Em que pese o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça ( STJ ) favorável ao uso do Incidente de Deslocamento de Competência ( IDC ), que é a mudança para a competência dos Estados para a União em casos de graves violações de Direitos Humanos ( DH ), houve a propositura de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ( ADI ) perante o Supremo Tribunal Federal ( STF ), a ADI número Três mil quatrocentos e noventa e três e a ADI número Três mil quatrocentos e oitenta e seis ( ambas relatadas outrora pelo Ministro Menezes Direito e agora pelo Ministro Dias Toffoli e ainda em trâmite em setembro de Dois mil e vinte ), promovidas por entidades de classe de magistrados. Na visão de seus críticos, a federalização das graves violações de DH gera amesquinhamento do pacto federativo, em detrimento do Poder Judiciário estadual ( PJE ), e ainda violação do princípio do juiz natural ( * vide nota de rodapé ) e do devido processo legal ( *2 vide nota de rodapé ).
Contudo, o federalismo brasileiro não é imutável: ofende as cláusulas pétreas da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) a emenda que tenda a abolir o pacto federativo, mas não emenda que apenas torne coerente o seu desenho. Seria incoerente permitir a continuidade da situação anterior: a CF - 88 reconhecia a existência de órgãos judiciais internacionais de DH ( vide o Artigo Sétimo do Ato das disposições Constitucionais Transitórias - ADCT ), mas tornava missão quase impossível a defesa brasileira e a implementação das decisões destes processos internacionais. Houve caso em que o Brasil nem defesa apresentou perante a Comissão Interamericana de DH ( Comissão IDH ) ( *3 vide nota de rodapé ), pela dificuldade da União em obter informações dos entes federados ( *4 vide nota de rodapé ).
No que tange à prevenção, o desenho anterior impedia uma ação preventiva que evitasse a responsabilização internacional futura do Brasil, uma vez que os atos danosos eram dos entes federados. Assim, a Emenda Constitucional ( EC ) número Quarenta e cinco / Dois mil e quatro apenas aperfeiçoou o desenho do federalismo brasileiro, adaptando-o às exigências da proteção internacional de DH ( proteção essa desejada pela CF - 88 ).
Além disso, inexiste ofensas ao devido processo legal e juiz natural pelo "deslocamento", uma vez que o próprio texto constitucional original convive com tal instituto. De fato, há a previsão de "deslocamento de competência" na ocorrência de vício de parcialidade da magistratura: é o caso do Artigo Cento e dois, Inciso Primeiro, Alínea n, da CF - 88, que permite deslocar ao STF processo no qual juízes de determinado tribunal local sejam alegadamente suspeitos. No mesmo diapasão, no caso de descumprimento de obrigações internacionais de DH pelos juízos estaduais, pode o STJ julga procedente o IDC para deslocar o feito para a Justiça Federal ( JF ). Para Ubiratan Cazetta, o referido instituto apenas "distribui, por critérios assumidos pelo Texto Constitucional, interpretados pelo STJ, a competência entre as justiças comum estadual e federal" ( *5 vide nota de rodapé ).
Também não merece acolhida a crítica de indefinição da expressão "grave violação de DH". O uso do conceito indeterminado "grave violação de DH" está sujeito ao crivo do STJ e, posteriormente, ao so STF na via do Recurso Extraordinário ( RE ).
Além do crivo judicial, há caso semelhante adotado pelo Poder Constituinte originário que é a autorização de intervenção federal por violação dos "direitos da pessoa humana" ( Artigo Trinta e quatro, Inciso Oitavo, Alínea b, da CF - 88 ): não se listou quais seriam esses "direitos da pessoa humana" e nunca houve ameaça ao federalismo.
Com isso, neste momento de valorização do Direitos Internacional dos DH ( DIDH ) pelo STF, deve-se e aplaudir a inovação trazida pelo Poder Constituinte Derivado, que reconheceu a fragilidade normativa anteriormente existente, na qual atos de entes federados eram apreciados pelas instâncias internacionais de DH sem que a União, em seu papel de representante do Estado Federal, pudesse ter instrumentos para implementar as decisões internacionais ou mesmo para prevenir que o Brasil fosse condenado internacionalmente.
O novo Parágrafo Quinto do Artigo Cento e nove, então está em plena sintonia com os comandos de proteção de DH da CF - 88 e ainda com a visão dada ao instituto da responsabilidade internacional dos Estados Federais pela Corte Interamericana de DH ( Corte IDH ) ( *6 vide nota de rodapé ).
Pelo que foi acima exposto, a reforma constitucional não ofendeu o federalismo: antes permite o equilíbrio, por meio de um instrumento processual cuja deliberação está nas mãos de tribunal de superposição, o STJ, e ainda assegura que o Estado Federal possua mecanismos para o correto cumprimento das obrigações internacionais contraídas.
Quadro sinótico
A competência da JF nas hipóteses de grave violação de DH
EC Quarenta e cinco / Dois mil e quatro:
1) Artigo Cento e nove, Parágrafo Quinto: estabelece que, nas hipóteses de grave violação de DH, o Procurador-Geral da República ( PGR ), com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de DH dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o STJ, em qualquer fase do inquérito ou processo, IDC para a JF.
