A interpretação do Direito é toda atividade intelectual que visa a solucionar problemas jurídicos por meio dos seguintes passos:
1) escolha dos textos normativos relevantes;
2) atribuição de significados a estes textos e
3) resolução da questão jurídica à luz dos parâmetros eleitos ( * vide nota de rodapé ).
Contudo, tradicionalmente a interpretação jurídica é vista como uma atividade de extração, de um determinado texto normativo, do seu real significado, sempre evitando que os pendores pessoais do intérprete possam influenciar na aplicação da norma. Para obter esta extração do real alcance e sentido da norma, os métodos tradicionais de interpretação gramatical, interpretação sistemática, interpretação teleológica e interpretação histórica - não são excludentes entre si, mas podem ser complementares, na sua função de se alcançar o sentido adequado da norma interpretada, evitando que o aplicador se transforme em legislador.
Esta visão tradicional é criticada nos dias de hoje. Em primeiro lugar, a busca do real alcance e sentido da norma nos levaria à dispensa da interpretação diante da clareza do texto a ser interpretado ( claris non fit interpretatio ). Porém, só é possível determinar a clareza ou obscuridade de determinada lei após a interpretação ( *2 vide nota de rodapé ). Assim, sendo o Direito uma ciência da linguagem, que se apresenta com diferentes significados a depender da leitura, a interpretação é sempre necessária. Em segundo lugar, a interpretação contribui para o nascimento da norma, uma vez que não é uma atividade neutra, de extração de um sentido já preexistente. A própria existência de votações apertadas no Supremo Tribunal Federal ( STF ) brasileiro demonstra que existem várias interpretações possíveis. Não que o texto a ser interpretado não tenha alguma importância, podendo o intérprete utilizá-lo como queira. A texto normativo é o ponto de partida e, a partir dos dados da realidade - tal qual vista pelos valores do intérprete - , chega-se à norma interpretada.
A interpretação é uma atividade de cunho constitutivo ( e não meramente declaratório - *3 vide nota de rodapé - ), que constrói a norma a ser aplicada ao caso concreto, a partir do amálgama entre o texto normativo e os dados da realidade social ( *4 vide nota de rodapé ) que incidem sobre esse texto. Neste sentido, o Ministro Eros Grau sustentou que "a interpretação do direito tem caráter constitutivo", pois "consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão", Em síntese, sustentou o Ministro Eros Grau, em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ( ADPF ) número Cento e cinquenta e três, relator Ministro Eros Grau, julgada em Vinte e nove de abril de Dois Mil e dez, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Seis de agosto de 2010 ) ( *2 vide nota de rodapé ).
Assim sendo, a interpretação é a chave da aplicação da norma jurídica pelos juízes e não mais a subfunção mecânica que os transformava na "boca da lei" ( "bouche da la loi " ), na expressão francesa do Século Dezenove que retratava o receio de que os juízes subtraíssem, pela via da interpretação, o poder de criação de normas do Poder Legislativo.
Este receio foi superado pelo reconhecimento de que a interpretação das normas é indispensável a qualquer aplicação do direito. Por isto, sem maiores traumas para a democracia brasileira ( *5 vide nota de rodapé ), o STF assumiu este novo papel da interpretação em vários precedentes. Como exemplo, ainda o Ministro Eros Grau, em voto elogiado por vários outros Ministros, sustentou abertamente que "as normas resultam da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto textos, enunciados, disposições, não dizem algo: elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem" ( voto do Ministro Eros Grau, em ADPF número Cento e cinquenta e três, relator Ministro Eros Grau, julgada em Vinte e nove de abril de Dois mil e dez, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Seis de agosto de Dois mil e dez ).
