quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Administração: uma ciência social aplicada

Três e estrangeiros - todos eles norte-americanos - são considerados pelos japoneses os principais responsáveis pela recuperação econômica de seu país depois da Segunda Guerra Mundial e por sua eclosão como um dos principais poderes econômicos do mundo. Edwards Deming ensinou aos japoneses controle estatístico da qualidade e introduziu os círculos da qualidade. Joseph M. Juran lhes ensinou como organizar a produção na fábrica e como treinar e gerenciar pessoas no trabalho. Aquilo que é hoje, a última palavra em técnica importada pelo Japão e a mais excitante descoberta gerencial dos últimos tempos - o sistema de entrega de inventário jus in time ( em japonês, Kanban ) - foi introduzido no país por Juran, que havia sido um elemento fundamental no desenvolvimento da técnica nos Estados Unidos da América ( EUA ), como parte dos esforços de produção durante a Segunda Guerra Mundial.

Peter F. Drucker foi o terceiro destes professores americanos. Sua contribuição, ou assim veem os japoneses, foi educá-los sobre as técnicas de administração e marketing. Drucker lhes ensinou que pessoas são recursos, e não custos, e que, portanto, devem ser gerenciadas para assumir responsabilidades a fim de atingir objetivos pessoais e de grupo e metas de produtividade. Também lhes orientou que, para funcionar adequadamente,a  comunicação deve ser feita de baixo para cima; mostrou a importância da estrutura, mas também a estrutura que deve seguir a estratégia; ensinou que a alta administração é uma função e uma responsabilidade, em vez de um posto e um privilégio. E também lhes orientou que o propósito de um negócio é criar um cliente e que uma empresa somente existirá em função do mercado.

Os japoneses poderiam ter aprendido todas estas coisas nos livros de Drucker, e com efeito, são eles os leitores mais ávidos de Drucker - alguns destes livros de administração venderam proporcionalmente muito mais cópias no japão do que nos EUA. Mas foram os seminários de três a quatro semanas que causaram mais impacto. A partir do final dos anos cinquenta até meados dos aos oitenta, eles eram organizados a cada dos anos e dirigidos a altos executivos e funcionários do governo. A eficácia nestes seminários, contudo, não era decorrente de conhecimentos sobre as técnicas de administração, mas de interesse em arte japonesa e em familiaridade com a história.

Este interesse começou em mil novecentos e trinta e quatro, quando Drucker ainda era um jovem economista em um banco de Londres, em consequência de uma visita puramente acidental a uma exposição de arte japonesa. Drucker ficou fascinado e isto o levou a perguntar: O que, na história, sociedade e cultura do Japão, explica a habilidade de seu povo ter antecipado, algumas vezes com séculos de antecedência, as mais recentes tendências da arte moderna ocidental, a começar pelo impressionismo e chegando ao expressionismo, ao cubismo e à arte abstrata?

Assim, logo deparou-se, cara a cara, com um mistério que, nem chegou a ser devidamente explicado: Como foi que os japoneses, independentemente de todos os povos não ocidentais, conseguiram construir um país e uma economia modernos, com base em instituições e tecnologias importadas do ocidente e, ainda assim, ao mesmo tempo, manter sua identidade e integridade básicas? À primeira vista, nada que os japoneses tenham feito no século dezenove pareceu diferente do que todos os outros povos fizeram na mesma época. Os novos reinos dos Bálcãs, como o da Bulgária, as repúblicas sul-americanas ou a Pérsia, importaram, a mesma forma, uma ampla variedade de instituições ocidentais - um parlamento e uma Marinha modelados segundo o que existia na Grã-Bretanha; um exército como o da Prússia ( antiga Alemanha ); uma monarquia constitucional, ministérios de governo e educação universal à imagem dos alemães; universidades como nos EUA; sistema bancário segundo os modelos francês e alemão; e códigos legislativos copiados da Alemanha, Suíça e França. Entretanto, somente no japão estas importações estrangeiras pegaram. Além disto, floresceram como instituições modernas eficazes e, ao mesmo tempo, serviram para manter o Japão tão distinto, claramente destacado e indissolúvel quanto era na época em que permaneceu totalmente isolado de interações com o mundo exterior.

