terça-feira, 10 de agosto de 2021

Direitos Humanos: a reconstrução do materialismo histórico, o sujeito da transformação e as características do processo

As relações entre estrutura ( *44 vide nota de rodapé ) e processo não constituem um problema para o reducionismo economicista ( 45 vide nota de rodapé ). A leitura que nesta ótica é feita do processo de construção do Modo de Produção ( *46 vide nota de rodapé ) da vida social inclui a explicação a priori de sua transformação. Porém, a rejeição deste reducionismo recoloca o problema e para pensá-lo convém discutir a significação que se outorga, em perspectiva não determinista, ao conceito marxista ( *43 vide nota de rodapé ) de Modo de Produção ( *46 vide nota de rodapé ). A proposta é discutir brevemente este ponto, acompanhando a reflexão de Jürgen Habermas ( *47 vide nota de rodapé ).


Um modo de produção ( *46 vide nota de rodapé ) se caracteriza por um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas e por determinadas formas das relações sociais de produção. Aquelas incluem, além da força de trabalho disponível, um saber técnico utilizável ( técnicas produtivas ) e um saber organizativo, que qualifica e ordena o processo de trabalho. O desenvolvimento atingido pelas forças produtivas determina o grau de dominação ( *19 vide nota de rodapé ) sobre a natureza e os processos naturais.


As relações sociais de produção incluem as instituições e mecanismos sociais que regulam a utilização, por parte da força de trabalho, dos meios de produção, possibilitando ainda a transformação do saber técnico acumulado em técnicas produtivas. Assim, estas instituições e mecanismos controlam a força de trabalho disponível, decidindo, em consequência, a distribuição da riqueza produzida.


A relação entre forças produtivas e relações de produção pode ser entendida em sentido tecnicista. Conforme esta leitura, as forças produtivas induzem as relações sociais correspondentes. E a transformação e produz quando, através de mecanismos endógenos de aprendizagem, o crescimento do saber técnico e organizativo modifica as forças produtivas, criando incompatibilidade entre esta nova situação das forças produtivas e as relações sociais de produção viventes. O rompimento do equilíbrio leva a um processo que resulta na modificação das instituições e mecanismos sociais que organizam as relações sociais de produção.


O dinamismo da transformação social resultaria assim de um processo endógeno de aprendizagem e da conversão deste novo saber acumulado em técnicas produtivas. Aceitando provisoriamente que a transformação do saber acumulado em técnicas produtivas responde a um processo também endógeno, pode-se concluir que a mudança nas forças produtivas provoca o desequilíbrio do sistema, através da contradição criada entre aquelas e as relações sociais de produção. Todavia, para explicar a passagem a uma nova  - e superior - forma de equilíbrio seria necessário ainda explicar o surgimento de novas instituições e mecanismos de relacionamento social, surgimento este que não pode ser considerado uma consequência automática da acumulação endógena do saber técnico.


A acumulação endógena do saber técnico explicaria a crise do equilíbrio precedente, porém não o surgimento de novas formas de equilíbrio ou de integração social. Estas novas formas de integração social - instituições, mecanismos - requerem um saber prático-moral, sobre o qual se constroem novas relações de produção. Deste modo, se o saber técnico supõe o crescimento da autonomia social face á natureza, o saber prático-moral significa uma ampliação da autonomia social com relação à própria natureza interna do homem.


A transformação das forças produtivas provocaria a crise do sistema, tornando necessária a transformação das relações sociais de produção, porém não produziria automaticamente um novo sistema de integração social, um novo equilíbrio. convém salientar ainda que a suposição segundo a qual a acumulação do saber acumulado em técnicas produtivas se opera endogenamente, não parece pertinente. É necessário distinguir entre o saber disponível e sua utilização, e explicar como se opera a passagem de um ao outro. Mas uma vez não parece pertinente fazer derivar esta passagem de um mero automatismo, sendo necessário considerar a mediação das instituições e mecanismos sociais.


Recapitulando: o mecanismo endógeno de acumulação do novo saber técnico exige, para sua transformação em novas forças produtivas, o surgimento de um novo quadro institucional ( acumulação de saber prático-moral ). E a crise do sistema provocada pela implementação de novas formas produtivas também requer, para sua solução, um novo quadro institucional. Exemplificando: o desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo do tipo liberal ( *39 vide nota de rodapé ) levou a uma estruturação altamente diferenciada dos processos de trabalho - socialização da produção; porém o saber que sustenta este processo não possui alguma afinidade estrutural com a consciência prático-moral a partir da qual se constrói o projeto do capitalismo do tipo socialista ( *43 vide nota de rodapé ). Este não é produzido por aquelas, embora o tornem possível.


