quinta-feira, 10 de março de 2022

Direitos Humanos: os resquícios do jusnaturalismo nos DH

Apesar do reconhecimento do caráter histórico ( * vide nota de rodapé ) dos Direitos Humanos ( DH ), o recurso à fundamentação jusnaturalista é perceptível até hoje.


No Direito Internacional dos DH, a Declaração de Viena de Mil novecentos e noventa e três, emitida ao final da Segunda Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas ( ONU ) sobre DH, dispôs no Parágrafo Primeiro da Parte Primeira, que "os DH e as liberdades fundamentais ( *2 vide nota de rodapé ) são direitos naturais de todos os seres humanos".


Também no Supremo Tribunal Federal ( STF ), há clara influência da tradição jusnaturalista de percepção de direitos inerentes e mesmo não escritos ou não positivados.


Um caso célebre foi o reconhecimento, pelo Ministro Celso de Mello, da existência de um "bloco de constitucionalidade" material, que seria o conjunto de normas de estatura constitucional composto pelas normas expressas da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e normas implícitas e valores do direitos natural. Nas palavras do Ministro Celso de Mello: "cabe ter presente que a construção do dignificado de Constituição permite, na elaboração deste conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal ( que consubstancia o texto escrito da CF - 88 ), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado" ( Ação Direta de Inconstitucionalidade número Quinhentos e sessenta e cinco / Espírito Santo, relator Celso de Mello, Dois mil e dois, decisão publicada no Diário da Justiça da União de Vinte e seis de fevereiro de Dois mil e dois. Também disponível no Informativo número Duzentos e cinquenta e oito do STF ).


O reconhecimento de direitos não expressos é feito para justificar efeitos ainda não previstos de determinado direito fundamental. Por exemplo, reconhecido o caráter de "direito natural" do direito de greve ( inerente a toda prestação de trabalho, público ou privado ), o STF decidiu que não cabe o não pagamento dos salários. Eventual compensação ao patrão pela ausência do trabalho deve ser feita após o encerramento da greve. Para o STF: "Em síntese, na vigência de toda e qualquer relação jurídica concernente à prestação de serviços, é irrecusável o direito à greve. E este, porque ligado à dignidade do homem - consubstanciando expressão maior da liberdade a recusa, ato de vontade, em continuar trabalhando sob condições tidas como inaceitáveis - , merece ser adequado entre os direitos naturais. Assentado o caráter de direito natural da greve, há de se impedir práticas que acabem por negá-lo ( ... ) consequência da perda advinda dos dias de paralisação há de ser definida uma vez cessada a greve. Conta-se, para tanto, como o mecanismo dos descontos, a elidir eventual enriquecimento indevido, se é que este, no caso, possa se configurar" ( STF, Decisão monocrática da Presidência, SS Dois mil e sessenta e um Agravo Regimental / Distrito Federal, relator Ministro Marco Aurélio, Presidente, julgado em Trinta de outubro de Dois mil e um ).


Contudo, em Dois mil e dezesseis, o STF adotou tese com repercussão geral, pela qual a administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos serviços públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público ( STF, Recurso Extraordinário número Seiscentos e noventa e três mil quatrocentos e cinquenta e seis, relator Ministro Dias Tóffoli, julgado em Vinte e sete de outubro de Dois mil e dezesseis ). Em Dois mil e dezoito, o STF voltou a reconhecer a legitimidade constitucional de determinadas reações da Administração Pública à greve de servidores. Foi considerado constitucional o Decreto número Quatro mil duzentos e sessenta e quatro de Mil novecentos e noventa e cinco, da Bahia, que dispõe sobre as providências a serem adotadas e caso de greve de servidores públicos estaduais. A norma considerada constitucional prevê a instauração de processo administrativo para se apurar a participação do servidor na greve, com a possibilidade de não pagamento dos dias de paralisação, cumprindo o disposto no Mandado de Injunção número Setecentos e oito ( STF, relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em Vinte e cinco de outubro de Dois mil e sete, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Trinta e um de outubro de Dois mil e oito ), que estipulou, até a edição da legislação específica ( prevista no Artigo Trinta e sete, Inciso Sétimo da CF - 88 ), a incidência das Leis números Sete mil setecentos e um / Mil novecentos e oitenta e oito e Sete mil setecentos e oitenta e três / Mil novecentos e oitenta e nove relativas á greve no setor privado às greves dos servidores públicos civis. Também foi considerado constitucional a contratação de trabalhadores temporários para prestar serviços essenciais que não podem ser interrompidos, desde que a contratação seja para o período de duração da greve e apenas para garantir a continuidade dos serviços ( Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número Trezentos e noventa e cinco / Distrito Federal, relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em Treze e Quatorze de junho de Dois mil e dezoito e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental número Quatrocentos e quarenta e quatro / Distrito Federal, relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em Treze e Quatorze de junho de Dois mil e dezoito ).


