É sabido que o pós-Segunda Guerra Mundial provocou mudanças no cenário geopolítico mundial, mais do que isso, criou uma maneira diferente de pensar o direito, consubstanciada na reaproximação deste com a moral, algo impensável na teoria pura Kelseniana ( * vide nota de rodapé ) adepta de um ordenamento fechado ( *2 vide nota de rodapé ) e no sistema autopoiético de Luhmann ( *3 vide nota de rodapé ) .
A judicialização dos Direitos Humanos: os princípios convivendo com a autonomia dos DH. Foto: Partido dos Trabalhadores ( Divulgação ) .Melhor explica-se: o Estado Democrático de Direito ( EDD ( *4 vide nota de rodapé ) é tido como sucedâneo lógico do que um dia foi o Estado Liberal ( *5 vide nota de rodapé ) e depois o Estado de Bem-estar Social ( EBS ) ( *6 vide nota de rodapé ), vindo á tona após a supramencionada Segunda Guerra Mundial tendo em vista a análise empírica de que mesmo o Estado nazifascista, legitimador de atrocidades genocidas ( *7 vide nota de rodapé ), foi um Estado de Direito, e, portanto, legal, nos termos estritos de uma análise fria. Tal constatação, muito embora possa chocar alguns pensadores do direito, nada mais é que decorrência imperfeita de se pensar por tanto tempo a ideia de império da lei ( *8 vide nota de rodapé ) como algo irrestrito ( *9 vide nota de rodapé ). Indubitavelmente, pois, o nacional-socialismo ( *10 vide nota de rodapé ) ( e sua ideia " legalista " ) permitiu concluir que não basta um Estado de Direito, é preciso um EDD, representando a democracia ponto diferenciador do totalitarismo de Hitler, Mussolini, Salazar, Franco, dentre outros ( *11 vide nota de rodapé ) .
Neste sentido, conforme trecho de julgado extraído da obra de Robert Alexy, o Tribunal constitucional alemão ( TCA ), no BVerfGE Vinte e três, Noventa e oito ( Cento e seis ), de Mil novecentos e sessenta e oito, desconsiderou o Artigo Segundo do Décimo-primeiro Decreto da Lei de Cidadania do Reich, de Vinte e cinco de novembro de Mil novecentos e quarenta e um, de cunho nacional-socialista, que privava da da nacionalidade ( *12 vide nota de rodapé ) alemã os judeus emigrados, ao entender que os dispositivos ditos " jurídicos " do nazismo podem, sem, ser perfeitamente destituídos de validade por contrariarem os princípios fundamentais de justiça .
Segundo Alexy ( *13 vide nota de rodapé ), " direito e a justiça não estão á disposição do legislador. A ideia de que um legislador constitucional tudo pode ordenar a seu bel-prazer significaria um retrocesso à mentalidade de um positivismo legal ( *14 vide nota de rodapé ) desprovidos de valoração, há muito superado na ciência e na prática jurídicas. Foi justamente a época do regime nacional-socialista na Alemanha que ensinou que o legislador também pode estabelecer a injustiça ( BVerfGE [ Bundesverfassungsgeriucht, Tribunal Constitucional Federal alemão - TCFA ]- afirmou a possibilidade de negar aos dispositivos ' jurídicos ' nacional-socialistas sua validade como direito, uma vez que eles contrariam os princípios fundamentais da justiça de maneira tão evidente que o juiz que pretendesse aplicá-los ou reconhecer seus efeitos jurídicos estaria pronunciando a injustiça, e não o direito ( BverfGE Três, Cinquenta e oito ( Cento e dezenove ); Seis, Cento e trinta e dois ( Cento e noventa e oito )). O Décimo-primeiro Decreto infringia esses princípios fundamentais. Nele, a contradição entre esse dispositivo e a justiça alcançou uma medida tão insustentável que ele foi considerado nulo ab initio ( conforme BHG, RzW [ Bundesgerichthof, Rechtsprechung zur Wiedergutmachungsrecht, Decisões do Supremo Tribunal de Justiça ( STJ ) alemão sobre o direito de reparação ], Mil novecentos e sessenta e dois, Quinhentos e sessenta e três; BGHZ [ Entcheidungen des Bundesgerichtshofes in Zivilsachen, Decisões em matéria cível do STJ alemão ] nove, Trinta e quatro ( Quarenta e quatro ); Dez, Trezentos e quarenta ( Trezentos e quarenta e dois ); Dezesseis, trezentos e cinquenta ( Trezentos e cinquenta e quatro ); Vinte e seis, Noventa e um ( Noventa e três )). Esse Decreto tampouco se tornou eficaz por ter sido aplicado durante alguns anos ou porque algumas das pessoas atingidas pela ' desnaturalização ' declaram, em seu tempo, estarem resignadas ou de acordo com as medidas nacional-socialistas. pois, uma vez estabelecida, uma injustiça que infringia abertamente os princípios constituintes do direito não se torna direito por ser aplicada e observada " .
