conseguiu esgotar a regência expressa de todas as hipóteses de colisão entre os direitos fundamentais. Novas situações sociais surgem, gerando inesperadas colisões de direitos e exigindo ponderação pelo intérprete. Foi o que ocorreu com a "invasão noturna" de escritório de advocacia, autorizada pelo STF, e ainda a interceptação telefônica ordenada por magistrado em processo cível ( a CF - 88 prevê apenas em casos criminais ), aceita pelo Superior Tribunal de Justiça ( STJ ), o que sugere que novos casos de ponderação em situações não previstas pelo Poder Constituinte ocorrerá no futuro.
P.S.:
Notas de rodapé:
* O princípio da proporcionalidade restringindo os Direitos Humanos é melhor detalhado em:
*2 O conflito ou colisão de direitos, delimitando os Direitos Humanos, é melhor detalhado em:
*3 O direito à intimidade e à vida privada, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-44 .
*4 O direito à liberdade de expressão e a vedação da censura prévia, no contexto dos Direitos Humanos, são melhor detalhados em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-39 .
*5 O direito à inviolabilidade do domicílio, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-43 .
*6 O direito à liberdade de manifestação do pensamento, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-24 .
*7 Este caso redundou no bloqueio ( por ordem judicial ) do acesso brasileiro a site mundialmente popular de exibição de vídeos, uma vez que o citado vídeo lá era inserido. Ver mais sobre o caso no Rothemburg, Walter Claudius. O tempero da proporcionalidade no caldo dos direitos fundamentais. In: Princípios processuais civis na Constituição. Coordenador. Olavo de Oliveira Neto e Maria Elizabeth de Castro Lopes. Rio de Janeiro: Elsevier, Dois mil e oito, Páginas Duzentos e oitenta e três a Trezentos e dezenove.
*8 A proibição da proteção insuficiente, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em:
*9 A diferença entre direitos garantidos e direitos declarados, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-11 .
*10 Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires: Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, Dois mil e sete, Páginas Trezentos e vinte e seis.
*11 Descrição do caso e decisão obtida em Martins, Leonardo ( Organizador ). Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Montevidéu: Konrad Adenauer Stifung, Dois mil e cinco, Página Quatrocentos e oitenta e sete e seguintes.
*12 Carvalho Ramos, André de. Curso de direitos humanos. Oitava edição - São Paulo: Saraiva Educação, Dois mil e vinte e um. Página Cento e quarenta e três.
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