quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Direitos Humanos: o direito à privacidade e a interceptação telefônica por ordem de juízo cível

O reconhecimento da limitabilidade dos direitos fundamentais consolidou o uso da proporcionalidade ( * vide nota de rodapé ) nos precedentes judiciais brasileiros, afastando a literalidade da redação dos direitos previstos na Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e nos tratados internacionais. O caso da inviolabilidade do sigilo de correspondência ( realizada pelo Supremo Tribunal Federal - STF - no caso dos presos ) ou da invasão de domicílio por ordem judicial durante a noite ( determinada pelo próprio STF ) são exemplos marcantes da proporcionalidade nos direitos fundamentais.


O Superior Tribunal de Justiça ( STJ ), o Ministro Relator, Sidnei Beneti, decidiu a favor da possibilidade de interceptação telefônica ( *2 vide nota de rodapé ) determinada por juiz em processo cível. Tratava-se de ação na qual se buscava a localização de menor subtraído por um dos genitores, tendo sido esgotados todos os meios tradicionais na esfera cível de localização pelo oficial de justiça e por ofícios infrutíferos e demorados.


Nessa hipótese, o juiz decidiu fazer prevalecer o direito à proteção da criança e do adolescente ( Artigo Duzentos e vinte e sete da CF - 88 ) em detrimento da inviolabilidade do sigilo telefônico, fruto do direito à intimidade. A proporcionalidade foi aplicada, desconsiderando-se a redação do Artigo Quinto, Inciso Doze, que faz menção à interceptação telefônica regrada por lei e para investigação e persecução criminais. Na apreciação do caso no STJ, Beneti decidiu a favor da possibilidade de interceptação telefônica, uma vez que, "há que se proceder à ponderação dos interesses constitucionais em conflito, sem que se possa estabelecer, a priori, que a garantia do sigilo deva ter preponderância" ( voto do Ministro, STJ, Habeas Corpus número Duzentos e três mil quatrocentos e cinco, Terceira Turma, julgado em Vinte e oito de junho de Dois mil e onze ).


Parte da doutrina criticou severamente essa decisão, alegando que a subtração de criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda é crime ( com pena de reclusão ) tipificado no Artigo Duzentos e trinta e sete do Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA ), o que permitiria que o juiz cível representasse ao juiz criminal, para que este, no bojo de um inquérito criminal, ordenasse validamente a interceptação telefônica. Claro que seu colega juiz criminal ( que poderia entender que não era caso de interceptação telefônica imediata, aguardando diligências policiais prévias ) e também de se subordinar à posição do membro do Ministério Público ( MP ) oficiante no Inquérito Policial instaurado, que poderia entender que a conduta em tela não era crime ( tendo em vista as peculiaridades do caso ), promovendo seu arquivamento, o que negaria novamente o direito de acesso á justiça no processo cível.


Assim, pode-se justificar a interceptação telefônica para fins civis, em caso de


1) esgotados os meios usuais para fazer valer o direito da parte requerente;

2) para fazer valer o direito de acesso à justiça ( *3 vide nota de rodapé );

3) em casos excepcionalmente graves, nos quais há risco de ofensa a direitos fundamentais ( *4 vide nota de rodapé ).


O direito de acesso à justiça ( Artigo Quinto, Inciso Trinta e cinco da CF - 88 ) e o consequente direito a ser protegido devem ser levados em consideração, ponderando-o também com o direito à privacidade ( *5 vide nota de rodapé ). O sigilo telefônico em processo cíveis não pode ser absoluto, sob pena de amesquinhar-se o direito a uma tutela justa em caso de imprescritibilidade da da interceptação telefônica para fazer valer o direito da parte.


Esse caso torna evidente que o Poder Constituinte não consegue esgotar a regência expressa de todas as hipóteses de colisão ( *6 vide nota de rodapé ) entre os direitos fundamentais, uma vez que novas situações sociais surgem, gerando inesperadas colisões de direitos e exigindo ponderação pelo intérprete.


Assim, apesar de a CF - 88 ter ponderado a colisão de direitos entre o direito á privacidade e os direitos das vítimas no campo penal ( direito à verdade e justiça - *7 vide nota de rodapé ), exigindo lei para ocaso de interceptação telefônica e somente para fins penais, isso não exclui a possibilidade de ponderação desses mesmos direitos para a obtenção da tutela justa e célere ( *9 vide nota de rodapé ) no campo cível.


Do ponto de vista de Ramos ( *10 vide nota de rodapé ) , não há qualquer incongruência: A CF - 88 exigiu lei para a interceptação telefônica para fins criminais, uma vez que o direito penal trata da liberdade dos indivíduos. Na esfera cível, não há a necessidade de lei específica ( basta o código de Processo Civil - CPC e o poder geral de cautela ), uma vez que não há o periculum libertatis ( *11 vide  nota de rodapé ). O direito de acesso á justiça e o poder geral de cautela ( para assegurar o resultado útil do processo é imprescindível a interceptação ) são suficientes para conferir ao juiz o poder de sopesar os direitos, avaliar a situação e ordenar a interceptação telefônica.


É cedo para prever se esse entendimento do STJ prevalecerá no STF. a fundamentação do Ministro Beneti, porém, é condizente com precedentes anteriores do próprio STF mencionados, como os referentes


1) à relatividade da inviolabilidade do sigilo de correspondência ( *12 vide nota de rodapé ) e

2) à relatividade da inviolabilidade domiciliar ( *13 vide nota de rodapé ) em período noturno no caso de ordem judicial ( que deveria ser cumprida durante o dia, mas o foi durante a noite ), em decisão referendada pelo Pleno do STF.   


P.S.:


Notas de rodapé:


* A limitação dos direitos fundamentais pelo princípio da proporcionalidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-principio-da_31.html .


*2 O direito ao sigilo das comunicações telefônicas, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_10.html .


*3 O direito ao acesso à justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/11/direitos-humanos-garantia-do-acesso.html .


*4 A diversidade terminológica referente aos Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/02/direitos-humanos-as-terminologias.html .


*5 O direito à privacidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade.html .


*6 O conflito entre os direitos fundamentais, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh.html .


*7 O direito à verdade e à justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-direito-memoria-e.html .


*8 a interpretação das normas, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-efetividade-como.html .


*9 O princípio da razoável celeridade processual e a razoável duração dos processos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/07/direitos-humanos-doutrinas-e_12.html .


*10 Ramos, André de Carvalho. Curso de direitos humanos / Oitava edição - São Paulo : Saraiva Educação, Dois mil e um. Mil cento e quarenta e quatro Páginas. Página Oitocentos e dois.


*11 Vieira, Jair Lot. periculum - ensaio, prova; experiência; risco, perigo; doença; ( mais raramente ) casua, processo; condenação. libertatis - liberdade; livramento; licença, permissão; independência ( de linguagem ), franqueza; ousadia, excesso. Dicionário latim-português : termos e expressões / supervisão editorial - São Paulo : Edipro, Dois mil e dezesseis, Página Duzentos e trinta e oito.


*12 O sigilo de correspondência, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_9.html .


*13 O direito à inviolabilidade domiciliar, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade_26.html .

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