A educação para o trabalho, como um processo disciplinar, teve um estudo de caso numa instituição do setor bancário / financeiro. Integrando-se aos propósitos expressos pelo Estado Militar na Reforma dos Ensinos Fundamental e Médio, pela Lei número cinco mil seiscentos e noventa e dois de mil novecentos e setenta e um, cujo objetivo geral buscava qualificação para o trabalho e o preparo para o exercício consciente da cidadania, um banco, por exemplo, a partir daquele ano, dedica-se efetivamente à formação de sua própria força de trabalho.
As escolas do banco são instaladas em regiões caracterizadas pela miséria e pela inexistência ou insuficiência de escolas públicas. Isto porque é a criança pobre que procura selecionar para ser educada para o trabalho.Desta forma, e todas as unidades escolares é estabelecido alto grau de dependência das famílias em relação ao processo educacional do banco. Questionar ou até mesmo não aceitar o conteúdo disciplinador a que estão submetidos seus filhos pode significar o rompimento da única oportunidade que teriam de alfabetização, alimentação, atendimentos médico-odontológicos e, possivelmente, de um emprego futuro.
No processo educacional para o trabalho, a organização privilegia o ensino fundamental ( cinquenta e um vírgula quatro por cento das matrículas ), seguido dos cursos profissionalizantes ( vinte e cinco vírgula quarenta e sete por cento das famílias ) e do ensino médio - curso técnico ( dezoito vírgula três por cento ). A educação infantil compreende quatro vírgula cinquenta e nove por cento dos educandos.
A ênfase educacional recai sobre o ensino fundamental, posto que este nível é compreendido privilegiado para possibilitar ao aluno a formação profissional de acordo com suas habilidades e aptidões. A escola permite que os alunos familiarizem-se com os mais diversos campos de trabalho, descobrindo e desenvolvendo seus interesses profissionais, segundo dados da fundação do banco do ano de mil novecentos e oitenta e quatro.
É sabido que a noção de aptidão pode legitimar as desigualdades escolares, entendidas como desigualdades sociais, segundo Bisseret, Noell In: Durand do ano de mil novecentos e setenta e nove.
O ensino na Fundação é prático: não há conteúdos inúteis. Por exemplo: não são usados o trabalho da criança. Ela não limpa a escola para promover economia com contratação de profissionais de higienização. Não são usado copos descartáveis e as crianças lavam suas canequinhas por economia. A justificativa é porque fora da escola elas não terão o luxo do uso dos descartáveis. A realidade de serem crianças pobres leva à conclusão de que assim elas aprendem na prática as noções de higiene e programas de saúde, segundo a referida fundação com dados do ano de mil novecentos e oitenta e quatro.
A moralização da criança para o trabalho se dá concomitantemente ao processo de assimilação de valores de classe dominante.
Para tanto, a Declaração de Princípios do banco constitui a base ideológica a ser apreendida de diferentes formas: a transcrição do texto, leitura, vivência cotidiana. A obediência a todos os princípios é condição para a permanência do aluno na fundação ou do funcionário da organização.
Selecionando as crianças pobres para realizar o processo educacional para o trabalho, a fundação procura também reforçar os vínculos da obediência desenvolvendo o sentimento de gratidão nos educandos. De acordo com o setor pedagógico a função é torna-los gratos. O setor prevê que os educandos precisam entender que sem a assistência da fundação, estariam abandonados e na miséria.
As atividades desenvolvidas no interior das escolas, sob a dominação de aulas práticas, transformam os educandos em força de trabalho produtora de excedente. Nas escolas rurais, as crianças aram a terra, plantam e colhem os produtos agrícolas. Nas escolas urbanas, realizam tarefas inseridas no processo de trabalho desenvolvido pelo banco. Como são alunos e não funcionários, não é estabelecido entre eles e a organização algum vínculo empregatício: o que significa que não existem direitos trabalhistas a serem reclamados.
O processo educacional é desenvolvido de forma pretensamente apolítica. Não se permitem no interior das escolas, tanto por parte dos alunos como dos professores, discussões sobre temas que possam questionar as autoridades constituídas e hierarquia. O aparente objetivo é trabalhar.
Não permitindo o levantamento de questões políticas, a organização realiza seu trabalho político. Procura impedir o surgimento de inadequações que possam, ao gerar conflitos, comprometer a eficácia do processo educacional para o trabalho.
