A justiça de transição consiste em um conjunto de dispositivos que regula a restauração do Estado Democrático de Direito ( EDD ) após regimes ditatoriais ou conflitos armados internos, englobando cinco dimensões ( ou facetas ):
1) direito à verdade;
2) direito à memória;
3) direito à reparação das vítimas;
4) o dever de responsabilidade dos perpetradores das violações aos Direitos Humanos ( DH ); e
5) a formatação democrática das instituições protagonistas da ditadura ( por exemplo, as Forças Armadas ) .
O direito à verdade consiste na exigência de toda informação de interesse público bem como exigir o esclarecimento de situações inverídicas relacionadas a violações de DH. Tem natureza individual ( * vide nota de rodapé ) e coletiva ( *2 vide nota de rodapé ), pois interessa a toda a comunidade o esclarecimento das situações de desrespeito aos DH. tem dupla finalidade:
1) o conhecimento e também
2) o reconhecimento
das situações, combatendo a mentira e a negação de eventos, o que concretiza o direito à memória.
Recentemente, a Lei número Doze mil quinhentos e vinte e sete / Dois mil e onze regulamentou o acesso a informações previsto no Inciso Trinta e três do Artigo quinto da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e no Inciso Segundo do parágrafo Terceiro do Artigo Trinta e sete, bem como no Artigo Duzentos e dezesseis da CF - 88 .
O direito à verdade é concretizado tanto na sua faceta histórica, mediante Comissões de Verdade ( ver a Lei número Doze mil Quinhentos e vinte e oito / Dois mil e onze ), quanto na sua faceta judicial 9 fruto das ações judiciais - cíveis e criminais - de punição dos agentes responsáveis ) .
No Brasil, a Lei número Doze mil Quinhentos e vinte e oito / Dois mil e doze criou a Comissão Nacional da Verdade ( CNV ) . De acordo dom o seu Artigo Primeiro, a CNV tem como finalidade "examinar" e esclarecer as graves violações de DH praticadas no período fixado no Artigo Oitavo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ( ADCT ) ( período de Dezoito de setembro de Mio novecentos e quarenta e seis até a dada da promulgação da CF - 88 ), a fim de efetivar o direito á memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional " .
Além de
1) esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de DH, promovendo o esclarecimento dos casos de tortura ( *3 vide nota de rodapé ), mortes ( *4 vide nota de rodapé ), desparecimentos forçados ( *5 vide nota de rodapé ), ocultação de cadáveres ( *6 vide nota de rodapé ) e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior, a CNV deve encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na
2) localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos e
3) recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de DH, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional .
Quanto á obtenção da verdade judicial, é cabível a responsabilização dos agentes que promoveram graves violações de DH durante a ditadura militar. Para tanto, a Corte Internacional de Direitos Humanos ( Corte IDH ) ( *7 vide nota de rodapé ) considerou ser inaplicável a Lei número Seis mil seiscentos e oitenta e três / Mil novecentos e setenta e nove ( Lei da Anistia ) aos agente da ditadura, uma vez que tal lei ofendeu o direito á justiça das vítimas e seus familiares, previsto implicitamente nos Artigos Oitavo e Vinte e cinco da Convenção Americana sobre DH ( CADH ) ( *8 vide nota de rodapé ) ( Caso Gomes Lund versus Brasil, sentença de Vinte e quatro de outubro de Dois mil e dez ) ( *9 vide nota de rodapé ) .
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal ( STF ) decidiu pela improcedência da ADPF número Cento e cinquenta e três, interposta pelo Conselho Federal da ordem dos Advogados do Brasil ( OAB ), que almejava a interpretação conforme a Constituição da Lei da Anistia, no sentido de excluir os agentes da ditadura do seu alcance. Para o relator, Ministro Eros Grau, a Lei da Anistia veiculou uma decisão política assumida naquele momento e a CF - 88 não pode afetar leis - medida que a tenham precedido ( ADPF número Cento e cinquenta e três, Relator Ministro Eros Grau, julgada em Vinte e nove de abril de Dois mil e dez, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Seis de agosto de Dois mil e dez ) .
Em Dez de dezembro de Dois mil e quatorze, a CNV, criada pela Lei número Doze mil Quinhentos e vinte e oito / Dois mil e onze, entregou seu relatório final, que contempla a análise de graves violações de DH dentro do período de Mil novecentos e quarenta e seis a mil novecentos e oitenta e oito. Composto por três volumes, o relatório final documentou especialmente centenas de casos de violações graves de DH cometidos por agentes da ditadura militar ( Mil novecentos e sessenta e quatro - Mil novecentos e oitenta e cinco ), atestando que tais violações consistiram em uma política sistemática de Estado 9 e não atos isolados, de indivíduos - civis ou militares - agindo contra orientações superiores ) .. Conforme consta do relatório, " na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos se converteram em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares " ( página Novecentos e sessenta e três ) . Assim, tais crimes têm, de acordo com o relatório final, a natureza de crimes contra a humanidade. Essa conclusão é importante e está em consonância com a decisão da Corte IDH no Caso Gomes Lund versus Brasil ( Dois mil e dez ) .