Do que antecede se deduz que o desenvolvimento do saber prático-moral e das instituições e mecanismos de interação social, que ele sustenta, deve ser considerado não como um produto da evolução das forças produtivas, mas como um elemento co-constitutivo do processo que leva à crise sistêmica e sua superação ( *48 vide nota de rodapé )


Esta reconstrução do materialismo histórico operada por Habermas não resolve entretanto o nexo entre estrutura e processo. Embora a distinção introduzida entre saber técnico e saber prático-moral permita captar teoricamente a maior complexidade do processo real, ela não permite responder dedutivamente à questão do modo segundo o qual se opera a passagem de um sistema a outro. Esta questão se vincula, de um lado, ao sujeito da transformação e, de outro, às características do processo. A análise do real concreto, de sua evolução histórica e de suas particularidades em cada formação social deverá guiar neste ponto, mais que em qualquer outro, o questionamento dos postulados teóricos.


Com relação ao problema do nexo entre processo e estrutura a formulação marxista ( *43 vide nota de rodapé ) pode ser sintetizada da seguinte maneira:


a) a transformação do sistema não resulta da evolução automática das estruturas, mas da ação consciente de um sujeito coletivo revolucionário agindo no quadro de condições estruturais;


b) este sujeito coletivo é o proletariado, classe social destinada pelas leis de evolução do capitalismo di tipo liberal ( *39 vide nota de rodapé ) a crescer constantemente em número e homogeneidade, objetivamente interessada na transformação do sistema e capaz - em virtude das condições globais da evolução social - de desenvolver uma consciência coletiva autônoma articulada pela sua condição de classe;


c) a ação deste sujeito coletivo, no quadro das crises objetivas do capitalismo do tipo liberal ( * 39 vide nota de rodapé ), é capaz de produzir uma ruptura radical da ordem social e de estabelecer uma nova síntese totalizadora;


d) uma nova estrutura social, na sua globalidade, surgirá daquela ruptura e desta síntese, não havendo continuidade entre as instituições e mecanismos que regulam a interação social na ordem burguesa e aquelas que serão estabelecidas pela revolução.


A pertinência atual desta teorização, que o marxismo ( *43 vide nota de rodapé ) vulgar incorpora acriticamente, deve ser analisada a partir dos pressupostos epistemológicos e históricos que a sustentam ( *49 vide nota de rodapé ).  


P.S.:


Notas de rodapé:


* As violações aos Direitos Humanos que sustentaram a Doutrina de Segurança Nacional são melhor detalhadas em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-as-viola%C3%A7%C3%B5es-que-sustentaram-a-doutrina-de-seguran%C3%A7a-nacional .


*2 O que é a Doutrina de Segurança Nacional e seu impacto sobre os Direitos Humanos são melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-conviv%C3%AAncia-com-a-doutrina-de-seguran%C3%A7a-nacional .


*3 O que é o crime de tortura é melhor explicado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-23 . 


*4 O que é a limitação do poder estatal sobre o status libertatis do indivíduo é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-82 .


*5 O que são as penas inaplicáveis como a pena de morte e banimento, é melhor explicado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-70 .


*6 O direito ao desenvolvimento nacional é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-8 .


*7 O direito à vida é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-12 .


*8 Os crimes contra a humanidade, em especial o de genocídio são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-67 .


*9 O direito ao trabalho é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-48 .


*10 O direito de livre associação é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-53 .


*11 O direito à presunção de inocência é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-77 .


*12 O direito à liberdade de manifestação do pensamento é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-24 .


*13 O direito à liberdade de culto é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-34 .


*14 A teoria geral dos direitos humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*15 O princípio da igualdade é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-16 .


*16 O direito à intimidade e à vida privada é melhor detalhado em


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-44 .


*17 O direito à inviolabilidade do domicílio é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-43 .


*18 O direito à propriedade é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-54 .


*19 O fenômeno da exploração de uma maioria por uma minoria é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-explora%C3%A7%C3%A3o-de-uma-minoria-sobre-a-grande-maioria-do-povo .


*20 A violência no campo é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-quest%C3%A3o-agr%C3%A1ria-e-a-justa-distribui%C3%A7%C3%A3o-de-propriedades-rurais .


