terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Aquicultura e pesca: atividade sustenta muitas famílias em SC

Pescadeiras como sinônimo de pescadoras. Assim se definem as mulheres que vivem da pesca artesanal no Estado de Santa Catarina ( SC ). No vocabulário delas, a palavra ganha a mesma terminação de outros ofícios, como parteira, benzedeira, cozinheira. São elas as protagonistas deste texto, que mostra como é profunda a presença feminina nos mares catarinenses.

Josilene Maria da Silva, com trinta e quatro anos de idade, a Josi, mora no bairro Armação do Pântano do Sul, em Florianópolis ( Capital do Estado de SC ). É filha, neta e bisneta de pescadores. Casada com um servidor municipal aposentado e mãe de Enzo, cinco anos de idade, carrega na memória a imagem da época em que o bebê, com apenas três meses de idade, era amamentado no meio da pescaria. Como precisava passar muitas horas no mar, o jeito era improvisar uma pequena cama no fundo da embarcação. O menino gostava do balanço das águas. Passava a maior parte do tempo dormindo.

Mais jovem, Josi trabalhava em tosa e banho de animais. Também foi ajudante de pedreiro de um tio. Estava meio perdida sobre o que fazer quando, certo dia, foi ajudar o irmão a recolher as redes. Gostou tanto que nunca mais parou.

— O mar é uma terapia que limpa a alma e acalma os prantos — compara.

Josi foi a décima a nascer numa família de onze filhos. Ela já pescou com o pai e diferentes irmãos. Atualmente é parceira de um deles, e a única das mulheres em atividade. Um dos encantos da atividade parece estar na alternância das rotinas:

— Todo o dia tem uma situação nova, uma pescaria que surpreende, uma história diferente. É assim a vida de uma mulher pescadora.
Uma rotina de quem sai de casa à tarde, passa a noite no mar e volta na manhã seguinte. Josi reconhece ser uma atividade pesada. Além de esforço físico, exige muito empenho mental e psicológico. Talvez por isso já tenha decidido: vai se aposentar — deixar de pescar profissionalmente — aos quarenta anos de idade.

— A mulher sente mais do que o homem, que tem uma estrutura física mais forte. Além disso, não é só o mar: é casa, é filho, é embarcação, e comércio do peixe. A gente não tem só um emprego, tem quatro, cinco.

Sobre o futuro do filho que se mostra apaixonado pelo mar, diz:

— Mesmo que ele queira pescar, vai ser só por lazer e não por necessidade. Vai ter que estudar para não depender da pesca como meio de sobrevivência.

Quinhentos metros de rede, uma corvina e pedido à Iemanjá

A reportagem acompanhou uma saída de Josi para o mar. Foi em sete de agosto, um dia de céu limpo e ventos favoráveis. Além de três jornalistas, o irmão, o filho e ela estavam no bote. Cinco horas depois, voltaram para a retirada das redes. Dos quinhentos metros de malha saiu apenas uma corvina.

— É assim a vida de pescador — contava, enquanto colhia a rede.

Por isso, a família decidiu investir no turismo e faz transporte de visitantes para a Ilha do Campeche. Isso ocorre nos meses de verão para equilibrar as despesas com redes e embarcação que trabalha nos outros meses. Para ela, a escassez das safras está associada às mudanças climáticas e cita o aquecimento global como um dos fatores. Mas também a pesca descontrolada. Recorda dos tempos em que o pai colocava uma rede de corvina de trinta panos, o que já era considerada uma grande extensão. Hoje, um barco de pesca com guincho faz o mesmo trabalho usando duzentos panos.

— Não há limite de malha para capturar um peixe, eles ( modalidade industrial ) não estão perdoando nada: nem berçário, nem criadouros.

Para Josi existem duas situações bem distintas: enquanto o artesanal espera o peixe vir na costa, o industrial pega toneladas de espécies de diferentes tamanhos.

Josi diz que há quem diga que o peixe nunca vai acabar, e alerta:

Tem outra coisa que incomoda Josi: a sujeira no mar. Na maioria das vezes tem mais galho e tronco de árvore nas redes do que peixe.