O trecho do julgado em evidência alude à combatividade de comando " hitlerista ", o que poderia levar à errônea suposição de que só a positivismo nazista deveria ser enfrentado, o que não é verdade. Prova disso, em outro trecho de julgado extraído novamente da obra de Robert Alexy, o mesmo Tribunal constitucional Federal ( TCF ) alemão, em Mil novecentos e setenta e três, no BVerfGE Trinta e quatro, Duzentos e sessenta e nove ( Duzentos e oitenta e seis s.) decidiu a respeito da possibilidade de o juiz decidir em constrariedade a enunciado de lei, num caso que nenhuma relação guardava\ com o nacional-socialismo .
Neste sentido, alexy afirma que " a vinculação tradicional do juiz à lei, um elemento sustentador do princípio da separação dos poderes ( *15 vide nota de rodapé ) e, por conseguinte, do estado de direitos, foi Modificada na Lei Fundamental, ao menos em sua formulação, no sentido de que a jurisprudência está vinculada à ' lei e ao direito ' ( Artigo Vinte, Parágrafo Terceiro ) . Com isso, segundo o entendimento geral, rejeita-se um positivismo legal estrito. A fórmula mantém a consciência de que, embora, em geral, lei e direito coincidam faticamente, isso não acontece de maneira constante nem necessária. O direito não é idêntico à totalidade das leis escritas. Quanto às disposições positivas do poder estatal, pode existir, sob certas circunstâncias, uma excedência de direito, que tem sua fonte no ordenamento jurídico constitucional como um conjunto de sentido e é capaz de operar como corretivo em relação á lei escrita; encontrar essa excedência de direito e concretizá-la em decisões é tarefa da jurisprudência " .
Há se observar, portanto, que o que era necessidade de encontrar justificativa para deslegitimar espiritualmente a estrutura legalista dobre a qual erigiu-se o Estado nazista acabou servindo de fórmula genérica para reaproximar o direito da moral, cindidos na etapa moderna da evolução constitucionalista. A isso, se deu o nome de neoconstitucionalismo .
Dentro do neoconstitucionalismo, emerge uma nova fase do positivismo ( um " pós-positivismo ", como muitos preferem ), na qual se pode observar, dentre outras coisas, a agregação de normatividade aos princípios a atribuição de valor ao normativismo incapaz de acompanhar o sem-número de possibilidades fáticas ante um mesmo caso e o fomento à vinculação vertical e também horizontal ( *16 vide nota de rodapé ) dos direitos fundamentais e os DH ( *17 vide nota de rodapé ) ; a possibilidade de manter atuais as legislações frente ao processo evolutivo rápido e constante da sociedade contemporânea por meio de cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados passíveis de concretização singularizada pelo julgador; a retirada da subfunção a " última palavra " da aplicação do direito conferindo à ponderação ( *18 vide nota de rodapé ) e às teorias da argumentação eficácia decisória; e a promoção da judicialização da política .
Dentre estes aspectos, merece destaque o da normatividade dos princípios. Com efeito, na fase genuinamente positivista, os princípios entravam nos Códigos apenas como válvulas de segurança, eram meras pautas programáticas supralegais não possuindo normatividade; ao passo que na fase pós-positivista, as Constituições destacam a hegemonia axiológica dos princípios, transformando-os em pedestal normativo que dá base a todo edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais ( *19 vide nota de rodapé ).
Não se pode olvidar que os princípios sempre desempenharam um importante papel social, mas foi somente na atual dogmática jurídica que eles adquiriram normatividade. Hoje em dia, os princípios servem para condensar valores, dar unidade ao sistema e condicionar a atividade do intérprete. Os princípios são normas jurídicas, não meros conteúdos axiológicos, aceitando aplicação autônoma ( *20 vide nota de rodapé ) .
entretanto,, esta proposta a respeito da normatividade dos princípios da normatividade dos princípio inicialmente não foi implementada de forma efetiva, sendo que por muito tempo na aplicação do Direito permaneceu o ideário de que os princípios eram simples diretrizes, não sendo dotados de autonomia. Com o impulso da atual onda de ativismo judicial no Brasil, os princípios de direitos fundamentais adquirem cada vez mais força, assim como a cada dia é conferida maior importância às normas declaratórias de DH .
