No final de agosto, dia 31, completamos cinco anos do golpe contra a presidenta Dilma. Um dos capítulos mais machistas e misóginos da história da política brasileira. O golpe evidenciou não apenas o “passado que não passou” de autoritarismo e conservadorismo, mas também o grau de violência e preconceito contra a presença de mulheres em espaços que, no imaginário social, não pertencem a elas.
Existem diversos aspectos da violência política de gênero — entendida como toda e qualquer atitude que visa dificultar, constranger, intimidar, desqualificar, obstaculizar e até impedir mulheres de ocuparem espaços de poder e de decisão. Nem que para isso arranque até a vida delas.
Nesta série especial de 5 anos do golpe, vamos abordar alguns deles. Toda sexta-feira, ao longo do mês de agosto, vamos publicar uma matéria. E começaremos pelo contexto em que as mulheres estão inseridas para avançar na política — um ambiente ainda muito hostil que cria obstáculos concretos e subjetivos para a participação feminina.
Antes de tudo, um raio-x
O Brasil é um dos piores países do mundo em representatividade de mulheres na política, com uma porcentagem ínfima de 10,7% dessas representantes no parlamento, formado majoritariamente por homens. O país ocupa a vergonhosa 140ª posição no ranking de representatividade feminina no parlamento, entre 193 países pesquisados, segundo o relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) e da União Interparlamentar.
As mulheres brasileiras são maioria da população e do eleitorado, no entanto elas não ocupam sequer 15% nos cargos eletivos do país. São exatos 12,32% em 70 mil cargos eletivos, segundo o Mapa da Política de 2019, elaborado pela Procuradoria da Mulher no Senado. No Senado somente 12 mulheres foram eleitas para as 81 vagas, o que equivale a uma participação feminina de 14%.
Na Câmara Federal, o cenário não é diferente. Dos 513 deputados só 77 são mulheres. Em 2019, dos 11 cargos da Mesa Diretora (incluindo os suplentes) as deputadas ocupam apenas dois; e das 25 comissões permanentes somente 4 são presididas por mulheres.
No entanto, a subrepresentatividade feminina tem uma característica ainda mais perversa quando se trata do recorte de gênero e raça. Em 2016, apenas 0,5% dos eleitos para prefeituras e câmaras de todo país eram mulheres negras — sendo que elas correspondem a 27% da população brasileira.
Existem inúmeros fatores para explicar essa distorção que questiona profundamente a qualidade da democracia representativa brasileira, porém eles estão ancorados em dois problemas estruturais da nossa sociedade: o racismo e o machismo.
A construção do “lugar de mulher”
Ao longo do desenvolvimento da sociedade capitalista, para garantir a reprodução disciplinada da força de trabalho, concebeu-se a família nuclear heteronormativa como padrão e às mulheres foram empurrados: a naturalização do trabalho não-assalariado e o controle sobre seus corpos.
E, para isso, deram os mais diversos nomes na maior ginástica ideológica da história: chamaram de “amor”, “instinto materno”, “vocação feminina”, “sensibilidade”, “habilidade nata”, “alma de cuidadora”, e tantos outros nomes que visam naturalizar o espaço doméstico como inerentemente feminino —
construindo no imaginário social esse “lugar de mulher”, em que por ser um dom nato de pertencimento, as mulheres não podem se negar a ele — nem mesmo se trabalharem fora ou tiverem outras pretensões na vida, como a carreira política.
Esse ponto é importante por dois fatores.
Primeiro, estabelece esse lugar histórico construído socialmente de pertencimento da mulher. Uma barreira que todas as mulheres, não importa o espectro político-ideológico que ocupem, elas terão que corresponder e responder a todo instante. E, se tratando de uma sociedade conservadora como a brasileira, todo e qualquer movimento que abale essa concepção é visto como imoral, insidioso e deve ser repudiado a qualquer custo.