— O pessoal invade a praia, constrói casa, vai ocupando aqui e ali. A água leva o entulho, mas um dia a natureza devolve.

Josi usa como exemplo a destruição de casas pela força da maré, em dois mil e dez, na Armação do Pântano do Sul. O prejuízo foi tão grande que Exército e Marinha tiveram formar barreiras de contenção com sacas de areia. No lugar das construções antes havia dunas.

— O mar não tira nada de ninguém, só está pegando o que é dele. A natureza é assim, tem o ciclo dela. Ou a gente se adapta, ou a gente vai andar de rolo nas mãos dela.

Josi não se considera uma pessoa religiosa. Mas conta que vez que outra faz um pedido para Iemanjá, entidade que no sincretismo religioso significa a Rainha das Águas.

— Iemanjá, dá uma mexidinha no fundo do mar, dá uma reviradinha para mandar umas coisinhas ( peixes ) pra nós que estamos precisando.
Mas também acha tempo para agradecer.

— Sempre quando vem peixe, pouco ou muito, eu agradeço. Acho que vem o que tem que vir naquele dia.

Dependesse de Vera Lucia Bernardo Laureano, de cinquenta e oito anos de idade, ela moraria no Farol de Santa Marta, em Laguna. O olho rubro, que na escuridão da noite pisca como aviso aos navegantes, tem dela um afeto que não se apaga. Sentimento nascido nos tempos de infância, época em que subia correndo o morro onde está assentada a edificação para ajudar o avô, um já cansado servidor da Marinha do Brasil, a dar-lhe corda. Era assim, sem luz elétrica ou baterias, que no passado se acendia a lâmpada que se tornara visível a trinta e cinco quilômetros a olho nu e, com equipamento, a noventa quilômetros.

— O farol é uma bênção para os pescadores — diz Vera , enquanto com a tarrafa na mão caminha sobre as pedras dos molhes da Praia do Cardoso, a principal do lugarejo.


Passos lentos, rosto ao vento, olhos fixos no movimento da água. Vera é íntima da região. Teve um avô faroleiro e outro pescador, profissão também do pai e do falecido marido. Natural a identidade com as coisas do mar, e que diga ser pescadora desde sempre.

Na época, explica, a relação dos nativos com a lanterna no topo do morro era diferente. Havia mais proximidade, pois o lugar não era cercado e o acesso fazia parte da vida dos moradores:

— Hoje dá para ver o tempo (previsão) até no celular, mas antes não. O pescador subia até lá em cima, já que a Marinha passava um rádio informando o faroleiro, e daí eles ficavam em terra ou saíam mar à dentro.
PESCADEIRAS

"A vida nossa é assim"

Cupido, sonhos e luz

O farol serviu de cupido dessa paixão pelo mar:
— Lá de cima eu olhava para o mar e sonhava em sair para pescar, em ir atrás do peixe.
A inconstância das ondas levou os planos. Vieram os filhos e ela teve que cuidar das crianças. As saídas para o mar grosso, como diz, ficaram com o marido. Mas, como num reencontro com a menina de ontem, a aposentada de hoje levanta cedo para ir à praia ver a movimentação dos barcos. Quando algum pescador falta, Vera faz o que mais gosta e os acompanha ao mar. Nem que seja para fazer comida.
— É uma maravilha! É a coisa mais linda quando dão aqueles lanços, e a gente vê aqueles peixes pulando, parece que está sonhando.
Tem vezes que isso acontece à noite, enquanto dorme:
Eu chego a sonhar que estou junto com os peixes, que estou cercando. Aí, quando me acordo, digo às minhas filhas: coisa linda é o cerco!
Vera conta que sente necessidade desse contato.

— Eu gosto de estar com a mão na rede, na caixa de peixe, no peixe.
Para ela, o mar tem poder curativo:

Quando lhe é perguntado o espaço que o mar tem em sua vida, Vera responde:
— O mar? O mar é a minha vida.

