É possível identificar usos habituais da dignidade humana ( * vide nota de rodapé ) na jurisprudência brasileira O primeiro uso é na fundamentação da criação jurisprudencial de novos direitos, também denominado eficácia positiva do princípio da dignidade humana. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal ( STF reconheceu o "direito à busca da felicidade", sustentando que resulta da dignidade humana: "O direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito e expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana" ( Recurso Extraordinário número Quatrocentos e setenta e sete mil quinhentos e cinquenta e quatro, relator Ministro Celso de Mello, Informativo número Seiscentos e trinta e cinco ). Nesta mesma linha, de tutela da felicidade e da realização pessoal ( fruto da dignidade da pessoa humana ), o STF reconheceu modelos familiares diversos da concepção tradicional, determinando que " ( a ) paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento de vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" ( Recurso Extraordinário número Oitocentos e noventa e oito mil e sessenta / Santa Catarina, relator Ministro Luiz Fux, julgado em Vinte e um e vinte e dois de setembro de Dois mil e dezesseis, Informativo STF número Oitocentos e quarenta ). Gilmar Mendes defende que, para se reconhecer um novo direito fundamental, deve ser provado um vínculo com a dignidade humana ( a chamada derivação direta ) ou pelo menos ser o novo direito vinculado a direito por sua vez decorrente da dignidade humana ( derivação indireta ) ( *2 vide nota de rodapé ).
Um segundo uso é o da formatação da interpretação adequada das características de um determinado direito. Por exemplo, o STF reconheceu que o direito de acesso à justiça ( *3 vide nota de rodapé ) e à prestação jurisdicional do Estado deve ser célere, pleno e eficaz. Para o STF, então: " prestação jurisdicional é uma das formas de se concretizar o princípio da dignidade humana, o que torna imprescindível seja ela realizada de forma célere, plena e eficaz" ( Reclamação número Cinco Mil setecentos e cinquenta e oito, relator Ministra Cármem Lúcia, julgada em Treze de Maio de Dois mil e nove, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Sete de agosto de Dois mil e nove ). Nesta mesma linha, o Ministro Celso de Mello considerou que a duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade deste princípio essencial ( Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito - CF - 88, Artigo Primeiro, Inciso Terceiro ) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente" ( Habeas Corpus número Cento e trinta e nove mil seiscentos e quarenta e quatro / Goiás, relator Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e quatro de maio de Dois mil e dezessete ).
O terceiro uso e o dever de criar limites à ação do Estado e mesmo dos particulares. É a chamada eficácia negativa da dignidade humana. Por exemplo, a dignidade humana foi repetidamente invocada para traçar limites ao uso desnecessário de algemas em vários casos no STF. Para o Ministro Marco Aurélio: "Diante disto, indaga-se: surge harmônico com a CF - 88 mantê-lo, no recinto, com algemas? A reposta mostra-se iniludivelmente negativa ( ... ) a deficiência da estrutura do Estado não autorizava o desrespeito à dignidade do envolvido" ( Habeas Corpus número Noventa e um mil novecentos e cinquenta e dois, voto do relator. Ministro Marco Aurélio, julgado em Sete de agosto de Dois mil e oito, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Dezenove de dezembro de Dois mil e oito ). O uso de tortura ( *4 vide nota de rodapé ) por agentes do Estado foi também veementemente reprimido pelo STF, que assim se pronunciou: "A tortura constitui a negação arbitrária dos Direitos Humanos ( DH ), pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo" ( Habeas Corpus número setenta mil trezentos e oitenta e nove, relator para o Acórdão Ministro Celso de Mello, julgado em Vinte e três de junho de Mil novecentos e noventa e quatro, Plenário, Diário da Justiça de Dez de agosto de Dois mil e um ).
