quarta-feira, 31 de julho de 2019

Comércio internacional: a poupança interna e o risco do protecionismo

Jamais um grande país deveu a seus credores estrangeiros em sua própria moeda, como é o caso dos Estados Unidos da América ( EUA ) hoje. todas as outras principais nações devedoras - Brasil ( que no século vinte e um passou a ser credor externo e modificou o perfil de suas dívidas ), México, Zaire ( atual Congo ) - devem na moeda de seu credor, principalmente em dólares. Assim como ocorreu nos anos vinte com a Alemanha e outros países europeus - os grandes devedores daquela época. Contudo, a dívida externa dos EUA hoje é toda em dólares.

As vantagens para o país são enormes e tão sem precedentes quanto a situação em si. Pela primeira vez, um país devedor está em posição de se beneficiar tanto em sua conta de capital quanto em sua conta de comércio ao desvalorizar sua moeda. Historicamente, um país devedor obtém posição competitiva para seus produtos por meio da desvalorização de sua moeda, embora apenas por um curto período. Assim, as exportações aumentam e as importações diminuem, e um déficit comercial se transforma em superávit comercial. Assim ocorreu durante o governo do presidente Carter dos EUA, quando a política americana abruptamente forçou a desvalorização do dólar. Entretanto, ao mesmo tempo, a balança de pagamentos do país se deteriora, uma vez que os juros e o principal devem ser pagos na moeda do devedor. Se a dívida externa estiver alta, a penalidade na balança de pagamentos poerá ser maior que o ganho a ser obtido na balança comercial. Esta é, por exemplo, a razão pela qual, em mil novecentos e trinta e um, os alemães escolheram ( olhando para trás, constata-se que a decisão foi equivocada ) impor controle monetário para manter uma taxa de câmbio grosseiramente supervalorizada em favor do marco ( moeda alemã da época - a atual é o euro ), em vez de desvalorizá-lo e aumentar as exportações e o emprego.

Uma queda aguda do valor internacional do dólar, contudo, deverá melhorar a balança de pagamento dos EUA e aliviar fortemente o peso da dívida externa americana sobre a economia interna, restaurando o verdadeiro valor do dólar para os credores do país.

Por que, então a administração do presidente Ronald Reagan dos EUA ( sucessor de Carter ) esperou tanto tempo antes de agir para corrigir a óbvia sobrevalorização do dólar, especialmente frente ao iene ( moeda do Japão ) ? A sobrevalorização do dólar tem sido um dos principais fatores - ou talvez o principal fator - que contribuiu para o declínio tanto dos produtos manufaturados quanto dos agrícolas, fato universalmente aceito, pelo menos desde mil novecentos de oitenta e três. Apesar disto, em mil novecentos e oitenta e cinco, a política americana - e isto significa tanto o Federal Reserve Board ( o equivalente ao Banco Central dos EUA ) quanto o Tesouro - consistentemente visava a manter a taxa de câmbio do dólar ao maior valor possível, excluindo - ou assim parecia para a maioria dos observadores estrangeiros - qualquer outra consideração de meta ou de política econômica.

A resposta é, naturalmente, que o governo precisou de gigantescos empréstimos estrangeiros. Somente os japoneses, em mil novecentos e oitenta e cinco, lhe haviam emprestado entre cinquenta bilhões e sessenta bilhões de dólares, que podiam obter apenas por meio de seu superávit comercial com os americanos. Foram eles, portanto, que forneceram a parte do leão do dinheiro necessário para financiar o déficit orçamentário dos EUA. Confrontadas com as alternativas de cortar significativamente os gastos do governo ou tomar emprestado em âmbito interno e aumentar as taxas de juros, as autoridades do governo, compreensivelmente, devem ter concluído que a opção menos ruim era ter um déficit da balança comercial, com todas as consequências negativas para os empregos e para a posição competitiva de longo prazo americanos.