Com base nesta introdução sobre interpretação, observa-se que que regras tradicionais de intepretação são também insuficientes no campo dos Direitos Humanos ( DH ). As normas de DH são redigidas de forma aberta, repletas de conceitos indeterminados ( por exemplo, "intimidade" - *6 vide nota de rodapé - , "devido processo legal" - *7 vide nota de rodapé - , "duração razoável do processo" - *8 vide nota de rodapé ) e ainda interdependentes ( *9 vide nota de rodapé ) e com riscos de colisão ( *10 vide nota de rodapé ) ( liberdade de informação - *11 vide nota de rodapé - e o direito à intimidade ( *6 vide nota de rodapé - , direito de propriedade - *12 vide nota de rodapé - e direito ao meio ambiente equilibrado - *13 vide nota de rodapé - , entre os casos mais conhecidos ). Consequentemente, a interpretação é indispensável para que se possa precisar e delimitar os DH. A interpretação dos DH é, acima de tudo, um mecanismo de concretização destes direitos. Tratar em abstrato dos DH transcritos nas Constituições ( *14 vide nota de rodapé ) e nos tratados internacionais ( *15 vide nota de rodapé ) é que a delimitação final do alcance e sentido de um determinado direito ocorrerá.
Com isto, é indispensável o estudo dos DH interpretados pelos tribunais nacionais e internacionais. Esta visão choca-se com a visão tradicional, escorada na separação de poderes, que defendia a escravidão do juiz ás normas criadas, em última análise, pelo Poder Legislativo. Logo, a subsunção seria a única técnica utilizada pelos intérpretes na aplicação do direito, sendo composta pela identificação da premissa maior, que era a norma jurídica, apta a incidir sobre os fatos, que eram a premissa menor, resultado, como consequência, aplicação da norma ao caso concreto. Porém, como visto acima, o próprio STF reconhece que a subsunção não é suficiente ou até mesmo é ultrapassada. O fundamento desta superação está na essencialidade da tarefa da interpretação, uma vez que a subsunção não esclarece que é normas e qual é o seu conteúdo para ser utilizado pelos aplicadores.
Além disto, interpretação dos DH ganha importância pela sua:
1) superioridade normativa, pois não há outras normas superiores nas quais pode o intérprete buscar auxílio;
2) força expansiva-juiz. A argumentação jurídica deve, então, justificar as decisões jurídicas referentes aos DH de modo coerente e consistente. Não se trata, então, de simplesmente realizar uma operação dedutiva que leve à extração de uma conclusão incontroversa a partir da premissa jurídica e dos fatos dos caso: como se viu, os DH gera vários resultados possíveis em temas com valores morais contrastantes. Não há certo ou errado, mas sim uma conclusão que deve atender a uma "reserva de consistência" em sentido amplo ( termo propagado no Brasil por Haberle - *16 vide nota de rodapé ).
Aplicada á seara dos DH, a reserva de consistência em sentido amplo exige que a interpretação seja:
1) transparente e sincera, evitando a adoção de uma decisão prévia e o uso da retórica da "dignidade humana" ( *17 vide nota de rodapé ) como forma de justificação da decisão já tomada;
2) abrangente e plural, não excluindo algum dado empírico ou saberes não jurídicos, tornando útil a participação de terceiros, como amici curiae;
3) consistente em sentido estrito, mostrando que os resultados práticos da decisão são compatíveis com os dados empíricos apreciados em com o texto normativo original;
4) coerente, podendo ser aplicada a outros temas similares, evitando as contradições que levam à insegurança jurídica.
Este procedimento fundamentado deve ser aberto a todos os segmentos da sociedade, naquilo que Haberle defendeu ser necessário para a interpretação da Constituição.
Aplicando a visão de Haberle, os DH não compõem um corpo dogmático fechado em si mesmo, que se impõem como verdade abstrata e única sobre o conjunto de operadores jurídicos, mas sim o resultado de um processo de conciliação de interesses que se desenvolve para promover a dignidade humana em determinado contexto histórico e social. Os DH, na medida em que são vividos em sociedade, são interpretados e reinterpretados de maneira constante por todos os que convivem em sociedade, uma vez que regem, uma vez que regem tanto as relações verticais entre indivíduos e Estado quanto às horizontais entre os próprios indivíduos ( *16 vide nota de rodapé ).