O quarto uso é a utilização da dignidade humana para fundamentar o juízo de ponderação e escolha da prevalência de um direito em prejuízo de outro. Por exemplo, o STF utilizou a dignidade humana para fazer prevalecer o direito à informação genética em detrimento do direito à segurança jurídica, afastando o trânsito em julgado de uma ação de investigação de paternidade. Para o STF, então: "O princípio da segurança jurídica não seria, portanto, absoluto, e que não poderia prevalecer em detrimento da dignidade da pessoa humana, sob o prisma do acesso à informação genética e da personalidade do indivíduo. Assinalou não se poder mais tolerar a prevalência, em relações de vínculo paterno-filial, do fictício critério da verdade legal, calcado em presunção absoluta, tampouco a negativa de respostas acerca da origem biológica do ser humano, uma vez constatada a evolução nos meios de prova voltados para este fim" ( Recurso Extraordinário número Trezentos e sessenta e três mil oitocentos e oitenta e nove, relator Ministro Dias Tófolli, julgado em Sete de abril de Dois mil e onze, Plenário, Informativo número Seiscentos e vinte e dois, com repercussão geral. ) Quanto á liberdade de expressão, o STF pronunciou-se sobre a proibição de discursos antissemitas, pois a dignidade da pessoa humana não é compatível com discursos de preconceito e incitação de ódio e condutas hostis contra determinados grupos. Para o STF, 'direito à incitação ao racismo', dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade ( *5 vide nota de rodapé ) jurídica" ( Habeas Corpus número Oitenta e dois mil quatrocentos e vinte e quatro, relator para o Acórdão Ministro Presidente Maurício Corrêa, julgado em Dezessete de setembro de Dois Mil e três, Plenário, Diário da Justiça de Dezenove de março de Dois mil e quatro ).
Em outro caso emblemático, o STF recusou fazer prevalecer o direito à verdade ( *6 vide nota de rodapé ) e à justiça ( *3 vide nota de rodapé ) em detrimento do direito dos criminosos ao perdão e á anistia ( contrariando a posição consolidada da Corte Interamericana de DH ). Para o STF, então: "Sem de qualquer modo negar o que diz a arguente ao proclamar que a dignidade não tem preço ( o que Ramos - *7 vide nota de rodapé - subscreve ), tenho que a indignidade que o cometimento de qualquer crime expressa não pode ser retribuída com a proclamação de que o intuito da anistia viola a dignidade humana" ( Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental número Cento e cinquenta e três, voto do relator ministro Eros Grau, julgado em Vinte e nove de abril de Dois mil e dez, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de seis de agosto de Dois mil e dez ).
Também no tocante ao uso da dignidade humana como fundamento genérico na escolha da prevalência de um direito, o STF determinou a prevalência do direito à integridade física ( *8 vide nota de rodapé ), recusando a realização compulsória ( mesmo contra a vontade do presumido pai ) do exame de Acido Desoxirribonucléico ( DNA - sigla em inglês ). Para o STF: "Discrepa, a mais não poder de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade humana ( ... ) provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, 'debaixo de vara', para coleta do material indispensável á feitura do exame de DNA" ( Habeas Corpus número Setenta e um mil trezentos e setenta e três, relator para o Acórdão Ministro Marco Aurélio, julgado em Dez de novembro de Mil novecentos e noventa e quatro, Plenário, Diário da Justiça de Vinte e dois de novembro de Mil novecentos e noventa e seis ). Finalmente, o juízo de ponderação e o uso da dignidade humana para fundamentar a posição a favor de um direito ( em detrimento do outro ) ficou evidente no caso da proibição da prova ilícita, tendo o STF decidido que: "A CF - 88 mesma que ponderou os valores contrapostos e optou - em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal - pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição de prova ilícita" ( Habeas Corpus número Setenta e nove mil quinhentos e doze, relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em Dezesseis de dezembro de Mil novecentos e noventa e nove, Plenário, Diário da Justiça de Dezesseis de maio de Dois mil e três ).
Nesta categoria de uso da dignidade humana para justificar genericamente prevalências e compressões de DH, é possível sua utilização para excluir um direito já formalmente previsto do rol de direitos considerados materialmente essenciais. Este uso da dignidade humana atualizaria, pela via hermenêutica, o catálogo dos DH. Sarmento defende que a ausência de vínculo direto com a dignidade humana pode ser fator de exclusão de determinado direito inserido formalmente na CF - 88 exigirá um ônus argumentativo daquele que sustenta o contrário ( *9 vide nota de rodapé ).