Neste contexto, o professor é selecionado de acordo com a potencialidade demonstrada em formar o educando em conformidade com o ideário da instituição, em detrimento do próprio conteúdo.Indagações políticas, religiosas ou questionadoras da ordem vigente não lhe são permitidas.
A instituição procura estabelecer uma rede de controle sobre o educador, impossibilitando desvios que possam comprometer a formação do educando para o trabalho.
Também concorre para este objetivo a exigências do espaço absolutamente limpo, organizado. Procura-se mostrar o grau de valorização do espaço físico dedicado à criança em processo de formação para o trabalho. O uniforme, o material escolar, a sala de aula, o pátio, tudo, enfim, dentro da escola, deverá ser absolutamente limpo para também mostrar o grau de dignidade com o qual o trabalho é considerado pela instituição.
Procura-se desta forma, limpar do espaço escolar os conflitos relativos às contradições de classe social, segundo Rabinbach, em mil novecentos e setenta e oito.
Neste contexto, o lazer proporcionado às crianças reforça os valores contidos no processo educacional. É supervisionado e orientado pela área de educação moral e cívica.
O lazer com padrões educativos procura salientar a necessidade de obediência às leis, respeito ao superior hierárquico, à autoridade constituída e á disciplina. Por estas razões, é no escotismo que a fundação encontra uma forma de lazer capaz de reforçar seus próprios princípios e objetivos.
Um processo educacional que objetiva a manutenção da ordem vigente, a minimização de questionamento que possam gerar atitudes de indisciplina ou agitação, coerentemente procura educar a mulher para o trabalho do lar, reservando-lhe o local privilegiado para aceitação da submissão em relação ao homem. Desta forma, reproduz a hierarquia da família burguesa, na qual o homem é entendido como chefe e a mulher como sua subordinada, segundo Belotti, em mil novecentos e oitenta e cinco.
As meninas, através da disciplina educação para o lar, aprendem a cuidar de crianças, costurar, lavar e passar roupa, cozinhar. Além disto, aprendem a viver sem desperdiçar, de acordo com o salário do futuro marido. Isto quer dizer que, através de um fictício envelope de pagamento referente ao salário médio de um escriturário das organizações do banco, deverá realizar as compras necessárias para a casa e aprende a poupar. Ainda que não venham a ser funcionários do banco, estão sendo preparadas para se casar e produzir força de trabalho de acordo com os princípios da instituição.
A análise das características da tecnologia disciplinar utilizada pelo banco no construção da força de trabalho moralizada de acordo com o ideário da organização revela que o processo educacional é entendido como valioso instrumento a serviço do capital. Por esta razão, a educação torna-se investimento: objetiva a formação de trabalhadores docilizados, não questionadores da realidade por eles vivenciada, produtivos e de baixo custo.
Desta forma, o processo educacional na fundação se desenvolve tendo como suporte os nexos constitutivos já indicados: enquanto processo de divulgação da organização junto aos clientes, engendra o discurso da responsabilidade social dos privilegiados em relação aos desafortunados: enquanto técnica de obtenção de mais-valia, enfatiza a aprendizagem baseada em atividades práticas; e, enquanto processo de moralização de crianças carentes para o trabalho, disciplina-os de acordo com o ideário da empresa.
Os alunos da fundação são retirados da marginalidade e da pobreza que vivenciam e conduzidos para a marginalidade da venda de força de trabalho para o capital. Portanto, são inseridos numa relação de dependência.
A organização pretende que futuramente todos os novos funcionários tenham sido formados pelas escolas do banco. no entanto, ainda é insuficiente o número de trabalhadores que as escolas enviam anualmente para suprir as necessidades da organização em termos de novas contratações. Por esta razão, o processo de seleção de pessoal é realizado concomitantemente, preenchendo vagas que as escolas ainda não conseguem suprir.
Os critérios norteadores do processo de seleção indicam sua importância política na socialização do trabalhador do banco. O assunto seleção de pessoal não será abordado mais profundamente neste texto para seja possível a manutenção do foco no tema educação corporativa.
O treinamento para a carreira fechada, é abordado como um processo que encontra nos critérios de seleção de pessoal a definição das características da população sobre a qual desenvolve seus programas. A seleção procura privilegiar a formação do trabalhador coletivo politicamente mais frágil, capaz de se submeter e aderir a princípios organizacionais determinados.
A partir do conhecimento destas características e dos objetivos organizacionais mais amplos, o treinamento adequa seus programas, conteúdos e valores.
A base sobre a qual se assenta o processo de treinamento na organização enfocada é o sistema de carreira fechada.