*21 O direito a um meio ambiente equilibrado é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*22 O direito à saúde pública é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*23 O direito das crianças e adolescentes à proteção integral é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*24 O direito ao acesso à justiça é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-85 .


*25 O direito à dignidade humana é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*26 A liberdade de informação e livre divulgação dos fatos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-49 .


*27 O mito de que defensores de Direitos Humanos são defensores de bandidos, são melhor desfeitos em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-seguran%C3%A7a-p%C3%BAblica-a-criminalidade-e-as-viola%C3%A7%C3%B5es


*28 A lei dos crimes hediondos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-68 .


*29 O direito de reunião é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-52 .


*30 A exploração pelo jornalismo policial radiofônico contra os Direitos Humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-jornalismo-policial-radiof%C3%B4nico-e-a-explora%C3%A7%C3%A3o-das-viola%C3%A7%C3%B5es .


*31 As regras mínimas para tratamento de reclusos são melhor detalhadas em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-74 .


*32 A politização dos Direitos Humanos no Cone Sul é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-politiza%C3%A7%C3%A3o-dos-dh-na-redemocratiza%C3%A7%C3%A3o-do-cone-sul-1 .


*33 A impossibilidade de fazer política a partir dos DH é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-impossibilidade-de-fazer-pol%C3%ADtica-a-partir-dos-dh .


*34 O princípio da legalidade é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-19 .


*35 Os impactos do endividamento externo no exercício dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-endividamento-externo-como-uma-barreira-para-o-exerc%C3%ADcio .


*36 O realismo inverossímil e o sentido da democracia para os DH são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-realismo-inveross%C3%ADmil-e-o-sentido-da-democracia-para-os-dh .


*37 O princípio do juiz natural é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-61 .


*38 O direito à assistência jurídica integral é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-85 .


*39 Os impactos da ideologia liberal sobre os Direitos Humanos são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-desafios-dos-defensores-de-dh-na-pol%C3%ADtica-liberal-democr%C3%A1tica-1 .


*40 Os impactos dos movimentos sociais na democracia nos Direitos Humanos são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-movimentos-sociais-redefini%C3%A7%C3%A3o-da-pol%C3%ADtica-e-os-efeitos-sobre-os-dh .


*41 O direito ao juiz natural ou neutro é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-61 .


*42 A significação dos DH no Cone Sul é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-dh-como-pol%C3%ADtica-e-o-avan%C3%A7o-da-democracia-no-cone-sul .


*43 A transformação social e a crise no paradigma marxista são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-transforma%C3%A7%C3%A3o-social-e-a-crise-do-paradigma-marxista-1 .


*44 As relações entre Base e Estrutura são melhor detalhadas em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-p%C3%B3s-capitalismo-e-a-sobreviv%C3%AAncia-da-humanidade-1 .


*45 O reducionismo economicista é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-p%C3%B3s-capitalismo-e-a-sobreviv%C3%AAncia-da-humanidade-1 .


*46 O impacto do Modo de Produção nos DH é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-p%C3%B3s-capitalismo-e-a-sobreviv%C3%AAncia-da-humanidade-1 .


*47 Habermas, Jürgen, Para a reconstrução do materialismo histórico, São Paulo, Brasiliense, Mil novecentos e oitenta e três.


*48 Ver sobre este ponto o papel do Estado e do Direito no surgimento do capitalismo na França, in Miaille, Michel, L'Etat de Droit, Paris, Maspero, Mil novecentos e oitenta e um.


*49 Conforme Nún, José, "El otro reducionismo", trabalho apresentado no Décimo-segundo Congresso da Associação Internacional de Ciência Política, Rio de Janeiro, de Nove a Quatorze de agosto de Mil novecentos e oitenta e dois. Nesta parte do artigo o autor se inspira largamente neste excelente trabalho.


Referência


Santos Júnior, Belisário; Plastino, Carlos Alberto; Junqueira, Eliane Botelho; Rodrigues, José Augusto de Souza; Gómez, José Maria; Barbosa, Marco Antonio Rodrigues. Direitos humanos - um debate necessário. Instituto Interamericano de Direitos Humanos. Editora Brasiliense. Mil novecentos e oitenta e oito. Páginas Cento e cinquenta e quatro a Cento e cinquenta e oito.


Mais em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-reconstru%C3%A7%C3%A3o-do-materialismo-hist%C3%B3rico-o-sujeito-da-transforma%C3%A7%C3%A3o-e-as-caracter%C3%ADsticas-do-processo .

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