Assim, o valor da dignidade humana, içado ao posto de princípio fundamental da República Federativa do Brasil ( RFB ) ( Artigo Primeiro, Inciso Terceiro ), impõe-se como valor central de todo o ordenamento jurídico brasileiro, sendo considerado por Silva o epicentro axiológico do ordenamento constitucional brasileiro ( *10 vide nota de rodapé ), indispensável orientar o trabalho do intérprete do Direito e do aplicador da lei.
Por outro lado, o uso abusivo e retórico da "dignidade humana" pode banalizar este conceito, dificultando a aferição da racionalidade da tomada de decisão pelo Poder Judiciário em especial no que tange ao juízo de ponderação entre direitos em colisão.
Quadro sinótico
Conceito de dignidade humana e conteúdo ético dos DH
Conceito de dignidade humana
1) Raiz da palavra: dignus, que ressalta aquilo que possui honra ou importância.
2) São Tomás de Aquino: reconhecimento da dignidade humana, qualidade inerente a todos os seres humanos, que separa os humanos dos demais seres e objetos. o intelecto e a semelhança com Deus geram a dignidade que é inerente ao homem, como espécie.
3) Kant: a qualidade da pessoa humana consiste que cada indivíduo é um fim em si mesmo, com autonomia para se comportar de acordo com seu arbítrio, nunca um meio ou instrumento para a consecução de resultados, não possuindo preço.
4) Sarlet e Peres Luño: dignidade humana como a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, bem como assegura condições materiais mínimas de sobrevivência.
5) Nos diplomas internacionais e nacionais, a dignidade humana é inscrita com princípio geral ou fundamental, mas são como um direito autônomo. Trata-se de uma categoria jurídica que, por estar na origem e todos os DH, lhes confere conteúdo ético. Ainda, a dignidade humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um substrato material para que os direitos possam florescer. Não trata de um aspecto particular da existência, mas de uma qualidade inerente a todo ser humano, sendo um valor que o identifica como tal.
6) Desta forma, o conceito de dignidade humana é polissêmico e aberto, em permanente processo de desenvolvimento e construção.
Elementos que caracterizam a dignidade humana
1) Elemento positivo: defesa da existência de condições materiais mínimas de sobrevivência a cada ser humano.
2) Elemento negativo: consiste na proibição de ser impor tratamento ofensivo, degradante ou ainda discriminação odiosa a um ser humano. Deveres impostos ao Estado para proteger a dignidade humana: dever de respeito ( limite para a ação dos poderes públicos ) e dever de garantia ( conjunto de ações de promoção da dignidade humana por meio do fornecimento de condições materiais ideais para seu fornecimento ).
Usos habituais da dignidade humana na jurisprudência brasileira
1) Fundamentação da criação jurisprudencial de novos direitos ( eficácia positiva do princípio da dignidade humana ).
2) Formatação da interpretação adequada das característica de um determinado direito.
3) Criação de limites á ação do Estado ( eficácia negativa do princípio da dignidade humana ).
4) Fundamentação do juízo de ponderação e escolha da prevalência de um direito em prejuízo de outro.
5) Uso para negar a natureza de DH de um determinado direito.
P.S.:
Notas de rodapé:
* A dignidade humana é melhor detalhada e contextualizada em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .
*2 Mendes, Gilmar; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. Segunda edição. São Paulo: Saraiva, Dois mil e oito.
*3 O direito ao acesso à justiça é melhor detalhado em:
*4 A lei dos crimes hediondos, como a tortura, é melhor detalhada em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-68 .
*5 O princípio da igualdade é melhor detalhado, contextualizado e exemplificado em:
*6 O direito à memória e à verdade é melhor detalhado e contextualizado em:
*7 Ramos, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. Oitava edição. São Paulo: Saraiva Educação, Dois mil e vinte e um. Página Oitenta e seis, Primeiro Parágrafo.
*8 O direito à integridade física e moral é melhora detalhado e contextualizado em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-11 .
*9 Sarmento, Daniel. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajetórias e metodologia. Segunda edição. Belo Horizonte: Fórum, Dois mil e dezesseis, Página Oitenta e seis.
*10 Silva, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia, Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Volume Duzentos e doze, Páginas Oitenta e nove a Noventa e quatro. abril / junho de Mil novecentos e noventa e oito, Página Noventa e dois.
Mais em:
https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-dignidade-humana-e-a-jurisprud%C3%AAncia .
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