Por esta razão, o treinamento assume relevância maior. Não se trata apenas de formar profissionais capazes para seus cargos, mas, mais do que isto, de despertar-lhes todo seu potencial de submissão à ideologia da empresa, por entendê-la como degrau para ingresso e promoção na carreira.
Desta forma, o exercício do poder se expressa de forma menos custosa em termos de conflito.
O sistema de carreira fechada é predominante nas organizações que, mais intensamente, exigem de seus membros obediência e respeito às normas e valores por elas elaborados, segundo Pinto em mil novecentos e setenta e cinco.
O ingresso na organização se dá, preferencialmente, enquanto o candidato é jovem, através dos cargos de nível hierárquico mais baixo ( contínuo ou escriturário ).
A promoção na carreira fechada é função do mérito do funcionário. A sua mensuração é realizada pela chefia imediata, através da observação quando à produtividade, obediência e a normas e valores da empresa, dedicação ao trabalho ( entendida como disponibilidade para realização de qualquer tipo de tarefa ) e cumprimento de jornadas de trabalho mais longas do que as previstas em lei.
A presidência do banco é insistentemente apontada como o limite a que qualquer contínuo pode aspirar na carreira. O atual presidente constitui um exemplo sempre lembrado desta possibilidade, posto que começou a trabalhar no banco, como escriturário, desde sua fundação em mil novecentos e quarenta e três.
O poder disciplinar no cotidiano organizacional é exercido por meio de três instrumentos: regulamento interno, declaração de princípio e vigilância hierárquica.
O regulamento interno, enquanto traçado dos contornos do homem disciplinado é introduzido nas organizações, na determinação da forma e do conteúdo das regras e princípios que regem as relações no seu interior, procuram apresentá-los como uma necessidade, como ordem das coisas, acima da usa própria vontade. No entanto, através delas procuram organizar as relações contraditórias enter os grupos sociais existentes, assim como os conflitos oriundos da lógica interna, segundo Pagès, em mil novecentos e oitenta e um.
Segundo Pagès, sem cessar, a organização estabelece mediações entre as contradições dos grupos sociais internos e externos que as tocam. Seus dirigentes se apresentam como os oráculos da necessidade, sendo que são realmente os agentes mediadores contingentes das contradições externas a eles. É dentro da sua capacidade de disfarçar, de ocultar, através de sua ação mediadora, dos processos contraditórios que vão determinar seu nascimento e sua existência, que se encontram os fundamentos de sue poder. Um dos mecanismos de poder consiste em apresentar como ordem das coisas suas respostas singulares às contradições que evidencia.
A regulamentação é um instrumento eficaz de poder, posto que define a normalidade em termos de comportamento. Desta forma, homogeneíza a todos permitindo a classificação e a hierarquização.
Inicialmente, o regulamento interno do banco refere-se à higienização e boa aparência do trabalhador e do local de trabalho.
Aparentemente, esta característica não difere da disciplina articulada por outras organizações burocráticas. No entanto, algumas considerações se fazem necessárias.
No banco, a higienização do espaço físico e do funcionário atinge elevado grau. Inúmeros são os registros realizados por funcionários de qualquer nível hierárquico sobre a severidade com que este item é entendido na organização.
Como salienta Pinto, as imposições quanto ao corte de cabelo e vestuário possuem uma função de nivelamento. Elas representam a homogeneização preliminar de que a instituição precisa para instaurar sua hierarquia e compensar os méritos individuais posteriormente. A disciplina, salienta o autor, somente poderá efetivamente submeter seus reais destinatários se, aparentemente, ela submeter todos.
O banco recruta seus funcionários entre as famílias de baixa renda: exerce o papel de sociabilização de segmentos pobres da população: moraliza-os para o trabalho. Para tanto, procura discipliná-los dentro de princípios higienizadores moral e fisicamente.
O papel restaurador da dignidade do trabalho também é reservado á higiene exigida em regulamento tanto da pessoa do funcionário como do seu espaço de trabalho. Da mesma forma, procura atribuir-lhe função socializadora, através da ideia de comunidade de trabalho submetida em todos os níveis, às mesmas regras e imposições.
Procura-se, assim, transmitir o ideário de harmonia social, de ausência de conflitos, e dignidade no espaço de produção.
Mecanismos preventivos de conflitos oriundos da relação antagônica capital-trabalho são engendrados de diferentes formas. Procura-se desenvolver a harmonia social necessária para a canalização de energias para o trabalho.