O direito natural foi ainda utilizado para reconhecer os direitos novos, como "direito de fuga", não positivado na CF - 88 ou nos tratados de DH celebrados pelo Brasil. Para o STF ( com especial relevo nos votos do Ministro Marco Aurélio - *3 vide nota de rodapé ), a "fuga é um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência desta visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo" ( Recurso em Habeas Corpus número Oitenta e quatro mil oitocentos e cinquenta e um  / Bahia, Recurso em Habeas Corpus, relator Ministro Marco Aurélio, julgado em Primeiro de março de Dois mil e cinco ). ou, ainda, "a fuga não pode ser considerada como fator negativo, tendo em vista consubstanciar direito natural" ( Habeas Corpus número Setenta e três mil quatrocentos e noventa e um / Paraná, relator Ministro Marco Aurélio, julgado em Dois de abril de Mil novecentos e noventa e seis ).


O direito natural serviu ainda para ampliar direito previsto na CF - 88, como foi o caso da previsão constitucional do direito ao preso de "permanecer calado" ( Artigo Quinto, Inciso Noventa e três ), que foi transformado pelo STF ao longo dos anos em um direito de não se autoincriminar e não colaborar nas investigações criminais. Para o STF, "o direito natural afasta, por si só, a possibilidade de exigir-se que o acusado colabore nas investigações. A garantia constitucional do silêncio encerra que ninguém está compelido a autoincriminar-se. Não há como decretar a prisão preventiva com base em postura do acusado reveladora de não estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução processual" ( Habeas Corpus número Oitenta e três mil novecentos e quarenta e três / Minas Gerais, relator Ministro Marco Aurélio, julgado em Vinte e sete de abril de Dois mil e quatro ).


Outro direito ampliado pela fundamentação de direito natural foi o direito de defesa. O STF invocou o direito natural para ampliar o conceito de autodefesa e impedir que o acusado fosse prejudicado por não admitir a culpa ou até mesmo mentir ( atribuindo a terceiro a autoria ). Para o STF, "a autodefesa consubstancia, antes de tudo, direito natural. O fato de o acusado não admitir culpa, ou mesmo atribuí-la a terceiro, não prejudica a substituição da pena privativa de exercício da liberdade pela restritiva de direitos, descabendo falar de "personalidade distorcida'" ( Habeas Corpus número Oitenta mil seiscentos e dezesseis, relator Ministro Marco Aurélio, julgado em Dezoito de setembro de Dois mil e um, Primeira Turma, Diário da Justiça de Doze de março de Dois mil e quatro ).


Quadro sinótico


O fundamento jusnaturalista


1) Jusnaturalismo: corrente do pensamento jurídico segundo o qual existe um conjunto de normas vinculantes anterior e superior ao sistema de normas anterior e superior ao sistema de normas fixadas pelo Estado ( direito posto ).

2) Na antiguidade, é possível identificar uma visão jusnaturalista na peça de teatro Antígona de Sófocles.

3) Na Idade Média, é incentivado pela visão religiosa de São Tomás de Aquino, para quem a lex humana deve obedecer a lex naturalis, que era fruto da razão divina, mas perceptível aos homens.

4) No plano internacional, Hugo Grotius sustentava, no Século Dezesseis, a existência de um conjunto de normas ideais, fruto da razão humana. Nos Séculos Dezessete e dezoito, esta corrente jusnaturalista impõe a consagração da razão laicidade das normas de direito natural.

5) Os iluministas ( em especial Locke e Rousseau ) fundam a corrente do jusnaturalismo contratualista, que aprofunda o racionalismo e o individualismo. Os DH são concebidos como direitos atemporais, inerentes á qualidade de homem de seus titulares.

6) Traço marcante da corrente jusnaturalista, de origem religiosa ou contratualista: cunho metafísico, pois se funda na existência de um direito preexistente ao direito produzido pelo homem, oriundo de Deus ( escola de direito natural de razão divina ) ou da natureza inerente do ser humano ( escola de direito natural moderno ).

7) O recurso à fundamentação jusnaturalista é perceptível até hoje no Direito Internacional dos DH, bem como no Supremo Tribunal Federal.      


P.S.:


*O caráter histórico dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-reconstru%C3%A7%C3%A3o-do-materialismo-hist%C3%B3rico-o-sujeito-da-transforma%C3%A7%C3%A3o-e-as-caracter%C3%ADsticas-do-processo .


*2 A diversidade terminológica referente aos Direitos Humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-as-terminologias-utilizadas-ao-longo-da-hist%C3%B3ria-dos-dh .


*3 Nem todos os Ministros compartilham a existência de um "direito natural à fuga". Para o Ministro Ricardo Lewandowski, "a fuga do réu do distrito da culpa justifica o decreto ou a manutenção da prisão preventiva" ( Habeas Corpus número Noventa mil novecentos e sessenta e sete / Paraná, relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em Dezoito de setembro de Dois mil e sete ).


Mais em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-resqu%C3%ADcios-do-jusnaturalismo-nos-dh .

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