P.S.:
Notas de rodapé:
* Kelsen, Hans. Teoria pura dos direito. Sexta edição. São Paulo: Martins Fontes, Dois mil e três.
*2 Interessante, neste sentido, a crítica de Karl Larenz ( Metodologia da ciência do direito. Terceira edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulberkian, Mil novecentos e noventa e sete, Página Cento e vinte e cinco à teoria pura de Kelsen: " com exceção da lógica e da matemática, o conceito positivista de ciência só admite como científicas as disciplinas que que servem dos métodos das ciências da natureza, ou seja, de uma pesquisa causal que assente na observação, na experimentação e na recolha de factos. Ora, não só a ciência do Direito, mas também as chamadas ciências do espírito, como, por exemplo, a linguística, a história da arte, da filosofia e da literatura, e, muito mais ainda, a filosofia e a teologia, são manifestamente incompatíveis com semelhantes métodos. Se estas ciências não devem ser todas excluídas do círculo das ciências reconhecidas, então carece de crítica o próprio conceito positivista de ciência " .
*3 Luhmann, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Universidade de Brasília, Mil novecentos e oitenta. O ideário de Luhmann é combatido por Habermas ( Direito e moral. Lisboa: instituto Piaget, Mil novecentos e noventa e dois, Página Oitenta e sete ): "Evidentemente o conceito de ' autonomia do direito '. Observa-se a praxis de decisão judicial, como sendo, apenas, independente, na medida em que, primeiro, os programas jurídicos do legislador não prejudiquem o núcleo moral do formalismo jurídico; e na medida em que, segundo as considerações políticas e morais que inevitavelmente, entram na jurisdição, se encontrem fundamentadas e não são tratadas como meras racionalizações de interesses, juridicamente, insignificante " .
*4 O direito à democracia, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/05/direitos-humanos-os-direitos-politicos.html .
*5 A contribuição do liberalismo na construção dos Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/02/direitos-humanos-contribuicao-do_21.html .
*6 Os direitos sociais, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-os-direitos-sociais-no.html .
*7 A vedação ao genocídio, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/05/direitos-humanos-convencao-visa.html .
*8 O princípio da reserva legal, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/04/direitos-humanos-doutrinas-e_34.html .
*9 A relatividade como característica dos Direitos Humanos, é melhor exemplificada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_16.html .
*10 a contribuição do socialismo e do comunismo na construção dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-critica-dos.html .
*11 Oportunas so contexto as palavras de Canotilho ( direito constitucional. Sétima edição. Coimbra, Portugal: Livraria Almedina, Dois mil e três, Página Cem ): " O Estado constitucional é ' mais ' do que Estado de Direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para ' travar ' o poder ( to check the power ); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder ( to legitimize State power ). Se o que se quer é um Estado constitucional que se assente em fundamentos não metafísicos, há de se distinguir claramente duas coisas: 1) uma é a da legitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislação no sistema jurídico; 2) outra é a da legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político. O Estado ' impolítico ' do Estado de Direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o qual ' todo poder vem do povo ' assegura a garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de ' chameira ' entre o ' Estado de Direito ' e o EDD ' possibilitando a compreensão da moderna fórmula EDD. Alguns autores avançam mesmo a ideia de democracia como valor ( e não apenas como processo ), irreversivelmente estruturante de uma ordem constitucional democrática " .
*12 O direito à nacionalidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/05/direitos-humanos-o-direito_17.html .
*13 Alexy, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, Dois mil e nove, Páginas Sete e Oito .
*14 O positivismo nacionalista, como um dos fundamentos dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-positivismo.html .
*15 O princípio da separação dos poderes, no contexto dos direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/02/direitos-humanos-doutrinas-e_22.html .
*16 A eficácia dos Direitos Humanos ( vertical, horizontal e diagonal ) é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/08/direitos-humanos-eficacia-dos-dh-e-suas.html .
*17 A interação entre os direitos fundamentais e os Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/07/direitos-humanos-garantias.html .
*18 A ponderação dentro da teoria externa dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh-sob.html .
*19 Bonavides, Paulo. Curso de direito constitucional. Vigésima-sexta edição. São Paulo: Malheiros, Dois mil e onze, Páginas Duzentos e sessenta e dois a Duzentos e sessenta e quatro .
*20 Barroso, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. sétima edição. São Paulo: Saraiva, Dois mil e nove, Página Trezentos e vinte e sete .
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