Vários itens do regulamento interno procuram impedir o surgimento de conflitos de qualquer natureza.
Por esta razão, proíbe-se que sejam estabelecidas discussões e determina-se que cliente e coletas sejam tratados com urbanidade e respeito, segundo o artigo vinte e dois, alíneas c e d do referido regulamento. Proíbe-se também o funcionário de participar de assuntos de cunho político ou religioso , entendidos como polêmicos, segundo o mesmo artigo, alínea f do mesmo regulamento.
Desta forma, a organização procura desenvolver através do mutismo o seu trabalho político: submissão do funcionário ao ideário da harmonia necessária para a grande família desenvolver seu trabalho comunitário. Ela realiza um trabalho politico sem marcá-lo como discurso político.
O dever profissional para a comunidade do trabalho se vincula à submissão no que diz respeito à realização de qualquer tipo de trabalho, mesmo não referente á sua função, como presteza e solicitude, segundo o mesmo artigo, alíneas g, m e n do mesmo regulamento.
Pinto salienta que a obediência que leva a entender como natural a execução de qualquer trabalho, mesmo os mais modestos, contribui para entender também como natural a condição de dominados.
A vida pessoal, fora do espeço organizacional, é normalizada pelo banco, segundo o mesmo artigo, o artigo vinte e três e o artigo vinte e quatro, alíneas a, b, f, g e i.
O funcionário deve comprometer-se a comportar-se corretamente em sua vida privada, evitando as más companhias e viver dentro de suas posses, não permitindo que sua atuação na vida particular possa refletir desfavoravelmente no bom nome do banco, segundo o artigo vinte e três, alíneas e e i.
Austeridade na vida privada é o que determinou o banco. E estabelece controles para a verificação do cumprimento de suas normas. Desta forma, o funcionário em cargos de confiança ou responsabilidade deve apresentar anualmente declaração dos bens e das dívidas que possui, mencionando para quem deve e quais recursos possui para pagá-las. Deve também copiar e assinar a declaração de princípios, prometendo cumpri-la integralmente, segundo o mesmo artigo.
Weber, em mil novecentos e noventa, ao analisar o espírito do capitalismo, salienta, que o ideal do homem honesto se encontra vinculado à filosofia da avareza e que as virtudes morais são impregnadas pelo utilitarismo: a honestidade é útil porque assegurar o crédito; do mesmo modo a pontualidade, a laboriosidade, a frugalidade, e esta é a razão pela qual são virtudes. Uma dedução lógica disto seria que, por exemplo, a aparência de honestidade bastaria quando fizesse o mesmo efeito, conforme página cento e oitenta e quatro.
Recrutando seus funcionários entre famílias de baixa renda, pode surgir para a organização uma ambiguidade a ser controlada.
Por um lado, procura despertar o espírito de competição entre seus funcionários, mostrando-lhes as possibilidades que a carreira fechada oferece aos que trabalham com entusiasmo, produzindo cada vez mais e melhor ( só o trabalho pode produzir riqueza ). Porém também destina a estes funcionários a mais rígida disciplina e os mais baixos salários do mercado financeiro ( O homem deve ter a paciência e a disciplina do burro de carga ).
Portanto, se o despertar da necessidade de competir para amealhar riquezas romper os limites da humildade esperada daqueles que já vivenciaram situações caracterizadas pela pobreza, o funcionário pode apresentar comportamentos na vida privada entendidos como indesejáveis pela organização.
Os controles por ela articulados não visam somente a detectar eventuais roubos, mas procuram impedir que a ambição leve o funcionário a gastar além de suas posses endividando-se, e, a partir daí, tornar-se um alvo fácil da desonestidade.
A prática de jogos de azar, como loteria esportiva e corrida de cavalo, é proibida pelo regulamento. Da mesma forma, a especulação em câmbio ou ações da Bolsa de Valores ou de Mercadorias e Futuros ( BM&F / Bovespa ), segundo o artigo vinte e três, item 2, alíneas b e d.
A possibilidade de acumular riquezas só pode ser entendida por meio do trabalho constante, árduo, disciplinado. A esperança de ficar rico através dos jogos e loterias desviaria a energia do funcionário despendida no trabalho, minimizando sua produtividade e, consequentemente, as possibilidades de acumulação da organização.
A moralização para o trabalho das classes populares implica a divulgação de princípios puritanos.