Segundo, porque, a partir dessa concepção do “lugar de mulher” estar umbilicalmente conectado à vida doméstica, reprodutiva e sexual das mulheres, as pessoas se sentem autorizadas a atacar mulheres — principalmente as que ocupam a política — em todos os âmbitos da vida doméstica, reprodutiva e sexual. Mesmo que a divergência em si, no contexto de uma disputa eleitoral ou parlamentar, por exemplo, nada tenha a ver, e realmente é desimportante, com essas questões.
Não é à toa que cansamos de ver mulheres tendo a integridade moral e sexual atacada o tempo todo, com palavras de baixo calão; ataques direcionados à família, às filhas mulheres (caso tenha), a relacionamentos, à forma como conduz a educação de suas crias, se amamenta em público ou não e toda sorte de ataques “argumentativos” que não passam perto do papel que ela desempenha na política — não importa o cargo que ocupe.
Esses fenômenos são a base da construção de um ambiente hostil às mulheres para reafirmar o tempo todo, não apenas que o lugar dela não é ali (na disputa política por espaços de poder), mas que o lugar dela é fazendo o que a sociedade espera dela.
O vale-tudo contra as mulheres
Quando se trata de ocupar espaço na política, não basta apenas combater o “lugar de mulher”, é preciso entender a construção social complementar a ele: o ‘perfil ideal’ ou a ‘composição ideal’ de um ambiente político.
Segundo o Mapa Étnico das Mulheres na Política Brasileira, elaborado pela Confederação Nacional de Municípios, revela que a baixa representatividade das mulheres negras nos espaços de poder se deve à crença de um estereótipo. Mas que estereótipo seria esse?
O Mapa conclui que partidos e o próprio eleitorado tendem a associar competência política a um perfil masculino, branco, heterossexual, casado e de boa posição econômica e social — o padrão que lota as casas legislativas e executivas do país.
As consequências desse ‘perfil ideal’ criam barreiras visíveis e invisíveis para a participação das mulheres no geral. Segundo a pesquisa Perfil Mulher na Política, do projeto Me Farei Ouvir e da ONG Elas no Poder, 40% das mulheres afirmam não ‘entrar para a política’ porque consideram que “não tem perfil”. Desigualdade na distribuição das tarefas domésticas, relutância do partido em apoiar candidatas e o ambiente hostil (assédio e desrespeito) às mulheres também foram as causas apontadas por mais de 70% das entrevistadas. Isso demonstra a importância de iniciativas que estimulem a ambição política das mulheres, mostrando que a política é um espaço para os mais diversos perfis e personalidades.
Apesar dos esforços, da legislação e de medidas frequentes, a violência política de gênero é a regra mesmo antes das mulheres se candidatarem. O “vale-tudo” para atacar a dignidade de ser mulher e usar de misoginia (um termo que associa a mulher à condição inferior de ser humano) contra a participação delas aumenta a hostilidade dos espaços políticos.
Outras formas de violência já são bem evidentes — como o caso da deputada estadual, Isa Penna, que foi assediada por um deputado, dentro do plenário, com câmeras ao vivo, em frente de todo mundo. Ou da deputada federal, Maria do Rosário, que foi ameaçada de estupro pelo então deputado Jair Bolsonaro, na tribuna da Câmara Federal.
Ou seja, vale-tudo quando se trata de deslegitimar a mulher: atacar família, parente, com quem a mulher se relaciona ou não, orientação sexual, o jeito que se veste, o peso do corpo, se está grávida, se amamenta ou não, sua idade e todas as facetas concretas e subjetivas — inclusive ameaçar e até tirar a vida delas.
O resultado dessa hostilidade está expresso na baixa representatividade que apontamos no início. Depois de anos de luta para ter direito a voto e depois a ocupar espaços, as mulheres, que representam metade do eleitorado, são minoria nos espaços de poder. Os motivos dessa discrepância residem, em grande parte, na violência política de gênero que abordamos ao longo desse especial.
Com informações de Ana Clara, Elas Por Elas e pt.org.br .
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