Drucker chegou a dizer sempre ter se sentido atraído pelo sucesso inesperado. Em sua experiência, esta é a chave do entendimento. A Drucker, ocorreu á época, que não houve nada mais inesperado nem um caso de sucesso mais peculiar que o do Japão após a Restauração Meiji, ocorrida em mil oitocentos e sessenta e sete. Contudo, Drucker logo teria se dado conta de que esta não havia sido a primeira conquista japonesa deste tipo. O país tivera um caso de sucesso muito semelhante, mil e duzentos anos antes, quando adotaram as instituições e as religiões do que havia sido a civilização mais avançada do mundo, a China da Dinasta T'ang, e usaram isto para criar governos, sociedade, cultura, vida religiosa e arte totalmente diferentes e únicos. E repetiram este sucesso diversas vezes, em escala menor, em sua história subsequente. Quanto mais Drucker investigava esta questão, mais deslumbrado ficava. Contudo, o que se fez mais claro foi que as conquistas dos japoneses se alicerçavam em sua capacidade única de utilizar ferramentas importadas, fossem elas instituições sociais ou técnicas materiais, para incorporar os valores japoneses e atingir os objetivos do país.

Assim, na primeira vez que Drucker se viu trabalhando com altos executivos do governo e de empresas japonesas, foi natural que começasse a conversa com a seguinte pergunta: "Como é possível que seus valores, suas tradições, sua cultura e as crenças a elas relacionadas sejam usados para desempenhar as tarefas objetivas e impessoais de uma economia moderna e captar modernas tecnologias para o desempenho social e econômico?" Em seus primeiros livros, Drucker havia destacado que o seguro-desemprego no ocidente - originalmente, uma invenção britânica - protegia a renda do trabalhador, mas não satisfazia suas necessidades de segurança psicológica e social. Isto - argumentava Drucker - exigia também segurança no emprego. Seguia afirmando que a necessidade de segurança demandava a elaboração de políticas salariais e de emprego, adequadas ao ciclo familiar e às suas necessidades. Finalmente, Drucker apontava que igualmente essencial era a flexibilidade de custos de mão de obra.

Portanto, como Drucker conhecia um pouco de história japonesa, era capaz de ajudar os líderes do país que haviam participado de seus seminários a trabalhar  a combinação de alta segurança no emprego, alta flexibilidade da força de trabalho e uma estrutura salarial ajustada ai ciclo familiar e às suas necessidades - a combinação que, desde então, ficou conhecida no Ocidente como emprego vitalício e que, por setenta anos, deu ao Japão - um país cuja história, até a Segunda Guerra Mundial, tinha várias ocorrências de violentas guerras de classe e de sangrentas revoltas de trabalhadores - uma inédita cooperação e harmonia industrial. Da mesma forma, a única razão pela qual o conceito de marketing que Drucker apresentou em seus seminários pegou no Japão - enquanto nos EUA, seu país de origem, ainda é alvo de muito debate, mas pouca aplicação - foi certamente o fato de que o marketing como técnica podia ser incrustado na ética confuciana ( * vide nota de rodapé ), profundamente arraigada, de relacionamentos mútuos. Uma venda para um cliente cria, portanto um relacionamento e, com ele, um compromisso permanente.

Drucker dizia ter chegado a ser demandado a explicar o sucesso dos japoneses, especialmente quando comparado aos aparentes problemas de desempenho das empresas americanas nestes últimos anos de sua vida. Uma das razões para a diferença não é, como se acreditava, que os japoneses não estejam preocupados com o lucro ou que suas empresas funcionem com menor margem de lucro. Isto é um mito. Na verdade, quando mensuradas em comparação com o custo do capital - a única mensuração válida para a adequação do lucro de uma empresa - nos últimos cinquenta a cinquenta e cinco anos, como regra, as grandes empresas japonesas ganharam mais do que as empresas americanas do mesmo porte. E esta é a razão principal pela qual os japoneses dispõem de recursos para investir na distribuição global de seus produtos. Além disto, em marcante contraste com o comportamento do governo no Ocidente, o governo do Japão, especialmente o poderoso Ministério do Comércio Internacional e da Indústria, está sempre exigindo maiores lucros industriais, de forma que se possa assegurar um fornecimento adequado de recursos para investimentos futuros - em empregos, pesquisas, novos produtos e desenvolvimento de mercado.