Gramsci, em mil novecentos e setenta e oito, salienta que as iniciativas puritanas, apresentadas por indústrias do tipo Ford Motors Company, têm apenas o fim de conservar, fora do trabalho, um certo equilíbrio psicofísico, que impeça o colapso fisiológico do trabalhador, esmagado pelo novo método de produção. O industrial americano preocupa-se em manter a continuidade da eficiência muscular e nervosa: é seu interesse ter uma mão de obra estável, um conjunto permanentemente afinado, porque também o conjunto humano ( o trabalhador coletivo ) de uma empresa é uma máquina que não se deve desmontar nem avariar demasiadas vezes nas suas peças individuais, sem perdas ingentes, diz o autor em sua página trezentos e vinte e nove.
Nesta perspectiva, o comprometimento das energias nervosas do trabalhador através do consumo da bebida alcoólica foi e tem sido nos dias atuais objeto de determinada proibição por parte das empresas. É necessário manter o trabalhador coletivo distante de hábitos morais que impeçam a canalização de suas forças únicas e exclusivamente para o trabalho.
Por esta razão, a organização proíbe a qualquer funcionário usar imoderadamente bebidas alcoólicas.
A influência que as más-companhias possam exercer sobre o funcionário moralizado para o trabalho também é objetivo de preocupação por parte do regulamento. Procura-se, desta forma, evitar a contaminação daqueles que não possuem valores desejáveis e que podem eventualmente perverter o funcionário, colocando a perder todo o trabalho de moralização realizado anteriormente.
Segundo Gramsci, a intervenção na vida privada dos trabalhadores por parte da organização, controlando como viviam, como gastavam seus salários, levou a uma cisão entre a moralidade dos trabalhadores e a dos outros extratos da população. Gramsci observa que a moral para o trabalho envolveu, além da proibição do álcool, a proibição da vida sexual desregrada, salientando a importância do casamento monogâmico estável, conforme a página trezentos e trinta da obra do autor.
O conjunto de esquemas de controles à distância e coerções diretas podem ter seu custo político minimizado se o funcionário submisso se sentir proprietário da organização. O conflito inerente á contradição capital-trabalho pode ser ocultado pelo discurso igualitário da comunidade do trabalho.
Conforme o artigo vinte e dois, item primeiro do regulamento, os empregados têm por obrigação comunicar ao Conselho Diretor Executivo do banco sem o menor receio, verbalmente ou por escrito, qualquer suspeita de trama ilícita ou de qualquer ato contrário às normas determinadas pelo banco. A denúncia deve-se dar mesmo que envolva superiores hierárquicos. O funcionário não deverá silenciar-se, adverte o regulamento.
Desta forma, o delator pode se promover, posto que seu gesto comprova sua fidelidade para com a empresa.
A declaração de princípios reafirma o ideário expresso no regulamento. Seguindo a mesma linguagem do puritanismo, a declaração seria o catequismo organizacional.
A declaração de princípios das organizações do banco constitui o suporte do ideário disciplinar. Expressa, de acordo com Weber, em mil novecentos e oitenta, os valores contidos no espírito do capitalismo, conforme página cento e setenta e nove da oba do autor.
O autor não define conceitualmente o que entende por espírito do capitalismo. Afirma que a clara compreensão do objeto, por ser um conjunto genérico de relações, deve-se dar através de descrições. para tanto, utiliza-se do documento escrito por Benjamin Franklin, posto que contém aquilo qe procura-se numa pureza quase clássica, conforme página cento e oitenta e dois da obra do autor.
A aproximação entre a declaração de princípios criada pelo banco e a descrição weberiana propicia alguns pontos de reflexão.
O autor aponta que a ideia do dever profissional como aspecto mais característico da ética social na cultura capitalista; acredita que constitui sua base fundamental. Salienta que se trata de uma obrigação que o indivíduo deve sentir em relação ao conteúdo de sua atividade profissional.
A declaração de princípios também encontra no dever profissional a base sobre a qual o banco procura construir sua filosofia, na realidade um verdadeiro ethos.