E o farol, o olho rubro que pisca no Cabo de Santa Marta?

— O farol? É luz na minha e na vida de todos os pescadores.

Quem visita comunidades pesqueiras se depara também com a realidade da pobreza. A distribuição de renda desigual faz diferença nas moradias, nas embarcações, na quantidade de redes e outros equipamentos de pesca. Muitas famílias moram em lugares onde não há serviços públicos, como coleta de lixo. A destinação incorreta incide na atividade, pois o lixo é descartado em lugares como encostas e manguezais, e carregado pela chuva.

— Já vi tartaruga querendo comer uma sacola de plástico por achar que é uma alga. A gente tem que cuidar do meio ambiente, pois dependemos dele — pede Bárbara dos Santos, com trinta e um anos de idade, que pesca desde a adolescência, e agora com o marido, em São Francisco do Sul.

Bárbara não tem muito estudo, mas consciência para saber que o lixo não ameaça só o mar. A economia e as comunidades pesqueiras também correm riscos. A cada ano, cerca de 10 milhões de toneladas de lixo chegam aos mares e oceanos. Plásticos e derivados, como a sacola que ela evitou que fosse parar no estômago da tartaruga, são os principais detritos encontrados. Há também redes de pesca estragadas e abandonadas pelos próprios pescadores. Assim como pedaços de isopor que também podem ser engolidos pelos animais marinhos.

Consciência, esgoto e restinga


Por sorte, a questão ambiental é comum a muitas dessas trabalhadoras. Há o entendimento de que obras, como saneamento, são de competência do poder público, e isso deve ser exigido. Mas ações pontuais, como separar o lixo em casa e nos ranchos, e não jogar plástico e latas no mar, dependem de cada um.


Nativa e filha de pescadores, ela percebe mudanças na natureza se comparado com tempos atrás. Para a profissional, é importante que as pessoas que retiram o sustento do mar tenham mais consciência acerca da preservação.

— O peixe quer água limpa, não quer poluição. Se não mudar, a gente vai deixar de viver esse momento — conta, mostrando o troféu do dia, caixas cheias de peixes tiradas da Baía da Babitonga.

Uma rua de asfalto separa a casa de Maria Terezinha de Jesus Vieira, de cinquenta e oito anos de idade, das águas do mar. Moradora no Canto da Lagoa, às margens da Lagoa de Santo Antônio, em Laguna, Tereza, como é conhecida, é casada, tem cinco filhos e cinco netos. Quando o assunto é a profissão, ela emprega uma palavra que entre uma redada e outra aparece no vocabulário das artesanais catarinenses.

— Eu sou pescadeira.




Mulher de pouco estudo, Tereza segue a lógica da terminação “eira” presente em outros ofícios — lavadeira, benzedeira, parteira. O raciocínio destampa o baú das memórias dos ancestrais e recolhe uma expressão mais comum em Portugal, berço da nossa língua oficial, que serviu de roteiro para o documentário A Mãe e o Mar ( do ano de dois mil e treze ) sobre as mulheres-arrais. O vídeo conta a história das pescadeiras, mulheres que décadas atrás desafiaram a tradição, conseguiram licença de pesca e com suas vidas mergulharam num oceano antes só navegado por homens. Popularmente, em algumas regiões do Brasil, a palavra "pescadeira" é usada para se referir às mulheres que vendem o pescado.

A vida de Tereza ajuda a explicar o lugar e o papel das mulheres na pesca artesanal. Ela, que aprendeu a pescar com a mãe e depois de casada aprimorou o conhecimento com o marido, o já pescador Paulo Jovino, ensinou a atividade para os cinco filhos.

As noras também são pescadoras. Para Tereza, o que faz não é obrigação, apoio, ajuda:

— É trabalho. 


Usa a própria rotina como exemplo. Vai ao mar todos os dias, incluindo feriados e fins de semana, levanta-se nas madrugadas, cuida da casa, tira carne de siri, descasca camarão, limpa os peixes.