Especialmente no controle abstrato de constitucionalidade das normas, a interpretação dos DH exige amplo acesso e participação de sujeitos interessados, o que possibilitará aos julgadores uma apreciação das mais diversas facetas de um determinado direito analisado. Em se tratando de DH, exige-se do julgador, inevitavelmente, uma ampla verificação de fatos e ainda de efeitos das disposições normativas no cotidianos das pessoas. Logo, a adoção de um modelo aberto de processo de interpretação jusfundamental permite que os julgadores possam ter mais elementos para a tomada de decisão.
Espera-se, então que os julgadores recebam e efetivamente utilizem tanto os subsídios técnicos quanto as constatações de repercussões sociais, políticas e econômicas que determinada formatação de um direito possa gerar. Caso a sociedade participe e os julgadores do STF interprete sem maiores elementos o sentido dos DH e desconsidere emendas constitucionais aprovadas pelo Congresso Nacional ( CN ) democraticamente eleito.
No caso brasileiro, há cada vez maior interação da sociedade civil com o STF e com os órgãos internacionais de DH.
No caso do STF, os espaços de interação e influência direta são:
1) apresentação, como amicus curiae ( amigo da Corte ), de memoriais em casos de DH;
2) exposição em audiências públicas promovidas pelo STF.
Quanto aos amici curiae, a Lei número Nove mil oitocentos e sessenta e oito / Mil novecentos e noventa e nove permitiu que o relator nos casos de ações diretas de inconstitucionalidade ( ADI )e de constitucionalidade ( ADC ), considerando a relavância da matéria e a representatividade dos postulantes, admita a manifestação de órgãos ou entidades ( Artigo Sétimo, Parágrafo Segundo ). A Lei número Nove mil oitocentos e oitenta e dois / Mil novecentos e noventa e nove ( sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF ) também possui previsão semelhante ( Artigo Sexto, Para´grafo Segundo ). Além disto, o Código de Processo Civil ( CPC ) de Dois mil e quinze faz menção ao amicus curiae no Artigo Mil e trinta e oito, referente ao julgamento dos recursos extraordinários ( RE ) e especial ( REsp ) repetivos: "O relator poderá:
I - solicitar ou admitir manifestações de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia, considerando a relevância da matéria e consoante dispuser o regimento interno ( RI )",
possibilitando que indivíduos possam se manifestar como amigos da Corte.
No caso de indivíduos, o STF mesmo antes da lei, já havia autorizado ( na figura de amicus informal ) a manifestação do Professor Celso Lafer no Habeas Corpus número Oitenta e dois mil duzentos e quarenta e nove, em parecer contrário às pretensões do paciente ( Senhor Ellwanger, que questionava a aplicação da imprescritibilidade do racismo ao antissemitismo - ver Habeas Corpus número Oitenta e dois mil quatrocentos e vinte e quatro, relator para o acórdão Ministro Presidente Maurício Corrêa, julgado em Dezessete de setembro de Dois mil e três, Plenário, Diário da Justiça de Dezenove de março de Dois mil e quatro ). Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, "a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias institucionais em um Estado Democrático de Direito" ( Ação Direta de Inconstitucionalidade número Três mil oitocentos e quarenta e dois / Minas Gerais, relator Ministro Gilmar Mendes, decisão de Três de dezembro de dois mil e nove, Diário da Justiça eletrônico de Dez de dezembro de Dois mil e nove ).