Declaração de Princípios
Eu, ( nome do declarante ), prometo solene e fielmente, com otimismo e entusiasmo, que seguirei e defenderei os princípios que a seguir declaro:
1) Amar o Brasil, dedicando-me integralmente a ele e trabalhando sempre mais e melhor, até onde minhas forças permitirem;
2) Colocar os interesses públicos, os do banco e demais organizações do banco acima dos meus interesses;
3) Dentro da convicção de que só o trabalho pode produzir riquezas, agir com plena dedicação ao mesmo, com todo o amor, minha disciplina e justa humildade;
4) Respeitar e manter o princípio da hierarquia, condição essencial, quer no Estado, na família e na Sociedade, para o aprimoramento do homem;
5) Com o mais sincero sentimento de amor à Pátria e inspirado sempre nos princípios cristãos, colaborar par a formação de um Brasil melhor, através das Fundações mantidas pelo banco e associados, educando, alimentando, curando, vestindo, formando melhores técnicos e, dentro das possibilidades permitidas, promovendo oportunidades aos brasileiros desafortunados que, através dos tempos, pela inconsciência de alguns e pela indiferença e criminosa omissão de outros, ainda não puderam sair da miséria do analfabetismo;
6) Dedicar-me a atividades construtivas de bem coletivo, entrosadas com as que o banco vem mantendo, ou a outras, com aprovação do Conselho de Administração do banco;
7) Responder, moral e materialmente, pelos eventuais i involuntários erros que venha a cometer;
8) Tratar a todos com urbanidade e respeito, principalmente os mais humildes e necessitados;
9) Integração total à filosofia de vida e de trabalho do banco, respeitando e fazendo respeitar seus estatutos e Regulamento Interno, bem como os de seus associados.
Uma organização que procura moralizar as classes populares para o trabalho encontra na introjeção do sentimento do dever profissional uma resposta às contradições que oculta.
Assim procura transmitir a seguinte ideia: se o funcionário, com otimismo e entusiasmo seguir e defender os princípios que garantem a sua submissão ao trabalho de forma integral, até onde suas forças permitirem, com todo o seu amor, disciplina e justa humildade, reparando os erros que cometer e integrando-se totalmente ao ideário da instituição, poderá obter o conjunto de recompensas que a organização pode lhe oferecer.
Weber, em mil novecentos e oitenta, salienta que as virtudes, no ethos capitalista, adquirem um caráter utilitarista. A dedicação integral ao trabalho e a submissão total à filosofia do banco são entendidas como virtudes úteis para a produção de riquezas.
A riqueza, para os funcionários moralizados para o trabalho que já vivenciaram dificuldaes sociais e econômicas, pode ser entendidas como sinônimo de segurança. Esta, a organização procura oferecer através do discurso da manutenção do emprego e da perspectiva de ascensão na carreira.
Assim sendo, a instituição oculta a apropriação que realiza das mais longas jornadas de trabalho remuneradas pelos menores salários pagos no mercado financeiro.
A existência de riqueza como produto do trabalho é expressa como um processo que atinge a todos, igualmente: riqueza comunitária, socializada. e a concentração da riqueza nas mãos de poucos é justificada pelo discurso da benemerência necessária àqueles que a amealharam.
Para impedir o surgimento de conflitos na relação capital-trabalho, procura formar homens limpos moral e fisicamente: homens virtuosos em relação ao dever profissional. Organiza um império disciplinado. Por outro lado, através do discurso da caridade cristã e do amor ao próximo, engendra respostas singulares às contradições que sustentam as relações de produção que se desenvolvem no seu interior.
Vigilância hierárquica: o controle através da visibilidade
Tendo como critério de promoção na carreira e a percepção da chefia quanto ao grau de conhecimento sobre a filosofia do banco, é estabelecido na relação hierárquica superior-subordinado alto grau de dependência do segundo em relação ao primeiro.
O critério não se refere só a itens mensuráveis quantitativamente, mas, principalmente, a comportamentos observáveis no cotidiano do funcionário. Portanto, a vigilância realizada pela chefia assume uma relevância maior, posto que é determinante na possível promoção hierárquica do funcionário.
A partir do momento em que o grau de adesão á filosofia do banco está sendo observado, a relação entre ambos se torna possível de ser caracterizada com maior ênfase pela arbitrariedade e despotismo. Toma-se, pela insegurança que desperta nos funcionários desejosos de agalgar novos patamares hierárquicos, geradora de atitudes submissas, bajuladoras e comumente delatoras das falhas de colegas ( entendidos como concorrentes ).
Como afirma Foucault, o poder na vigilância hierarquizada funciona como uma máquina na qual a chefia é apenas uma das peças de engrenagem. A vigilância torna-se efetivamente mecanismo do poder disciplinar por não permitir que nada permaneça às escuras: porque tudo é controlado constantemente através dos olhares calculados:
- O banco foi o primeiro a eliminar paredes divisórias, colocando todos juntos trabalhando próximo ao cliente. Negócios de banco tem de ser às claras, diz o fundador, segundo o departamento de organização e métodos do banco.
