A Constituição Federal de Mil novecentos e noventa e oito ( CF - 88 ) não dispõe sobre o início da vida humana ou o instante preciso em que ela começa. Porém, a mera menção ao direito à vida ( * vide nota de rodapé ) implica proteção aos que ainda não nasceram ( embriões e fetos ), visto que, sem tal proteção, a vida sequer poderia existir. Já a Convenção Americana de Direitos Humanos ( DH ) ( CADH ) ( *2 vide nota de rodapé ) é mais detalhada, determinando que "toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente".
Assim, o direito á vida estabelecido na CF - 88 e nos tratados exige que o Estado proteja, por lei, os embriões ainda não implantados no útero 9 gerado in vitro ) e a vida intrauterina. Para o Supremo Tribunal Federal 9 STF ), a "potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, ( ... ) O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum". ( voto do Ministro Ayres Britto, Ação Declaratória de Inconstitucionalidade - ADI - número Três mil quinhentos e dez, relator Ministro Ayres Britto, julgada em Vinte e nove de maio de Dois mil e oito, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e oito de maio de Dois mil e dez ).
Pelo que consta do Artigo Quatro ponto Um da CADH, a regra é a proteção da vida desde a concepção ( "em geral " ). Logo, alei nacional que quebrar essa proteção deve sofrer o crivo da proporcionalidade, verificando-se o equilíbrio entre o custo ( vulneração da vida ) e o benefício dos valores constitucionais eventualmente protegidos. Porém, abre-se espaço para que seja exercitada, pela lei, a ponderação, entre vários bens que podem estar em colisão com o direito à vida ( *3 vide nota de rodapé ), que levaram, por exemplo, a permissão do aborto em algumas hipóteses pelo Código Penal ( CP ) brasileiro ( lei ordinária ).
O aborto é a interrupção da gravidez antes do ser termo normal, com ou sem a expulsão do feto, podendo ser espontâneo ou provocado. Há intensa discussão sobre o início da proteção do direitos á vida. pode-se identificar as seguintes correntes a respeito do início da proteção jurídica da vida:
1) desde a concepção;
2) desde a nidação, com a ligação do feto à parede do útero;
3) desde a formação das características individuais do feto;
4) desde a viabilidade da vida extrauterina;
5) desde o nascimento.
No campo cível, a partir da concepção, o Código Civil ( CC ) preserva os direitos do nascituro. O Artigo do CC determina que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". Além disso, o nascituro pode receber doações ( Artigo Quinhentos e quarenta e dois do CC ), constar de testamento ( Artigo Mil setecentos e noventa e nove do CC ), ser adotado ( Artigo Mil seiscentos e vinte e um do CC ). Pode, inclusive, acionar o Poder Judiciário ( PJ ), sendo titular do direito de acesso à justiça ( Artigo Quinto, Inciso Trinta e cinco ) ( *4 vide nota de rodapé ).
No campo penal, atutela infraconstitucional atual indica que o momento aceito para o início da proteção penal da vida é o da nidação; a partir da nidação, o aborto passa a ser protegido pela incidência dos Artigos Cento e vinte e quatro a Cento e vinte e sete do CP. No tocante à utilização do medicamento anticoncepcional de emergência, a popular "pílula do dia seguinte", as Normas Técnicas de Planejamento Familiar ( NTPF ) do Ministério da Saúde ( MS ), que o recomendam desde Mil novecentos e noventa e seis, esclarecem que seu uso é tido como "não abortivo",, pois seus componentes atuam impedindo a fecundação e sempre antes da implantação na parede do útero.
