Centro do depoimento do ex-chanceler brasileiro Ernesto Araújo na CPI da Covid, nesta terça-feira (18), os ataques de membros do governo federal à China causam consequências diplomáticas diretas e se chocam com a importância do país asiático para o Brasil. Além dos atrasos no envio do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) das vacinas contra Covid-19, os insultos de Jair Bolsonaro, filhos e ministros dificultaram as relações com a China, principal destino das exportações brasileiras.
Matéria do jornal ‘O Estado de São Paulo’ relata que a participação chinesa em tudo que o Brasil vende ao exterior avançou quatro pontos porcentuais em 2020. A parcela subiu de pouco mais de um quarto para um terço das exportações, batendo em 32,3%.
Segundo dados do antigo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Mdic), hoje ligado ao Ministério da Economia, as vendas subiram 7%, de US$ 63,4 bilhões para US$ 67,8 bilhões. E no momento em que as exportações brasileiras caíram de US$ 225,4 bilhões, em 2019, para US$ 209,9 bilhões em 2020, por conta da pandemia.
“O Brasil exportou mais carnes para a China, já que a peste suína lá fez crescer a demanda pelo produto, e também subiu a quantidade de outros produtos básicos demandados por eles no segundo semestre”, explica Welber Barral, estrategista do Banco Ourinvest e ex-secretário nacional de Comércio Exterior.
Enquanto os chineses ganharam terreno nas vendas brasileiras ao exterior, as exportações para os Estados Unidos caíram 27,6%. Foram de US$ 29,7 bilhões em 2019 para US$ 21,5 bilhões em 2020, afetadas pela queda no comércio internacional.
Ao mesmo tempo em que as exportações para a China bateram recorde, as importações de produtos chineses, sobretudo componentes eletrônicos, também cresceram. Em 2020, 21,4% dos produtos importados pelo Brasil vieram de lá, ante 14,1% das compras feitas uma década antes.
“Apesar dos atritos com o Brasil, a China é pragmática e se planeja para o longo prazo. Eles sabem que, da mesma forma que Trump passou, Bolsonaro também vai passar”, diz Barral.
Celso Amorim: “Era para estarmos inundados de vacina!”
Em fevereiro, o diplomata Celso Amorim ressaltou que o Brasil foi parceiro estratégico preferencial da China antes do desastre diplomático bolsonarista. “O Brasil era parte ativa dos BRICS, e dos quatro parceiros originais, três são os maiores produtores de vacina anti-Covid, ou dos fármacos/insumos para a vacina. Índia, China e Rússia. Era para estarmos inundados de vacina! Então você vê o desastre que tem sido a política externa brasileira”, falou em entrevista ao jornalista Ricardo Muniz.
“O Brasil construiu uma relação com a China. Inclusive já no governo militar, com Geisel, deu um salto. Não era uma coisa simples para um governo de direita no Brasil. A China estava saindo do maoísmo e o Brasil percebeu que era muito importante ter essa relação e, em meados dos anos 70, começou a ter”, lembra Amorim.
Em biografia publicada nos anos 1990, o general Ernesto Geisel detalhou as disputas políticas em torno do estabelecimento de relações diplomáticas com China e Angola. Na época, as mesmas forças político-militares que hoje se alinham automaticamente aos Estados Unidos posicionaram-se contra a decisão de Geisel.
“O primeiro problema que tive (com a área militar) foi quando se resolveu reatar relações diplomáticas com a China, no começo do meu governo. O Frota (Silvio Frota) veio a mim, manifestar-se contrário. Outro que no começo também foi contrário foi o Henning, da Marinha. O Araripe, da Aeronáutica, era mais ou menos contra. Todos traziam o pensamento de escalões hierarquicamente inferiores. Reuni os três e lhes perguntei: ‘Por que nós não vamos reatar relações com a China?’ A resposta foi que a China era um país comunista. ‘Por que, então, vocês não vêm me propor romper relações com a Rússia? Se vocês querem ser coerentes, então vamos cortar relações com a Rússia também e vamos nos isolar, vamos virar mesmo uma colônia dos Estados Unidos’”, recordou o general.
Geisel enfrentou a resistência e as relações entre Brasil e China foram restabelecidas em 1974. Naquele ano, foram abertas as Embaixadas do Brasil em Pequim e da China em Brasília. Com a redemocratização, nos anos 1980, Brasil e China fecharam o maior acordo de cooperação científica e tecnológica entre países em desenvolvimento.
“Com essa atual antipolítica e antidiplomacia (e agressão!) nós jogamos isso fora. Não totalmente, porque claro que a China não vai abandonar o Brasil, mesmo que o Bolsonaro fique, porque continua tendo interesses no Brasil”, ressalva Amorim.