A arquitetura possibilita o controle, objetivando a permanente utilidade dos gestos e da fala assim como a constante demonstração do conhecimento da filosofia do banco.
A disciplina organiza um espaço analítico, diz Foucault. As pessoas são inseridas em lugares determinados, possibilitando o estabelecimento das presenças e, o que é mais relevante, das ausências.
A mesa, a cadeira, o caixa, constituem as células nas quais os indivíduos são alojados e expostos á vigilância, possibilitando sempre determinar onde estão, o que estão fazendo, assim como avaliar a quantidade e a qualidade do serviço realizado. Permite também estabelecer entre os funcionários comparações que possibilitam informar o grau de adesão dos mesmos às normas e aos princípios da organização, traduzindo entre outros fatores, pelo comprimento de longas jornadas de trabalho.
Além da utilidade em termos produtivos, o espaço celular se torna também politicamente útil, posto que impede que as pessoas se comuniquem sem ser vistas ou ouvidas.
A própria diretoria, situada no edifício-sede, trabalha conjuntamente em torno de uma única mesa. São vinte e um diretores, sem salas provativas, em permanente processo de troca de informações, e sobretudo, de controle único.
A disciplina, através da vigilância, também produz saber. O mesmo olhar controla, registra as informações sobre o desempenho de cada um e as transfere aos pontos mais altos da hierarquia do poder.
É por esta razão que Foucault salienta que o poder não deve ser estendido exclusivamente através de sua ação repressiva. O poder produz conhecimento utilizável para corrigir, aperfeiçoando a ação que o determina.
A informação sobre a produção de cada funcionário, após ter sido analisada pelo departamento de organização e métodos, retorna ao local onde o trabalho está sendo desenvolvido, determinando um novo tempo de trabalho ( intensificação ): um novo conjunto de procedimentos ( racionalização ): um novo espaço de trabalho ( transferências ). De toda forma produz um funcionário mais útil para a organização.
A disciplina individualiza os homens através da vigilância e das medidas comparativas por ele produzidas. Numa organização de carreira fechada, ele passa a ser a base sobre a qual é construída a posição hierárquica de cada funcionário ou sua exclusão da instituição.
O dia nacional de ação de graças: o reforço do rito
Todo ano, no final do mês de novembro ( quarta quinta-feira do mês ), ao meio-dia, na Cidade de Deus, o banco realiza a festa comemorativa do dia nacional de ação de graças. As emissoras brasileiras de rádio e televisão transmitem ao vivo a cerimônia para todo o Brasil.
De a acordo com Lenz, em mil novecentos e oitenta e quatro, a festa religiosa é entendida como espaço possível de expressão de interesses religiosos de classe. Surgem, enquanto ritual, sob a égide e controle do sistema social. ( Da Matta, em mil novecentos e oitenta e três, página cinquenta e seis ).
Da Matta salienta que os rituais não devem ser tomados como momentos que diferem daqueles que vão constituir o cotidiano: O ritual é a colocação em foco, em close-up, de um elemento e de uma relação. Nesta perspectiva é mais ou menos inútil classificar os ritos quando não se entendem bem as relações básicas de que são construídos. E de fato, entender as relações básicas do mundo social é automática e simultaneamente entender o mundo ritual. Os rituais dizem as coisas tanto quanto as relações sociais ( sagradas ou profanas, locais ou nacionais, formais ou informais ). Tudo indica que o problema é que, no mundo ritual, as coisas são ditas com mais veemência, com maior coerência e com maior consciência. Os rituais seriam instrumentos que permitem maior clareza às mensagens sociais, conforme página sessenta do autor citado.
Através do ritual, a ideologia da classe dominante, presente explícita ou implicitamente nas teias das relações sociais da organização, adquire maior intensidade, clarificando alguns aspectos ou ocultando outros.
Em face das desigualdade sociais acentuadas, torna-se relevante para a organização que através do rito se evidencie a união entre os homens, ocultando o conflito de classes.
Para tanto, salienta a unidade a nível nacional, organizacional e familiar.
Já no tema da primeira festa de ação de graças ( em mil novecentos e setenta e dois ) surge a questão da união entre os homens através da fé: Fortalecimento da unidade nacional, pela unidade do sentimento da fé, segundo informe do banco em mil novecentos e oitenta e quatro.