2) Artigo Cento e nove, Inciso Quinto - A: determina que compete aos juízes federais julgar "as causas relativas a DH a que se refere o parágrafo Quinto deste Artigo".
Elementos principais do IDC
1) Legitimidade exclusiva de propositura do PGR.
2) Competência privativa do STJ, para conhecer e decidir, com recurso ao STF ( RE ).
3) Abrangência cível ou criminal dos feitos deslocados, bem como de qualquer espécie de DH, desde que se refiram a casos de "graves violações" de tais direitos.
4) Permite o deslocamento na fase pré-processual ou já na fase processual.
5) Relaciona-se ao cumprimento de obrigações decorrentes de tratados de DH celebrados pelo Brasil.
6) Fixa a competência da JF e do Ministério Público Federal ( MPF ) para atuar no feito deslocado.
IDC como decorrência do dever internacional do Estado estabelecer recursos internos eficazes e de duração razoável para os DH
1) A jurisprudência constante dos tribunais internacionais não admite que o Estado justifique o descumprimento de determinada obrigação em nome do respeito a "competências internas de entes federados".
2) O Estado Federal é uno para o Direitos internacional ( DI ) e passível de responsabilização, mesmo quando o fato internacionalmente ilícito seja da atribuição interna de um Estado-membro da Federação.
3) IDC decorre da internacionalização dos DH e, em especial, do dever internacional assumido pelo Estado de estabelecer recursos internos eficazes e de duração razoável.
4) É competência da União Federal ( e não aos entes federados ) apresentar a defesa do Estado brasileiro e tomar as providências para a implementação da deliberação internacional, inclusive quanto às garantias de não repetição da conduta.
5) Instrumentos brasileiros que possibilitam à União Federal fazer cumprir as obrigações internacionais de defesa dos DH:
a) intervenção federal por violação dos direitos da pessoa humana ( Artigo Trinta e quatro, Inciso Sétimo, Alínea b da CF - 88 );
b) autorização prevista na Lei número Dez mil quatrocentos e quarenta e seis / Dois mil e dois para atuação do Departamento da Polícia Federal ( DPF ) em investigações de crime de competência estadual;
c) IDC para a JF.
O que se debate no IDC
1) o direito violado no caso concreto.
2) A violação da obrigação internacional assumida pelo Estado brasileiro de prestar adequadamente justiça em prazo razoável. Assim, além da grave violação a DH, deve estar evidenciada uma conduta das autoridades estaduais reveladora de falha proposital ou por negligência, imperícia, imprudência na condução de seus atos, que vulnerem o direito a ser protegido, ou ainda que revele demora injustificada na investigação ou prestação jurisdicional, gerando o risco de responsabilização internacional do Brasil, por descumprimento de obrigações internacionais de DH.
Requisitos para o deslocamento
1) ocorrer grave violação aos DH;
2) estar evidenciada uma conduta das autoridades estaduais reveladora de falha proposital ou negligência, imperícia, imprudência na condução de seus atos, que vulnerem o direito a ser protegido, ou ainda que revelem demora injustificada na investigação ou prestação jurisdicional;
3) existir o risco de responsabilização internacional do Brasil, por descumprimento de obrigações internacionais de DH.
Divergências quanto à constitucionalidade da federalização
1) Argumentos pela inconstitucionalidade da federalização das graves violações de DH ou contrários a ela:
a) gera amesquinhamento do pacto federativo, em detrimento ao Poder Judiciário Estadual ( PJE );
b) viola o princípio do juiz natural;
c) viola o devido processo legal;
d) indefinição da expressão "grave violação de DH".
2) Argumentos pela constitucionalidade da federalização das graves violações de DH:
a) a emenda não foi tendente a abolir o federalismo brasileiro, mas tornou coerente o seu desenho, adaptando-o às exigências da proteção internacional de DH;
b) desenho anterior impedia uma ação preventiva que evitasse a responsabilização internacional futura do Brasil;
c) não há ofensas ao juiz natural e ao devido processo legal pelo "deslocamento", uma vez que o próprio texto constitucional realiza a distribuição de competência entre a justiça comum estadual e federal;
d) o uso do conceito indeterminado "grave violação de DH" está sujeito ao crivo do STJ e do STF, além de haver também conceito aberto no texto constitucional com relação à autorização de intervenção federal por violação dos "direitos da pessoa humana".
P.S.:
Notas de rodapé:
* O princípio do juiz natural é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_80.html .
*2 O direito ao devido processo legal é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_28.html .
*3 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-comissao-examina.html .
*4 Ramos, André de Carvalho. Teoria dos direitos humanos na ordem internacional. Sétima edição. São Paulo : Saraiva, Dois mil e dezenove.
*5 Cazetta, Ubiratan. Direitos humanos e federalismo: o incidente de deslocamento de competência. São Paulo : Atlas, Dois mil e nove.
*6 A Corte Interamericana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .
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