— A gente coloca as redes no final da tarde, antes do sol entrar. Volta no outro dia, antes do sol nascer. É uma vida bem difícil, mas compensada quando dá peixe — diz a profissional, que acrescenta:
— Vem de mãe e passa para a filha. Eu tenho uma filha que pesca comigo, assim como as noras são pescadoras também.
PESCADEIRAS

"Eu gosto muito de flor, mas essa minha pesca é tudo pra mim"

Fé, sobrevivência e lua de mel na embarcação

Tereza tem uma relação intensa com o mar. Das águas tira o alimento, a sobrevivência, a continuidade da vida. Quando chega à praia, molha a mão e faz o sinal da cruz.
Eu falo com a água e converso com o sol. Quase sempre é um agradecimento por tudo que nos é dado.

Tereza diz sentir uma emoção muito grande pelo trabalho que faz:

— Muitas vezes eu escuto para não ir ao mar, pois a gente é mulher, tem saúde delicada, corpo mais frágil. Mas eu deixo casa, faxina, qualquer serviço em terra para pescar.


No dia-a-dia, as parcerias se alternam. Às vezes com o marido, às vezes com uma das filhas. O marido de Tereza se tornou um camarada ( companheiro ) bastante presente.

— O primeiro filho foi feito na bateira, no balanço das ondas, lá fora. Nós estávamos em lua de mel — recorda. Tudo que a família Vieira possui foi resultado da pesca. Casa, galpão, carro, rancho, bateiras, redes.
O avanço dos anos preocupa os filhos. Eles já sugeriram para a mãe diminuir a frequência de ir ao mar, já que com a aposentadoria dela e do marido a situação da família melhorou:

— O mar é tudo na minha vida. Eu mesma digo para os meus filhos: se acontecer alguma coisa, se eu cair na água e morrer eu vou embora feliz.

Vênus, o planeta mais brilhante, ainda cintila no céu de maio quando uma lâmpada se acende na casa de Nair Maria Cabral Mence, com sessenta e oito anos de idade, a Naca. São cinco horas da manhã e a mulher de estatura pequena e voz forte abre a porta. Minutos depois, desce a rua sem saída que leva à Praia da Cruz, em Governador Celso Ramos, agasalhada em casacos e envolta pela escuridão. Os cachorros se assustam e latem. Mas os vizinhos permanecem sossegados. Sabem que é Naca a caminho do mar.

É o começo de mais um dia de trabalho para a pescadora artesanal mais antiga do Canto dos Ganchos, comunidade pesqueira da cidade que fica na Grande Florianópolis. Somam-se cinquenta e sete anos de profissão desde que, aos onze anos de idade, ela começou a pescar com o pai, dono de uma canoa de um pau só na Praia do Cabral, sobrenome da família, hoje Baía das Bromélias, na mesma cidade.


A menina, a mais velha entre seis irmãos, gostava tanto de acompanhar o experiente pescador que nem reclamou de ter que deixar a escola. Tampouco se importava com as marcas das cordas amarrada à cintura para que as largas calças do comandante não lhe caíssem perna abaixo.

— Desde criança minha vida é isso. O mar é um vício que entra na gente e segue por toda a vida — diz a aposentada pelos anos de profissão, enquanto empurra a bateira de madeira para dentro da água.

Naca pesca sozinha. Já teve filhos e amigas como parcerias, mas prefere trabalhar de forma solitária. Uma forma de agradar o mar, que gosta de silêncio.

A pescadora se casou aos dezesseis anos de idade e aos trinta e cinco, ficou viúva e com cinco filhos para criar. Foi o mar, diz, que lhe deu sustento e renda para alimentar e educar as crianças. Formou duas professoras, um pintor e dois pescadores profissionais. Avó de cinco netos e quatro bisnetos, ela brinca:

- Com o mar sou tudo. Sem ele não sou nada.
a tira os peixes da rede

Tubarão, tempestades e os dentes da caranha

Naca tem fotografias que comprovam suas histórias. O maior peixe que pescou foi um cação de 62 quilos. Nesse dia, lembra, precisou de grande esforço para colocar o bicho mais pesado do que ela dentro da embarcação.
— No começo até me assustei, pois o peso era tanto que pensei ser um defunto.