Contudo, a lei permite que não seja punido o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante ( aborto necessário ), bem como é lícito o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, desde que haja consentimento da gestante ou, se incapaz, do seu representante legal (aborto sentimental ). Essas exceções são aplicadas cotidianamente na jurisprudência brasileira, não tendo repercussão qualquer tese de eventual não recepção desses dispositivos em face da proteção constitucional da vida. Fica demonstrado, conforme o voto da Ministra Cármen Lúcia, na ADI número Três mil quinhentos e dez, que há limites à proteção jurídica da vida, ponderando-a em face de outros valores ( a vida da mãe o sua liberdade sexual ). Nas palavras da Ministra: "Todo princípio de direto haverá de ser interpretado e aplicado de forma ponderada segundo os termos postos no sistema. ( ... ) mesmo o direito à vida haverá de ser interpretado e aplicado com a observação da sua ponderação em relação a outros que igualmente se põem para perfeita sincronia e dinâmica dos sistema constitucional. Tanto é assim que o ordenamento jurídico brasileiro comporta, desde Mil novecentos e quarenta, a figura lícita do aborto nos casos em que seja necessário o procedimento para garantir a sobrevivência da gestante e quando decorrer de estupro ( Artigo Cento e vinte e oito, Incisos Primeiro e Segundo, do CP )" ( voto da Ministra Cármen Lúcia, ADI número Três mil quinhentos e dez, relator Ministro Ayres Britto, julgada em Vinte e nove de maio de Dois mil e oito, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e oito de maio de Dois mil e dez ).
Em Dois mil e quatro, foi proposta a Aguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ( ADPF ) número Cinquenta e quatro, que requereu, ao STF, a interpretação conforme a CF - 88 do CP para excluir a incidência de crime no caso de interrupção da gravidez de feto anencéfalo, que foi denominada como antecipação como antecipação terapêutica do parto. A dignidade humana ( *6 vide nota de rodapé ) e a proteção da integridade psíquica ( *7 vide nota de rodapé ) da mãe, bem como a proteção à maternidade e o direito à saúde ( *5 vide nota de rodapé ) foram os argumentos da ADPF. O STF, oito anos depois, em Dois mil e doze, decidiu que a antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo, desde que com diagnóstico médico, não é o caso de aborto ( cujas hipóteses de licitude são excepcionais ), pois não haverá vida extrauterina. Assim, a gestante, caso queira, pode solicitar a antecipação terapêutica do parto, sem permissão específica do Estado ( alvará judicial de juiz criminal, por exemplo ) ( ADPF número Cinquenta e quatro, relator Ministro Marco Aurélio, julgada em Onze de abril de Dois mil e doze ).
Ponto importante para o debate é se seria possível a despenalização completa do aborto no Brasil, ponderando-se o direito á vida do feto com os direitos reprodutivos da mulher ( *8 vide nota de rodapé ). Esse debate divide a doutrina, pois poderia existir violação do dever de proteção à vida, e, consequentemente, violação da cláusula pétrea no Brasil. Na proteção infraconstitucional ( o que permitiria a alteração da lei penal ) foi contrastado pela manifestação de outros Ministros de que o caso da pesquisa de célula-tronco não teria alguma relação com o aborto.
Isso demonstra que o STF deixou a questão em aberto, para apreciar no futuro algum dia o Congresso Nacional ( CN ) venha a adotar a lei que descriminalize o aborto, imitando outros países do mundo.