No caso das audiências públicas, as Leis números Nove mil novecentos e sessenta e oito / Mil novecentos e noventa e nove e Nove mil oitocentos e oitenta e dois / Mil novecentos e noventa e nove possibilitaram que sejam realizadas tais audiências para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria discutida. Por exemplo, o Ministro Luiz Fux determinou a realização de audiências públicas para que fossem colhidas as opiniões técnicas e sociais no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade número Quatro mil cento e três que impugna a Lei número Onze mil setecentos e cinco / Dois mil e oito, também conhecida como "Lei Seca", que proíbe a venda de bebidas alcoólicas à beira das rodovias federais ou em terrenos contíguos à faixa de domínio com acesso direto à rodovia. De acordo com o Ministro, é "valiosa e necessária a realização de audiências públicas dobre diversos temas controvertidos nestes autos, não só para que esta Corte possa ser municiada de informação imprescindível para o deslinde do feito, como, também, para a legitimidade democrática do futuro pronunciamento judicial seja, sobremaneira, incrementada", observou ainda o relator da matéria ( ver Notícias do STF, de Quatorze de novembro de Dois mil e onze ). No mesmo sentido, foram realizadas audiências públicas sobre o "direito ao esquecimento ( *18 vide nota de rodapé )" ( em junho de Dois mil e dezessete, envolvendo o julgamento do Recurso Extraodinário número Um milhão dez mil seiscentos e seis, relator Ministro Dias Toffoli ) e sobre o bloqueio judicial do "WhasApp" ( também em junho de Dois mil e dezessete, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade número Cinco mil quinhentos e vinte e sete, relatada pela Ministra Rosa Weber, e da Arguição de Descumprimento de preceito Fundamental ( ADPF ) número Quatrocentos e três, cujo relator é o ministro Edson Fachin ). nesta última audiência pública, o Ministro Edson Fachin ressaltou que tais audiências propiciam um "espeço dialogal" em um ambiente aberto e republicano ( ver Notícias do STF , de Dois de junho de Dois mil e dezessete ).
De modo indireto, a sociedade civil interage com o STF por meio de representação a entes com poderes processuais de provocação do STF ( como, por exemplo, a Procuradoria Geral da República - PGR ). Outro Espaço indireto de influência da sociedade civil no STF seria o da sabatina dos candidatos a Ministros do STF no Senado Federal - SF - ( Artigo Cento e um, Parágrafo Único, da CF - 88 ), por meio da apresentação de sugestões de perguntas da sociedade civil organizada a Senadores, que poderiam indagar os candidatos sobre a perspectiva de proteção de DH.
No que tange aos órgãos internacionais de DH, a sociedade civil organizada pode apresentar petições contra o Estado brasileiro e ainda participar como amici curiae, em casos de violações de DH.
P.S.:
Notas de rodapé:
* Pereira, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, Dois mil e seis, Página Trinta e sete.
*2 Grau, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito. Quinta edição. São Paulo: Malheiros, Dois mil e nove, Páginas Setenta e quatro a Setenta e cinco.
*3 As declarações, no contexto das garantias e da implementação de Direitos Humanos, são melhor detalhadas em:
*4 O realismo inverossímil e o sentido da democracia para os DH são melhor detalhados em:
*5 O avanço da democracia no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:
*6 O direito à intimidade e à vida privada, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-44 .
*7 O direito ao devido processo legal, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-19 .
*8 O direito à razoável duração do processo, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-88 .
*9 A interpendência entre os Direitos Humanos é melhor detalhada em:
*10 A possibilidade de colisão entre Direitos Humanos é melhor detalhada em:
*11 A liberdade de informação e livre divulgação dos fatos é melhor detalhada em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-49 .
*12 O direito à propriedade no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:
*13 O direito ao meio ambiente equilibrado no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .
*14 Os Direitos Humanos transcritos nas Constituições são melhor detalhados em:
*15 Os Direitos Humanos expressos em tratados internacionais e sua não exauribilidade são melhor detalhados em:
*16 Haberle, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, Mil novecentos e noventa e sete.
*17 O princípio da dignidade humana, no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-dignidade-humana-e-a-jurisprud%C3%AAncia .
*18 O direito ao esquecimento, no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:
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