Mas, como a dívida externa dos EUA é em moeda americana, o credor externo poderá ser facilmente expropriado. São dispensáveis ações legais, inadimplência ou não reconhecimento da dívida. Tudo pode ser feiro sem pedir permissão aos credores e, certamente, sem sequer avisar a eles. É preciso apenas desvalorizar o dólar. Com efeito, entre junho ( quando o dólar teve um pico de duzentos e cinquenta ienes ) e fevereiro de mil novecentos e oitenta e seis, os credores japoneses dos EUA - principalmente o Bank of Japan ( BJ ), os principais bancos nipônicos e as grandes trading cmpanies - perderam um terço do valor de suas possessões em valores mobiliários do Tesouro americano, a forma como é feita a maioria dos investimentos japoneses nos EUA. ( * vide nota de rodapé ).

Ninguém nos EUA parece saber disto ou, pelo menos, ninguém fala no assunto, mas todos os elaboradores de políticas que Peter F. Drucker dizia ter chegado a conhecer no Japão - funcionários do governo, banqueiros, homens de negócio, professores de Economia - estavam, à época, inteiramente conscientes destas perdas. E estavam todos convencidos de que era algo inevitável. Embora alguns japoneses, especialmente entre os economistas, se preocupassem por temer que uma perda desta proporção pudesse ameaçar a solvência do sistema bancário do país, todos pareciam entender que este era um mal menor, comparado a qualquer outra alternativa viável na década de oitenta.

Do ponto de vista do Japão, não existe uma opção viável para restabelecer o equilíbrio comercial entre os dois países. Isto porque a causa principal não é o dólar sobrevalorizado nem a debilidade da indústria americana, a agressividade das exportações japonesas nem, muito menos, as barreiras de importação de produtos americanos. Caso estas barreiras fossem levantadas - o que seria extremamente desejável e já deveria ter sido feito há muito tempo - , a diminuição do déficit seria de, no máximo, de cinco a seis bilhões de dólares, de um total de cinquenta bilhões de dólares.

A causa principal é a drástica redução, no mundo todo, dos preços dos produtos primários, especialmente dos preços de produtos agrícolas e florestais. Comparados com os preços de bens manufaturados - especialmente os de grande valor agregado, como automóveis, máquinas fotográficas, eletrodomésticos e semicondutores, que constituem o grosso das exportações japonesas para os EUA - , s produtos primários têm hoje os preços mais baixos da história - incluído aí o período da Grade Depressão ( *2 vide nota de rodapé ). O Japão é o maior importador mundial de produtos primários e, com efeito, exceto a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ( URSS  - atual Federação Russa ), o único grande importador mundial de alimentos, agora que o Mercado Comum Europeu ( MCE ) se transformou em exportador, e a China e a Índia atingiram o ponto de equilíbrio. e o Japão é o maior exportador mundial de bens manufaturados de alto valor agregado. Contrastando com isto, os EUA são o maior exportador mundial de produtos agrícolas e florestais. Se, levando isso em conta, o comércio entre EUA e Japão for ajustado, isto é, se a relação entre os preços de produtos primários e de bens manufaturados fosse ajustada para permanecer no mesmo nível que estava em mil novecentos e setenta e três, pelo menos um terço e talvez dois quintos do déficit comercial dos EUA frente ao Japão desapareceriam.

Entretanto, não há alguma medida que qualquer dos dois países possa tomar para corrigir este desequilíbrio: existe um excedente mundial de produtos primários que continuará ao longo dos próximos anos. Na verdade, a única ação que poderia ser tomada - e isto poderia acontecer se os EUA estivessem dispostos a iniciar uma guerra comercial com o Japão - seria se os orientais passassem a importar produtos primários ( algodão, tabaco, soja, trigo, milho, madeira, etc... ) de outro país. Eles poderiam fazer isto em menos de um ano, uma vez que já estão recebendo propostas de outros países para o fornecimento de grandes quantidades de todos estes produtos - a preços mais baixos do que os EUA estão vendendo, com uma taxa de câmbio mais vantajosa do que a de dólar-iene.