O maior peixe captura por Naca tinha mais de 60 quilos
(Foto: )
O segundo maior peixe capturado foi uma miraguaia de 45 quilos.
Nas redes de Naca também caiu um tubarão de 32 quilos, bicho valente cheio de dentes e que cortou o cabo da tralha da rede.
— Mas eu o peguei: batendo na cabeça com o pedaço de pau que sempre carrego na embarcação — explica.
Entre outras espécies ferozes que capturou, Naca recorda do dia em que por pouco não sentiu a mordida poderosa de uma caranha. Muito agressivo, o peixe dava pinotes dentro do barco mostrando os dentes grandes e afiados.

— Eu corri para a proa e meu filho para a popa, enquanto a danada dava pulos dentro da bateira — recorda.

Naca tem orgulho em falar dos dias em que tirou das redes cento e cinquenta, duzentos quilos de peixes, quantidade que nem cabia na embarcação, que quase afundou. Do tempo em que precisava pedir ajuda para "despescar". Num desses dias foram 12 miraguaias. Total: duzentos e vinte quilogramas.

Com o pai, Naca aprendeu muitas lições. Foi ele também que a ensinou a nadar e a boiar. Ela fez o mesmo com os filhos. Um dos ensinamentos nunca esquecido foi dar as costas para o mar.

Naca também já enfrentou tempestades severas. Numa delas, a força do vento era tanta que arrastou o bote para a Barra do Rio Tijucas, uns trinta quilômetros adiante. Outro susto foi durante um arrasto de camarão.

O motor estava ligado e o barco andava bem devagar. O vento chegou de repente e ela foi jogada com botas e roupa de oleado para dentro d’água. Agarrou-se na rede, e depois no leme.

Mas a cana, a parte de metal que permite a manobra, se partiu, e teve que se segurar no pedaço que restou. Naca não sabe calcular o quanto andou, mas sabe ter sido salva por um pescador.

— Era um conhecido que tinha ido ver as redes. Ele disse que achou estranho: ‘o barco vem sozinho e cadê a Naca?’. Daí foi ver o que tinha acontecido. Aproximou-se e, então, eu soltei o leme e pulei para o bote dele — recorda, com cara de alívio.

Preocupação com mudanças climáticas

Mudanças repentinas no clima intrigam a pescadora:

— Há quarenta, cinquenta anos, a gente se levantava de manhã cedo, olhava o céu e sabia se o vento viria. Hoje, não.

Para Naca, estas variações do clima se devem à poluição causada principalmente pelo desmatamento. Mas ela também acha que o pescador deveria ser mais cuidadoso:

— Eu já tirei muito lixo das redes, principalmente sacolas de plástico e garrafas PET. Não dá para levar e depois jogar fora, é preciso cuidar da natureza se não um dia tudo acaba — avisa.

Preconceito, coragem e muita paciência

Naca ouvia dizer que lugar de mulher é em casa cuidando dos filhos. Mas ela não se rendeu: cuidava das crianças, deixava a comida pronta em cima do fogão à lenha e cedinho saía para o mar. Hoje, é o orgulho da família.

Acostumada a enfrentar tubarões e tempestades, Naca não foge de um assunto assustador: o preconceito contra a mulher pescadora.

Naca observa que a situação já foi pior.

— Ouvi muitas vezes que lugar de mulher é em casa cuidando dos filhos. Eu cuidava deles e pescava. Teve época em que os cinco estudavam, deixava tudo prontinho em cima do fogão à lenha e às seis horas da manhã saía para o mar.

Com tanta experiência, Naca aconselha as mulheres que quiserem entrar para a pesca:

— Em primeiro lugar é preciso gostar do mar, pois não é uma vida fácil. Em segundo, tem que ter coragem para lidar com os desafios. Por último, paciência. A gente precisa entender sobre redes, vento, lua. Mas é o mar quem comanda.