Uma das principais razões para o êxito das empresas japonesas é que seus gerentes não começaram estabelecendo um lucro desejado, isto é, não têm um objetivo financeiro em mente. Em vez disto, começam com objetivos do negócio e, especialmente, com objetivos de mercado. Eles começam perguntando "Qual é a participação de mercado de que precisamos para obter liderança?", "De quais novos produtos precisamos par isto?", quanto precisamos gastar para treinar e desenvolver pessoas, montar um esquema de distribuição e prover o serviço requerido?". Somente então, perguntaram: "E qual é o lucro necessário para que possamos atingir este objetivo de negócio"". Então a necessidade de lucro resultante é geralmente bem superior á meta de lucro das empresas ocidentais.

Em segundo lugar, as empresas japonesas - talvez em função da consequência de longo prazo dos seminários de Drucker sobre administração de sessenta ou setenta anos atrás - passaram a aceitar uma visão sua que antes acreditavam ser uma doutrina muito estranha: a de que o objetivo de uma empresa não é ganhar dinheiro. Ganhar dinheiro é uma necessidade de sobrevivência. É também um resultado e uma mensuração do desempenho. Mas, em si, não é desempenho. Como já Drucker chegou a mencionar, o propósito de um negócio é criar um cliente e satisfazê-lo. Isto é desempenho e isto que remunera o negócio. A tarefa e a função da administração como líder, tomadora de decisão e estabelecedora de valores da organização, consistem em tornar produtivos os seres humanos de forma que as capacitações, expectativas e crenças do indivíduo levem ao alcance de seus objetivos por meio do desempenho conjunto.

Estas foram as coisas que Ed Deming, Joe Juran e Drucker, há quase setenta anos tentaram ensinar aos japoneses. Já naquela época, todos os textos americanos sobre administração as recomendavam. Os japoneses, contudo, as vêm praticando desde então.

Drucker chegou a dizer jamais ter escondido técnicas em suas aulas, escritos e consultorias. Técnicas são ferramentas e, sem ferramentas, não há prática, apenas palavras. na verdade, concebeu, ou pelo mesmo, formulou um bom número de ferramentas hoje usadas na administração, como a administração por objetivos, descentralização como princípio da estrutura organizacional e todo o conceito de estratégia de negócio, incluindo a classificação de produtos e mercados.

Os famosos seminários de Drucker no Japão também tiveram grande ênfase em ferramentas e técnicas. No verão de mil novecentos e oitenta e cinco, durante sua visita ao país, uma das pessoas então vivas que havia participado de seu primeiro seminário o lembrou de que, naquela ocasião, a primeira semana de aula foi aberta com a pergunta de um dos participantes: "Quais são as técnicas de análise mais úteis que podemos aprender com o ocidente?" Então, passaram vários dias trabalhando intensamente em análises de ponto de equilíbrio e de fluxo de caixa, duas técnicas que haviam sido desenvolvidas no ocidente em anos imediatamente anteriores e posteriores à Segunda Guerra Mundial, e que ainda eram desconhecidas no Japão.

Da mesma forma, sempre enfatizou em seus escritos, aulas de consultorias a importância das mensurações e dos resultados financeiros. Na verdade, a maioria das empresas não ganha o suficiente. O que elas consideram lucros são, na verdade, custos reais. Uma de suas teses centrais durante oitenta anos foi a de que não se pode nem falar de lucros a não ser que se tenha auferido o verdadeiro custo do capital. E, na maioria dos casos, o custo do capital. E, na maioria dos casos, o custo do capital é muito maior do que aquilo que as empresas - especialmente as americanas - tendem a considerar lucros recordes. Drucker dizia sempre ter sustentado, também, durante toda sua vida - em geral, escandalizando os leitores liberais - , que a primeira responsabilidade social de uma empresa é produzir superávit adequado. Sem um superávit, a empresa rouba da sociedade e subtrai dela e da economia o capital necessário para criar os empregos do futuro.

Além disto, durante mais cem anos do que Drucker conseguia lembrar, sustentava que não existia virtude em ser uma empresa não lucrativa e que, na verdade, qualquer atividade que poderia produzir lucros e não o faz é antissocial. Escolas profissionais eram um exemplo favorito de Drucker. Houve um tempo em que estas atividades eram tão marginais que seu subsídio pela sociedade podia ser justificado. Hoje, elas se constituem em um setor tão grande que precisam contribuir para a formação de capital de uma economia em que o capital necessário para o financiamento dos empregos do futuro são, pode-se dizer, uma exigência econômica central e, até mesmo, uma questão de sobrevivência.