A consequência da caracterização de tais condutas dos agentes da ditadura militar como crimes contra a humanidade são as seguintes:
1) não é possível a alegação de qualquer imunidade ou anistia;
2) essas condutas são imprescritíveis; e
3) cabe ao Estado, por seus órgãos ( Ministério Público Federal - MPF e Justiça Federal - JF, não sendo possível o julgamento por juízos militares - Caso Gomes Lund versus Brasil ), investigar, perseguir em juízo e punir criminalmente os responsáveis .
Por sua vez, a terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça ( STJ ) decidiu que não é possível processar criminalmente os responsáveis pelo chamado " atentado do Rio - centro ", no qual houve uma malsucedida tentativa por parte de militares brasileiros de colocar bomba no Centro e Convenções Riocentro, que explodiria em evento comemorativo do " Dia do Trabalhador " ( a bomba explodiu no próprio carro dos militares, em 30 de abril de Mil novecentos e oitenta e um ) . Para o voto vencedor do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, os fatos estão sob o abrigo da anistia prevista no Artigo Quarto, Parágrafo Primeiro, da Emenda Constitucional ( EC ) número Vinte e seis, promulgada em Vinte e sete de novembro de Mil novecentos e oitenta e cinco. Além disso, houve coisa julgada material ( mesmo que, que fruto de juízo incompetente, o Superior Tribunal Militar - STM ) a favor dos imputados. Também foi mencionado o efeito vinculante da ADPF número Cento e cinquenta e três, que considerou recepcionada pela CF - 88 a anistia ofertada anteriormente. Quanto à natureza de jus cogens ( *10 vide nota de rodapé ) e de crime contra a humanidade ( *11 vide nota de rodapé ) ( e, por isso, imprescritível ), considerou - se que a utilização da Convenção sobrea Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra contra a Humanidade ( não ratificado pelo Brasil ) seria " afronta á própria soberania estatal e à supremacia da CF - 88 " .Ademais, a prescrição penal tem natureza de norma de direito material penal, e sua desconsideração ofende:
1) o princípio da segurança jurídica;
2) o princípio constitucional da legalidade e
3) o princípio constitucional da irretroatividade da lex gravior ( *12 vide nota de rodapé ) , previsto no Artigo Quinto, Inciso Quarenta da CF - 88 ( " a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu " ) . Quanto ao controle de convencionalidade e ao respeito às decisões da Corte IDH sobre justiça de transição, considerou - se que a hierarquia interna da Convenção das deliberações internacionais de DH no Brasil é matéria reservada ao STF, não podendo o Superior Tribunal de Justiça ( STJ ) dele divergir ( STJ, Recurso Especial número Um milhão setecentos e noventa e oito mil novecentos e três, Relator para a Acórdão Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, por maioria, vencidos os Ministros Rogério Schietti e Sebastião Reis Júnior, julgado em Vinte e cinco de agosto de Dois mil e dezenove ) .
Quanto à formatação democrática das instituições do Estado, a prática da justiça de transição defende o afastastamento dos cargos ou funções públicas daqueles indivíduos que apoiaram o se envolveram, de algoma forma, com a ditadura. Essa política é chamada de depuração ou lustração ( vetting ou lustration ), que gera
1) a renovação dos quadros e das práticas estatais e
2) a prevenção de novos atentados ao EDD, pela sanção de afastamento aos que apoiaram as iniciativas pretéritas.
A política de vetting foi intensamente adotada após a redemocratização nos Estados do ex - bloco soviético, afastando do poder os servidores públicos ex - membros do partido Comunista do país, especialmente os vinculados aos serviços internos de informação política ( *13 vide nota de rodapé )
P.S.:
Notas de rodapé:
* Os direitos individuais, no contexto dos Direitos Humanos são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-os-direitos.html .
*2 Os direitos coletivos, no contexto dos Direitos Humanos são melhora detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-quando-os-dh-vao-alem.html .
*3 O crime de tortura, como grave violação de Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-previne-e.html .
*4 O direito à vida, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/05/direitos-humanos-o-direito-vida-em-seus.html .
*5 O crime de desaparecimento forçado, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-visa_21.html .
*6 O princípio da dignidade humana, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-principio-da.html .
*7 A Corte Internacional de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .
*8 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-americana.html .
*9 O Caso Gomes Lund versus Brasil é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-corte-edita-mais-de.html ( Caso 94 ) .
*10 jus cogens: o direito cogente; norma cuja aplicação é obrigatória, sem possibilidade de a parte a ela renunciar. Dicionário latim-português: termos e expressões / supervisão editorial Jair Lot Vieira - São Paulo: Edipro, Dois mil e dezesseis.
*11 Os crimes contra a humanidade, no contexto dos Direitos Humanos, são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-os-crimes-contra.html .
*12 Lex gravior, literalmente "lei mais grave", é a expressão latina usada no direito penal para designar a lei mais prejudicial ao direito de liberdade do acusado, contrapondo-se à expressão lex mitior.
*13 Weichert, Marlon. Justiça transicional. São Paulo : Estúdio Editores, Dois mil e quinze, Página Trinta e cinco.
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