No entanto, os japoneses não conseguem vislumbrar alternativa política senão comprar dos americanos e, portanto, financiar o déficit dos EUA, mesmo correndo o risco de sofrer grandes perdas. De outra forma, o Japão teria de enfrentar uma taxa de desemprego ( estimada pelo menos o dobro da taxa americana, de sete por cento ) de uma magnitude que nenhum governo se arriscaria a aceitar. A economia interna do Japão tem se mantido estagnada desde o início dos anos oitenta e nenhuma das medidas adotadas pelo governo conseguiu reavivá-la. A pressão política no país é enorme. No entanto, o déficit do governo japonês já está em um nível tão elevado que aumentá-lo poderá desencadear um novo surto inflacionário. E o curto, porém severo, baque inflacionário sofrido pelos país em meados dos anos setenta convenceu muitos preocupados japoneses, especialmente no BJ e no Ministério das Finanças ( MF ), de que a resistência do país é baixa contra esta perigosa doença.

As exportações são responsáveis por cerca de quinze por cento dos empregos japoneses. Sem as exportações para seu principal cliente, a indústria automobilística e a indústria do aço ficariam em situação mais precária que a americana. Se, em mil novecentos e oitenta e cinco, a Nippon Steel ( NS ) já operava com baixíssimos sessenta por cento da capacidade ( dando, inclusive, prejuízo ), sem as exportações ela cairia para abaixo de quarenta por cento. Proporcionalmente, em comparação com a dos EUA, as indústrias do aço e automobilística são responsáveis no Japão por, pelo menos, o dobro da força de trabalho de operários. Este problema é agravado por três fatores em que a sociedade pós-guerra japonesa se baseia: a premissa do emprego vitalício; a inabilidade dos trabalhadores demitidos ou colocados à disposição de conseguir novos empregos tendo em vista a rigidez do sistema salarial do país; e pelo fato de o Japão não contar com um sistema de seguro-desemprego. Não surpreende, portanto, que os elaboradores e políticas prefiram sofrer perdas quase certas, mas futuras, sobre os empréstimos ao governo dos EUA a correr riscos políticos e sociais imediatos de conviver com altas taxas de desemprego no país.

Esta é a realidade econômica do relacionamento Japão-EUA. E explica, em grande parte, a razão pela qual os japoneses não ficaram até agora tão significativamente impressionados com as breves ameaças americanas de retaliação protecionista contra os produtos do país. Eles avaliam que os americanos dificilmente tomariam uma decisão que tanto ameaçaria sua já deprimida economia agrícola quanto forçaria os EUA a tomarem alguma providência em relação a seu déficit de governo. Até aqui, eles acertaram: os EUA ladram mas não mordem com sua boca sem dentes. Mas esta realidade indicaria também que o governo americano não consegue entender o que poderia ser feito.

Qualquer ação, por parte dos japoneses, que removesse barreiras para a entrada de empresas e produtos americanos não surtiria qualquer efeito material no desequilíbrio comercial. Mas poderia ser significativo impacto psicológico e remover um punhado de emoções que ameaçam envenenar o relacionamento entre os dois países. contudo, não passa de falta de entendimento da realidade política e econômica acreditar, como acreditava o presidente Reagan, que o Primeiro-Ministro japonês da época, Nakasone, ou qualquer outro líder político japonês, pudesse fazer concessões voluntárias. Ele devia ter espaço para culpar algum maldito estrangeiro, devia ser capaz ade dizer: "Fui forçado a ceder sob a ameaça das armas" - especialmente, porque a política japonesa estava sendo tão turbulenta naqueles dias que ninguém conseguia formar uma maioria confiável.

Mas a verdadeira implicação desta realidade é que a chave para o problema comercial EUA-Japão - e para o problema da posição competitiva dos EUA nos mercados mundiais, como um todo - não é m dólar mais barato, nem o aumento da produtividade americana ou custos comparativos de mão de obra mais baixos. Preços mais elevados de produtos primários ajudariam imensamente, mas há pouca possibilidade de que isto ocorra, em virtude dos superávits e da superprodução mundial. A raiz do problema americano é o déficit do governo dos EUA e a crescente dependência de empréstimos externos em prejuízo de o estímulo a poupança interna. Outras informações podem ser obtidas no livro As fronteiras da administração, de autoria de Peter F. Drucker.

P.S.:

Notas de rodapé:

* A lógica dos investimentos japoneses nos EUA é melhor detalhada em:


*2 O declínio do preços dos produtos primários é melhor introduzido em:

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