Entretanto, a tese central dos escritos de Drucker, aulas e consultorias tem sido a de que o empreendimento moderno de negócio é uma organização humana e social. A administração, como disciplina e prática, lida com valores humanos e sociais. de fato, a organização existe para um fim que vai além dela mesma. No caso do empreendimento de negócio, o fim é econômico ( o que quer que este termo signifique ); no caso de um hospital, seu fim é o tratamento do paciente e sua recuperação; no caso de uma universidade, é ensino / pesquisa / extensão. Para atingir este fins, a peculiar invenção moderna chamada de administração organiza os seres humanos para um desempenho conjunto e cria uma organização social. Mas, somente quando a administração consegue ser bem-sucedida em tornar os recursos humanos da organização produtivos, torna-se capaz de atingir os desejados objetivos e os resultados externos.

Drucker construiu esta tese de forma natural, uma vez que seu interesse em administração não começou com uma empresa. Na verdade, tudo teve início quando Drucker decidiu se tornar escritor e professor, em vez de continuar em sua promissora carreira como banqueiro de investimentos. Seu interesse em organizações modernas, empresa e administração começou com uma análise da sociedade moderna e com a conclusão, à qual chegou por volta da Segunda Guerra Mundial, de que as organizações modernas, especialmente as grandes corporações de negócio, estavam rapidamente se tornando os novos veículos de integração social. Elas eram as novas comunidades, a nova ordem da sociedade, em que os tradicionais veículos de integração - sejam as pequenas cidades, as associações profissionais ou a igreja - haviam se desintegrado. Então, Drucker começou a estudar administração, certamente com consciência para resultados econômicos, mas também buscando princípios de estrutura e organização, princípios constitucionais, além de valores, compromissos e crenças.

Existe muita conversa nos dias de hoje sobre cultura da empresa. Contudo o livro de Drucker The Practice of Management, publicado há mais de setenta anos, termina com um capítulo sobre o espírito de uma organização, que diz tudo o que está escrito em best-sellers atuais, como Vencendo a Crise. Desde o começo, Drucker escreveu, ensinou e deu consultoria sobre o fato de que a administração deve ser focada para fora no que diz respeito á missão e aos resultados da organização, e focada par adentro no que se refere à estrutura, aos valores e relacionamentos que dão condições ao indivíduo de atingir seus objetivos.

Pro esta razão, desde o princípio, Drucker dizia ter mantido a opinião de que a administração deve ser uma disciplina, um corpo organizado de conhecimento que possa ser aprendido e, talvez até ensinado. Em todos os seus principais livros, começando por Concept of the Corporations ( de mil novecentos e quarenta e seis e Practice of Management ( de mil novecentos e cinquenta e quatro ) e evoluindo até o mais recente, Inonvation and Entrepreurship ( de mil novecentos e oitenta e cinco ), Drucker chegou a dizer ter tentado estabelecer esta disciplina. A administração não é mais ciência do que medicina: ambas são práticas. Uma prática se alimenta de uma larga variedade de verdadeiras ciências. Da mesma maneira que a medicina se alimenta de biologia, química, e física, além de uma série de outras ciências naturais, a administração se sustenta na economia, psicologia, matemática, teoria política, história e filosofia. Contudo, da mesma forma que a medicina, a administração também é uma disciplina por sua própria conta, como seus pressupostos, objetivos, ferramentas, metas de desempenho e mensurações. E, como uma disciplina separada, com identidade própria, a administração é o que os alemães costumavam denominar uma Geisteswissenschaft - embora ciência moral seja provavelmente uma tradução melhor deste ilusório termo do que a moderna ciência social. Na verdade, talvez o antiquado termo ciência humana seja, na visão de Drucker, o mais adequado de todos, embora, no Brasil a administração seja uma das ciência sociais aplicadas. Outras informações podem ser obtidas no livro As fronteiras da administração, de autoria de Peter F. Drucker.

* P.S.:

Nota de rodapé:

A filosofia de Confúcio é melhor introduzida em:

https://administradores.com.br/artigos/%C3%A9tica-a-interdepend%C3%AAncia-a-sinceridade-e-conf%C3%BAcio .

Mais em:

https://administradores.com.br/artigos/administra%C3%A7%C3%A3o-uma-ci%C3%AAncia-social-aplicada .

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