Naca conta sentir orgulho do trabalho, de si própria e de ser chamada para falar sobre a profissão em universidades, congressos, encontros de trabalhadores.

— Sinto que meus filhos também se orgulham da mãe que têm, pois os criei assim, remando e pescando, indo e vindo do mar.

Com seis anos de idade e água acima do umbigo. Assim, e pelas mãos do pai, Paulina Marques de Oliveira se iniciou como pescadora. Estava traçado o destino de vintém da menina que nunca se afastaria do mar. Mais de setenta e dois anos se passaram, e agora a viúva que mora em São Francisco do Sul continua perto da água. Todo dia vai ao mangue, joga caniço, põe as redes. Especializou-se em pescar e limpar um peixe rejeitado por muitos por temor de intoxicação, o baiacu, iguaria disputada por tradicionais clientes donos de restaurantes.

Paulina tem o rosto riscado de ângulos. Resposta de uma vida simples e marcada pelo sol. Recém-amanhece e a rotina da pescaria movimenta a casa onde abriga filhos e netos. Em dias quentes é ela a primeira a sair da cama e a tomar o café-da-manhã. O corpo é frágil, mas os passos rápidos. Não fosse a estatura menor que um metro e meio, a agilidade poderia ser comparada à de um maçarico, pássaro aquático de corpo leve e pernas altas, comum no litoral.

Paulina avisa:

— Estou pronta. Vamos que já é hora, se não a maré baixa e a embarcação encalha.
Um casal de filhos segue a mãe. Isabel, separada e mãe de duas crianças; e Daniel, quarentão solteiro, que puxa o carrinho ( reboque ) levando bateria, galão com diesel, baldes, caniços, redes. Além de uma térmica com café e um pacote com bolachinhas doces.

— Antes eu levava tudo na mão. Mas chegou a idade e as pernas estão mais fracas — explica Paulina.

São em torno de trezentos metros até o porto, onde a bateira de madeira fica amarrada. A embarcação é pequena, antiga, desgastada pelo uso. Antes que o filho ligue o motor, a comandante avisa:

— Tem que esgotar. A gente nunca sabe o que vem por aí — enquanto olha para o céu nublado.

Paulina ficou em silêncio por quase meia hora em que o barco navegou.
— Se eu pudesse, eu morava no mangue — disse, então, enquanto suas mãos castigadas se enterravam na lama em busca de pequenos caranguejos usados como isca.

Foi nesse lugar rico em diversidade, onde rio e mar se encontram, que pela primeira vez Paulina sentiu o cheiro da maresia.

Camboas eram armadilhas utilizadas pelos índios para capturar os peixes durante a maré do mangue. A técnica usa reentrâncias e esteiras que se enchem de acordo com o sobe e desce das águas. Na curva forma-se uma espécie de grandes tanques fora da circulação das águas. O local é procurado pelos peixes para se alimentarem, reproduzirem e fugirem do fluxo contínuo da maré.

— Os peixes vinham e ficavam. A gente voltava para casa cheia de alimento — rememora.

Sustento, aprendizado e agradecimentos

É do mangue que Paulina também continua a tirar ostras e mariscos como parte do sustento, já que o salário de aposentada não é suficiente para as despesas.

Paulina nunca deixou de pescar. Mesmo quando foi empregada numa empresa de pinus, em Joinville, e como doméstica, em Araquari.

— Eu aproveitava a noite, depois de soltar o serviço, para jogar minhas redes no rio. Eu não sei viver longe disso.

Esta proximidade a tornou uma profunda conhecedora da região. Poucas pessoas sabem tão bem sobre as curvas do Rio Parati, em Araquari; a fundura do Canal do Linguado, que liga Baía da Babitonga e o Atlântico; os sambaquis da Ilha Comprida. Também as fases da lua, a hora das marés, o quadrante dos ventos:

— Naquele tempo a gente não aprendia na escola. Era com os pais e com a gente mais velha.

Quando morrer, casquinhas de ostra no féretro

Paulina aprendeu a respeitar as forças da natureza.