Em Dois m il e dezesseis, foi proposta a ADI número Cinco mil quinhentos e oitenta e um, pela qual, entre outros pedidos, pleiteou-se o reconhecimento da constitucionalidade de interrupção de gravidez quando houver diagnóstico de infecção pelo vírus zika. Diferentemente da ADPF número Cinquenta e quatro, não se trata nesta nova ação de hipótese de inviabilidade da vida extrauterina. O feto contamiado pelo vírus zika poderá ter microcefalia, mas tal deficiência não inviabiliza sua vida. Há, assim, a dúvida se, apesar do sofrimento psíquico da mãe, tal pedido não flerta com o chamado aborto eugênico ( ou eugenésico ), pelo qual se autoriza o aborto em caso de detecção de deficiência grave. O aborto eugênico viola frontalmente o "direito á vida das pessoas com deficiência grave. O aborto eugênico viola frontalmente o "direito á vida das pessoas com deficiência em igualdade de oportunidades" previsto na Convenção das Organização das Nações Unidas ( ONU ) sobre o Direito das Pessoas com Deficiência ( PcD ) ( CONUDPcD ) ( *8 vide nota de rodapé ), que em seu Artigo número Dez, estipula que: " ( ... ) todo ser humano tem o inerente direito à vida e tomarão todas as medidas necessárias para assegurar o efetivo exercício desse direito pelas PcD, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas". Assim, autorizar ao aborto porque o feto possui ou pode possuir deficiência mas não autorizar em relação aos demais fetos 9 tidos como "normais" ) implica tratamento discriminatório, vedado pela CONUDPcD. Em Dois mil e vinte, o STF julgou prejudicada a ação, perda seu objeto, em face da revogação do principal ponto questionado pela Medida Provis´~oria ( MP ) número Oitocentos e noventa e quatro / Dois mil e dezenove, que institui pensão vitalícia a crianças com microcefalia decorrente do zika vírus 9 STF, ADI número Cinco mil quinhentos e oitenta e um, relator, Ministra Cármen Lúcia, julgada em Quatro de maio de Dois mil e vinte ).
Ainda em Dois mil e dezesseis, a Primeira Turma do STF concedeu a ordem de habeas corpus ( *10 vide nota de rodapé ) , considerando que o aborto realizado até o terceiro mês de gravidez deve ser considerado fato atípico. Para o Ministro Barroso, a criminalização do aborto viola os seguintes direitos:
1) direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada;
2) liberdade da mulher, que deve ser autônoma em suas escolhas existenciais;
3) a integridade física e psíquica da gestante;
4) igualdade da mulher, uma vez que, como os homens não engravidam, a única maneira de manter a igualdade de tratamento é respeitar a vontade da mulher.
Além disso a criminalização do aborto nestes termos ( antes do marco temporal do primeiro trimestre utilizado em diversos países democráticos do mundo, como Estados Unidos da América - EUA - , Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália ) ofenderia o princípio da proporcionalidade ( STF, Primeira Turma, Habeas Corpus número Cento e vinte e quatro mil trezentos e seis / Rio de janeiro, relator original Ministro Marco Aurélio, relator para o Acórdão Ministro Roberto Barroso, julgado em Vinte e nove de novembro de Dois mil e dezesseis ).
Em Dois mil e dezessete, foi proposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ( ADPF ) número Quatrocentos e quarenta e dois ( relatora Ministra Rosa Weber, em trâmite em setembro de Dois mil e vinte ), que pede que os Artigos Cento e vinte e quatro e Cento e vinte e seis do CP ( *11 vide nota de rodapé ) sejam considerados apenas parcialmente recepcionados pela CF - 88, o que descriminalizaria o aborto realizado até o primeiro semestre de gestação.
P.S.:
Notas de Rodapé:
* O direito à vida, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/04/direitos-humanos-doutrinas-e.html .
*2 A Convenção Americana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-americana.html .
*3 A colisão de direitos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh.html .
*4 O direito ao acesso à justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/11/direitos-humanos-garantia-do-acesso.html .
*5 O direito à saúde, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/04/direitos-humanos-doutrinas-e.html .
*6 O direito à dignidade humana, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-dignidade-humana-e.html .
*7 O direito à integridade psíquica, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-corte-edita-mais-de.html .
*8 Os direitos da mulher, no contexto dos Direitos Humanos, são melhora detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/05/direitos-humanos-convencao-visa_12.html .
*9 A Convenção da ONU sobre o Direito das PcD é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/06/direitos-humanos-protecao-das-pessoas.html .
*10 o direito ao habeas corpus, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/02/direitos-humanos-lei-do-habeas-corpus.html .
*11 "Artigo Cento e vinte quatro. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos." "Artigo Cento e vinte e seis. Provocar aborto com o consentimento da gestante. Pena - reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do Artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos de idade, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça o u violência."
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