Lula e Hu Jintao consolidaram a relação Brasil-China
Ministro das Relações Exteriores durante todo o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Amorim conduziu naqueles anos a consolidação formal do relacionamento diplomático entre Brasil e China. A parceria levou a China a se tornar o maior parceiro comercial do Brasil em 2009, mesmo após a crise mundial de 2008.
O primeiro passo para a aproximação com a China ocorreu em 2004, durante a comemoração do aniversário de 30 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países. Lula visitou a China acompanhado de sete ministros, seis governadores, um senador, dez deputados e uma comitiva de 420 integrantes.
Lula e o presidente chinês Hu Jintao assinaram diversos documentos para fortalecer a cooperação bilateral. Foi firmado seriam implementados projetos nas áreas econômicas-comerciais, científico-tecnológica, social e cultural. Também foi criada a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), que tinha como co-líderes o vice-presidente José de Alencar e a vice-primeira-ministra Wu Yi.
Em novembro do mesmo ano, Hu Jintao retribuiu a visita vindo ao Brasil. O governo brasileiro decidiu conceder à China o status de economia de mercado, sob fortes protestos do empresariado brasileiro, em particular da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).
Lula voltou à China em 2008, para participar da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, e em maio de 2009, quando a China superou os Estados Unidos e se tornou o principal parceiro comercial do Brasil. No ano seguinte, Hu Jintao participou na II Cúpula do BRICS, em Brasília. Em 2010 ocorreu ainda a reunião do foro bilateral ‘Brasil-China: Estratégias de Cooperação e Integração’, no Rio de Janeiro.
Em 2012, as relações foram elevadas ao nível de “Parceria Estratégica Global”. No mesmo ano, estabeleceu-se o Diálogo Estratégico Global (DEG) e firmou-se o Plano Decenal de Cooperação (2012-2021). Os países fundaram conjuntamente o grupo BRICS, o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas.
De US$ 3,2 bilhões em 2001, a corrente de comércio Brasil-China passou para US$ 98 bilhões em 2019 (volume quase igual ao recorde alcançado no ano anterior, de US$ 98,9 bilhões). Em 2019, o Brasil exportou para a China um total de US$ 62,8 bilhões e importou US$ 35,2 bilhões (em 2018, os montantes foram de US$ 64,2 bilhões e US$ 34,7 bilhões).
Os investimentos chineses que já estavam ocorrendo no Brasil intensificaram-se em 2010, chegando a US$ 17 bilhões. Empresas como a Wuhan Iron & Steel Group, Baosteel Group, AOC TPV Technologie Group, ZTE Zhongxing Ltd., China Trade Center, China Aluminium Ltd., Phihong, Baoan, Gree, Jialing, Huawei, ZTE, Citic entre outras, passaram a investir no Brasil, com foco principalmente na indústria siderúrgica.
Também houve investimentos brasileiros na China, que chegaram a US$ 280 milhões em 384 projetos voltados para as áreas de produção de aviões, carvão, bens imóveis, indústria têxtil e indústria de autopeças, além de bancos e entidades financeiras. O Banco do Brasil conta com agência em Xangai desde maio de 2014. Foi a primeira agência de um banco latino-americano na China.
Milton Pomar: “Nunca o Brasil precisou tanto da China”
“Nunca o Brasil precisou tanto da China”, resumiu em artigo no portal do PT o professor, geógrafo e mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas Milton Pomar. Ele ressalta que dois terços do superávit total obtido no comércio exterior brasileiro no ano passado foram obtidos a partir do saldo positivo de US$33,6 bilhões na balança comercial com a China.
“O Brasil precisa tanto da China em 2021 porque ela fornece os insumos para a produção de vacinas pelo Instituto Butantã, e se for possível, também fornecerá a quantidade que falta para atender com duas doses os 90% da população, que permita-nos retornar à vida “normal” mais rápido”, prosseguiu Pomar.
Segundo ele, graças à parceria com a empresa chinesa Sinovac o Brasil hoje fabrica o imunizante para a Covid, algo que ele considera “inacreditável” na atual conjuntura brasileira. “Ainda mais se comparada com a situação estrutural do setor farmacêutico nacional, que importa 95% dos insumos (35% da China e 37% da Índia) que utiliza para a fabricação de remédios.”
“Após tantas experiências importantes de cooperação científica e tecnológica com a China, o Brasil precisa decidir qual estratégia deverá adotar, a partir de 2023, na cooperação entre os dois países. Primeiro, no sentido de descentralizá-la, porque na prática a cooperação até agora tem sido entre São Paulo e a China. Segundo, para aumentar a quantidade de intercâmbios entre universidades e de aprendizado de chinês e português. Terceiro, porque eles têm expertise em áreas fundamentais para o desenvolvimento brasileiro, como o de construção de portos, navios e ferrovias”, conclui o geógrafo.
Com informações de pt.org.br .
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