— Muitas vezes eu estava pegando iscas e desabou temporal, trovoada que alumiava tudo. A primeira coisa que até hoje faço é enterrar a faca na lama para não chamar o raio. Nestas horas, a gente fica nas mãos da tormenta.

Uma das forças que Paulina diz respeitar é o vento, capaz de virar e jogar a embarcação. Uma vez, estava sozinha e a remo e não conseguia um lugar abrigado. Foi quando diz ter sido inspirada por Deus e entoou os versos:

— Eu nunca tinha escutado isso. Mas também nunca esqueci — explica.
Paulina se declara descendente de bugre, numa referência aos primeiros habitantes da região. Parece confirmar o que diz quando se acoca sobre os calcanhares, posição que varia enquanto joga o caniço dentro d’água. Gosta de pescar no remanso e em silêncio, o que também parece agradar os baiacus que se sucedem a morder a sua isca. Ela avisa:
Quando eu morrer quero casquinha de caranguejo, casca de marisco e de berbigão dentro caixão. Tudo isso como recordação das coisas que já tirei muito por aí.
Os filhos riem, mas já confirmaram que irão atender o pedido da velha pescadora.


São Pedro dos pescadores

O Evangelho conta que Simão era pescador no Mar da Galileia e certo dia, depois de muito tentar e nada pescar, ouviu de Jesus: ‘Você será pescador de homens’. A partir daí, Simão começou seguir Jesus. Pedro é considerado o primeiro Papa da Igreja e tem seu dia comemorado em vinte e nove de junho, sendo o Padroeiro dos Pescadores.

São todos navegantes

A devoção para com Nossa Senhora dos Navegantes começou quando portugueses e espanhóis deram início às grandes navegações. Quando os colonizadores chegaram ao Brasil eles desembarcam com a adoração em Nossa Senhora dos Mares, da Boa Viagem, de Nossa Senhora dos Navegantes. Prova disso é que a grande maioria das igrejas e capelas dedicadas a Nossa Senhora dos Navegantes está situada no litoral do Brasil.

A padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida


Nossa Senhora Aparecida é a padroeira do Brasil. Sua imagem foi encontrada por pescadores no rio Paraíba do Sul, no estado de
São Paulo, em mil setecentos e dezessete.

Iemanjá, a rainha do mar



Para religiões de matizes africanas, Iemanjá é a principal divindade feminina associada às águas, além de ser ligada à fertilidade, à maternidade e ao processo de criação do mundo e da continuidade da vida.

Do agreste pernambucano para as águas frias do Sul catarinense. Assim é a trajetória de Maria Aparecida Mendes da Silva, a Cida, com cinquenta e nove anos de idade, pescadora artesanal profissional. Cida morou vinte e três anos no Farol de Santa Marta, em Laguna ( SC ), onde participava ativamente das atividades pesqueiras e ambientais. Hoje, ela mergulha as redes nas águas salobras da Lagoa de Santo Antônio. Vez que outra, arrisca tarrafear num dos territórios mais concorridos, o canal, onde botos ajudam os pescadores.

— Aqui é um lugar muito bonito, apesar da disputa pelo espaço. Eu evito conflito e fico um pouco distante, pois tem homem que pode se achar o dono do pedaço — diz.




Foi justamente uma atitude machista que levou Cida a se profissionalizar. Lá pelos anos noventa ela resolveu tarrafear dentro do cerco da tainha, o que é permitido pelos pescadores no momento em que a embarcação cerca o peixe na beira da praia. Certo dia, quando isso acontecia, um homem gritou:

— Tu não podes tarrafear. Dentro do lance só tarrafeiam profissionais.

Cida conta que emudeceu. Mas ficou revoltada e decidiu não abrir mão daquilo que havia aprendido a gostar: o convívio na praia.

— Eu senti que era discriminação, porque havia muitos ali, até crianças pescando — recorda.


Um tempo depois ela decidiu procurar o Ibama e providenciar a documentação exigida. Mais tarde a situação se repetiu. Ela se preparava para atirar a tarrafa dentro do cerco quando o mesmo homem voltou a dizer que ali era só para profissionais. Cida deu-lhe o troco. Tirou a carteira de pescadora profissional do bolso e respondeu:

À primeira vista, quem cruza com Jussara Galvão, com trinta e um anos de idade, pelas ruas de São Francisco do Sul, pode achar que ela é praticante de algum esporte náutico, como bodyboard, stand up paddle, windsurfe, surfe. Jovem, cabelos loiros, corpo tatuado, preferência por roupa de neoprene e óculos com lentes espelhadas. Mas a relação dela com o mar não passa por pranchas e velas, mas por bateiras e redes. Jussara vem de uma família de pescadores. Nesta temporada, ela pesca com o irmão.
A parceria se formou porque a cunhada ficou grávida e teve que deixar a pesca que fazia com o marido há nove anos.
— Eu estava desempregada e ele me chamou. Daí eu gostei e fiquei. Pretendo em seguida tirar minha carteira profissional — diz.

Jussara é separada e tem dois filhos pequenos. Quando vai ao mar, as crianças ficam com os familiares que moram na mesma rua. Ela conta que muita gente pergunta se não é cansativo. Até pode ser, mas ela encontrou compensações.

A pescaria não tem salário, exceto no período de defeso.
— Dá para se manter bem sossegada, de boa.

Jussara pesca inclusive aos finais de semana.

— Nesta profissão não tem dia ou noite e toda hora é hora. Mas eu entendi que prefiro estar no mar do que em casa.

Entre diálogos e silêncios, trezentos quilogramas de peixe

Jussara aprendeu a nadar ainda criança. Acompanhando os pais e o irmão, descobriu sobre as marés e os ventos. Ela acredita que hoje percebe mais mulheres pescando do que antes, e que o número não é maior por que o governo dificulta a retirada da carteira profissional.
O irmão José Ariel Galvão conta que tinha preconceito em chamá-la para pescar:

— Eu não botava muita fé nela: toda arrumadinha, ajeitadinha, unha pintadinha, mas eu estava errado, pois ela é muito tranquila e está sempre disposta.


Nem sempre o mar está para peixe, mas já houve dias em que os irmãos tiraram duzentos e cinquenta, trezentos quilogramas. Em outros dias nem molham as redes. Nos momentos de espera, Jussara e o irmão se deixam levar pelo balanço do mar:

— Às vezes a gente conversa sobre tudo, em outras ficamos calados, só olhando para ver se encontramos os peixes e jogar as redes.

Diferente de outras mulheres que desde criança convivem com o mar, Joseide Aparecida Siqueira, a Jô, com quarenta anos de idade, descobriu a atividade pesqueira há cerca de cinco anos. Moradora de Curitiba ( PR ), ela visitava familiares em São Francisco do Sul quando começou a acompanhá-los nas lides com as redes. Viu uma rotina difícil, principalmente por ser ligada às condições do clima. Mas percebeu um lado mais tranquilo do que a correria da cidade. Tornou-se mais uma pescadora na comunidade pesqueira do bairro Paulas.

— Primeiro me apaixonei pelo mar. Depois pelo pescador — brinca, ao lado de Wosly de Paulas, com quem está casada e forma parceria em mais um dia de pesca.


Para Jô, a presença das mulheres na pesca não deve ser vista como uma obrigação. Existiria a possibilidade de ficarem em casa fazendo outro serviço, ou mesmo ligadas à pesca sem a necessidade de embarcar. Mas, para ela, é uma opção. É como se sentisse mais livre ao ver o tamanho do mar e a vida que nele existe.
Jô, a filha adolescente e Wosly se sustentam exclusivamente da pesca artesanal.
— A gente pesca o peixe, faz filé, vende em casa e dependendo da quantidade entrega para a peixaria comercializar.


Com informações de: 

Ângela Bastos, Stefani Ceolla, Aline Costa da Silva, Maiara Santos, Tiago Ghizoni e Jean Carlos de Souza do jornal Diário Catarinense.

Outras informações podem ser obtidas pelo e-mail: angela.bastos@somosnsc.com.br .