Os temas escolhidos para a ritualização da festa nos diferentes anos falaram de anseios do homem em geral, independentemente de sua situação de classe: Criança foi tema para o ano de mil novecentos e setenta e nove, sucedendo-se Ecologia em mil novecentos e oitenta, Brasil em mil novecentos e oitenta e um, Paz em mil novecentos e oitenta e três, Nossa gente em mil novecentos e oitenta e quatro e Trabalho em mil novecentos e oitenta e cinco.
A ritualização da festa consiste em coreografias realizadas por crianças da fundação do banco alusivas ao tema e poesias, orações interpretadas por artistas reconhecidos pelo público ( rádio e televisão, principalmente novelas ).
Inserida numa sociedade de classes, a organização cira o rito articulando o discurso da união entre os homens. Para tanto, utiliza-se de mecanismos de reforço, destacando os valores: dedicação ao trabalho, humildade, abnegação, conformismo e principalmente, credibilidade na recompensa da vida eterna.
É maravilhoso saber que os os que choram
Serão consolados
Os humildes serão exaltados
no milagre de Tua misericórdia!
É maravilhoso, Senhor, podermos ter a certeza
da recompensa futura da Vida Eterna
Sabermos que as coisas efêmeras não têm comparação
Com a bênção que virá após nossos sofrimentos!
Graças, Senhor, pela paz das almas e dos povos
Que se abrirá sobre o mundo em pétalas de luz
Depois das aflições, das lutas e das guerras!
Graças, Senhor, pela graça da Fé
Que nos reconcilia com tua justiça
E nos permite a graça de Te agradecer.
Poema de autoria de Miguel Obiol, conforme informativo do banco em mil novecentos e oitenta e dois.
Conclusão
O recorte que a organização bancária realizou na sociedade para selecionar pessoal e compor seu trabalhador coletivo privilegiou o trabalhador não politizado, e por razões econômicas e sociais, temeroso em relação à perda do emprego.
No interior de uma sociedade na qual a oferta da foça de trabalho é muito maior do que a procura, o medo do desemprego vivenciado pelos trabalhadores possibilitou uma exploração maior por parte do capital. O medo tende a imobilizar a resistência do trabalhador, assim como a organização de formas de luta e ressitência.
Assim sendo, a organização desenvolveu um processo de socialização do bancário que através da trajetória educação para o trabalho, seleção e treinamento de pessoal, regras e princípios de conduta a serem respeitados dentro e fora do espaço bancário, procura mobilizar aspirações profundas do trabalhador no sentido de lhes fornecer uma resposta às contradições que vivencia na sociedade e na organização. Isto quer dizer que todo contínuo pode sonhar com a presidência desde que trabalhe com total dedicação, de acordo com o ideário organizacional. A carreira fechada é um mecanismo fundamental na elaboração desta forma de poder disciplinar.
o bancário do referido banco, apesar de se encontrar inserido em uma categoria que se tem destacado quando à sua capacidade de luta no Brasil, dela se distingue pelo baixo índice de adesão aos movimentos reivindicatórios existentes.
Isto não quer dizer que no seu interior não sejam observadas formas de resistência do trabalhador e que o sistema de poder seja efetivamente totalizante, como se pretende. Porém, em face das características do trabalhador coletivo do banco., sua capacidade de luta tem disto muito aquém da categoria como um todo, possibilitando á organização lhes exigir as mais longas jornadas de trabalho remunerada pelos menores salários do mercado.
O que se pretende salientar é que a identidade do poder nas relações de trabalho não pode ser atribuída a pessoas ou a maquiavéis que se utilizam de instrumentos que se sobrepõem cronologicamente a outros. A verdadeira identidade da construção de um sistema de poder encontra-se em contextos sociais, econômicos e políticos que possibilitam e informam a fisionomia que este assume. Contexto este no qual está presente e contido a resistência e a capacidade de luta dos trabalhadores.
As formas que assumem as relações de poder num determinado momento histórico estabelecem uma relação dialética com o contexto referido, ou seja, ao mesmo que é por ele produzido, lhe reproduz.
O verdadeiro sujeito do poder está na dinâmica da luta de classes. Rostos de herois do trabalho ou do capital surgem quando homens interpretam o contexto no qual se inserem e viabilizam vantagens possíveis para a classe a qual pertencem no interior desta luta.
Referência
Fleury, Maria Teresa Lume et al. Cultura e poder nas organizações. 2ª edição. São Paulo, Atlas, 2010 ( pp. 96-111 ).
Mais em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário