sexta-feira, 23 de julho de 2021

Direitos Humanos: a transição para a democracia e a continuidade das violações

Os Direitos Humanos na denominada transição para a democracia


Desde a passagem do poder militar para o civil, tutelado por aquele, a perplexidade atingiu os movimentos e entidades de Direitos Humanos. Aliás, este processo já se esboçou a partir da realização de eleições diretas para os governadores de Estados em Mil novecentos e oitenta e dois.


Houve o discurso oficial de que tudo houvera mudado, ou pelos menos estivera mudando; já hão houvera presos políticos ( *4 vide nota de rodapé ), nem censura à imprensa. Os militares voltavam às casernas e os governos estaduais foram eleitos democraticamente. Até a eleição presidencial, pelo Colégio Eleitoral, fora apresentada como democrática, porquanto os eleitores, ou seja, os parlamentares eram mandatários do povo.


Mudara ou não mudara? De que democracia se estivera falando?


Em verdade, o que aqui se denomina transição teve início em Mil novecentos e setenta e quatro, com a política de distensão lenta, gradual e segura, do General Ernesto Geisel, passando pela política de abertura do General João Batista de Oliveira Figueiredo, em Mil novecentos e setenta e nove, que vai por sua vez, resultar na transição democrática, que possibilitou a Tancredo de Almeida Neves ser eleito presidente por via indireta, através do Colégio Eleitoral. Foi, então, no governo Geisel que teve início o processo de transição que viveu-se até Mil novecentos e oitenta e nove. Os miliares prepararam o caminho para que, ao saírem da linha de frente da direção do Estado, pudessem deixar o poder em mãos consideradas confiáveis, mas sob a espreita e tutela do militarismo.


"O regime instaurado em Mil novecentos e sessenta e quatro não foi propriamente derrotado pelos adversários. Ele evoluiu e se transformou por si mesmo, sob o comando das mesmas forças que sempre o controlaram: militares e os empresários. A classe política retomou livremente sua tradicional atividade, num quadro constitucional já transformado pelos antigos governantes, com a expiração de vigência do Ato Institucional número Cinco, em Mil novecentos e setenta e oito, e a eleição dos governadores de Estado em Mil novecentos e oitenta e dois. O único ato verdadeiramente insurrecional da classe política teria sido a votação, sob o General Figueiredo, da emenda constitucional das eleições presidenciais diretas. Mas, como todos se recordam, o partido governamental ( o antigo Partido Democrático Social - PDS, que depois mudou de nome para Partido Progressista Brasileiro - PPB e atualmente mudou novamente de nome para Partido Progressista - PP ), liderado à época por aquele que seria o primeiro presidente da 'Nova República', liquidou, com sua abstenção, as veleidades insurrecionais de alguns oposicionistas. E tudo o que, doravante, representasse, realmente, um acerto de contas com os antigos titulares do poder, foi rápida e severamente proscrito, pelos novos líderes, como ato de revanchismo" ( *28 vide nota de rodapé ).


Não houve, portanto, ruptura com o regime anterior. Faz-se um pacto de elites, conservador e pelo alto, ou seja, sem povo. Um arranjo de cúpula, destinado a manter o regime e sistema dominantes com total desprezo pela grande maioria de pobres e oprimidos, que, atualmente, numa população de mais ou menos Duzentos e dez milhões de habitantes, gira em torno de Cem milhões de pessoas, cuja cidadania inexiste.


É inegável que medidas liberalizantes vêm sendo tomadas. Ainda no período Geisel e Figueiredo, restabeleceram-se o habeas corpus ( *4 vide nota de rodapé ) e a liberdade de imprensa ( *26 vide nota de rodapé ), promoveram-se a anistia, a reorganização partidária ( *10 vide nota de rodapé ) e as eleições diretas para governadores de Estado.


A Nova República revogou a Lei Falcão, estendeu o direito de voto aos analfabetos e legalizou os partidos comunistas ( *10 vide nota de rodapé ).


É de se indagar, todavia, se se está ou não, mais uma vez, diante da velha tradição brasileira, consistente na conciliação das elites, expressa na frase do Professor Fábio Konder Comparato, edição de Vinte e oito de abril de Mil novecentos e oitenta e quatro, adverte:


"Com a conciliação não se muda coisa alguma, senão que se coopta um grupo de descontentes insinceros - os descontentes que incomodam - para uma redefinição de hegemonia, sem abertura de melhores condutos entre os dirigentes e os destinatários do poder".


Se é verdade, porém, que a anistia, a reorganização partidária ( *10 vide nota de rodapé ) e demais medidas liberalizantes constituem avanços democráticos, não menos verdade é também que tais medidas, por si só, não correspondem aos verdadeiros anseios populares.


A anistia, por exemplo, inserida no contexto da distensão lenta, gradual e segura, não foi ampla, geral e irrestrita como reivindicavam muitos setores da opinião pública. Ao atender parcialmente, de um lado, procuraram anistiar também os torturadores ( *3 vide nota de rodapé ) e assassinos ( *7 vide nota de rodapé ), que, de forma covarde, cometeram atentados à dignidade ( *25 vide nota de rodapé ) e à vida humana ( *7 vide nota de rodapé ). Procuram, desta forma, selar com o crivo da impunidade os autores de crimes hediondos ( *29 vide nota de rodapé ) contra a humanidade ( *8 vide nota de rodapé ).


O que dizer, então, da liberdade de imprensa ( * 12 vide nota de rodapé ), quando os grandes meios de comunicação estão controlados por interesses empresariais privados, de algumas poucas famílias, conforme se tem denunciado nos congressos de jornalistas?


E voto dos analfabetos? Se é verdade que, quanto mais o povo participa do processo eleitoral tanto melhor, é verdade também que, por si só, isto não basta para caracterizar uma verdadeira democracia, visto que esta não se restringe apenas ao exercício, pelo voto, do direito de voto a cada quatro anos, mais ou menos.


"No entanto, mesmo para uma definição mínima de democracia, como é o que aceita Bobbio, não bastam nem a atribuição a um elevado número de cidadãos do direito de participar direta ou indiretamente da tomada de decisões coletivas, nem a existência de regras de procedimento como a da maioria ( ou no limite da unanimidade ). é indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles, que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir, sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condições de escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade ( *4 vide nota de rodapé ), de opinião ( *12 vide nota de rodapé ), de expressão das próprias opiniões ( * 12 vide nota de rodapé ), de reunião ( *30 vide nota de rodapé ), de associação ( *10 vide nota de rodapé ), etc." ( *31 vide nota de rodapé ).


Um país com quase Cem milhões de miseráveis, em que o exercício da cidadania é privilégio de poucos, em que as regras do jogo eleitoral são ditadas pelo poder econômico e a participação dos partidos políticos nos grandes meio de comunicação, como televisão, não é igualitária ( *15 vide nota de rodapé ), a realização de eleições torna-se uma grande farsa que só contribui para a manutenção do status quo, como ocorreu nas últimas eleições para escolha dos deputados constituintes.


A referência às eleições para a Assembleia Nacional Constituinte torna-se necessário lembrar o caráter da atual Assembleia, como parâmetro para avaliar a atual transição democrática.


A tese da Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana, desvinculada do Congresso Nacional, foi defendida por setores democráticos da sociedade brasileira, como forma de ampliar e dar continuidade às reivindicações de mudanças sociais, econômicas e políticas, expressas por movimentos sociais e populares, ao longo do período da ditadura militar e, especialmente, durante a campanha nacional pelas diretas já.


No entanto, coerente com o projeto conservador de transição pelo alto, de conciliação entre as elites, prevaleceu a Assembleia Nacional Constituinte congressual, a confirmar ainda uma vez a proposta de transição lenta, gradual e segura, iniciada no regime militar, pelo General Geisel, e da abertura, durante o governo Figueiredo.


A continuidade deste projeto visa a, além de impedir a soberania da Assembleia Nacional Constituinte, manter intocável a atual Constituição, no que concerne ao papel destinado às Forças Armadas.


Os que pretendem a perpetuação do Estado de Segurança Nacional ( * vide nota de rodapé ) buscam preservar as Forças Armadas como instrumento autônomo de manutenção da ordem interna, como tutora do Estado e do regime. A democracia impõe a subordinação das Forças Armadas ao poder civil, reduzindo sua autonomia e limitando seu papel à defesa da independência, soberania e integridade nacionais.


Muitos têm sido os discursos de elogio, defesa e apologia da democracia. Porém, palavras como democracia, liberdade ( *4 vide nota de rodapé ) e igualdade ( *15 vide nota de rodapé ) só têm sentido na história, na realidade da vida de um povo, no país real.


Mas, as elites dominantes estariam ensaiando passos democráticos como projeto a longo prazo, ou como expediente transitório? A resposta a esta pergunta fica evidente, quando se analisam o projeto de reforma agrária ( *20 vide nota de rodapé ) - tão exaltado nos discursos e irrealizado na prática, enquanto a violência cresce no campo ( *20 vide nota de rodapé ) com total impunidade dos autores desta violência - , a repressão às greves e aos movimentos sociais, a manutenção dos instrumentos de exceção, tais como a Lei de Segurança Nacional ( *2 vide nota de rodapé ), a Lei de Greve e o Estado de Emergência, para mencionar apenas alguns.


Não é possível falar em democracia, se a estrutura do poder autoritário permanece intacta. Tampouco é insuscetível, neste contexto, a admissão da plenitude da vigência dos Direitos Humanos para a grande maioria de brasileiros despossuídos ( *18 vide nota de rodapé ), marginalizados ( *15 vide nota de rodapé ) do processo político e desprovidos de cidadania.


"Fundamentalmente, o processo de liberalização dos controles sociais e políticos, que foram negociados durante o período de distensão do Presidente Geisel e de abertura do Presidente Figueiredo, chegou em Mil novecentos e oitenta e quatro a um impasse. Está cada vez mais claro que não existe, no Brasil, um processo de 'transição para a democracia' mas sim uma tentativa de institucionalização de estruturas de Estado visando a ampliar o apoio político e, ao mesmo tempo, manter o controle básico de classe" ( *32 vide nota de rodapé ).


A Nova República é a própria expressão deste processo. A Aliança Democrática, a denominada transição democrática, de caráter conservador e elitista, visam a institucionalização liberalizada do Estado de Segurança Nacional ( *2 vide nota de rodapé ).       


P.S.:


Notas de rodapé:


* As violações aos Direitos Humanos que sustentaram a Doutrina de Segurança Nacional são melhor detalhadas em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-as-viola%C3%A7%C3%B5es-que-sustentaram-a-doutrina-de-seguran%C3%A7a-nacional .


*2 O que é a Doutrina de Segurança Nacional e seu impacto sobre os Direitos Humanos são melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-conviv%C3%AAncia-com-a-doutrina-de-seguran%C3%A7a-nacional .


*3 O que é o crime de tortura é melhor explicado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-23 . 


*4 O que é a limitação do poder estatal sobre o status libertatis do indivíduo é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-82 .


*5 O que são as penas inaplicáveis como a pena de morte e banimento, é melhor explicado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-70 .


*6 O direito ao desenvolvimento nacional é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-8 .


*7 O direito à vida é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-12 .


*8 Os crimes contra a humanidade, em especial o de genocídio são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-67 .


*9 O direito ao trabalho é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-48 .


*10 O direito de livre associação é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-53 .


*11 O direito à presunção de inocência é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-77 .


*12 O direito à liberdade de manifestação do pensamento é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-24 .


*13 O direito à liberdade de culto é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-34 .


*14 A teoria geral dos direitos humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*15 O princípio da igualdade é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-16 .


*16 O direito à intimidade e à vida privada é melhor detalhado em


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-44 .


*17 O direito à inviolabilidade do domicílio é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-43 .


*18 O direito à propriedade é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-54 .


*19 O fenômeno da exploração de uma maioria por uma minoria é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-explora%C3%A7%C3%A3o-de-uma-minoria-sobre-a-grande-maioria-do-povo .


*20 A violência o campo é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-quest%C3%A3o-agr%C3%A1ria-e-a-justa-distribui%C3%A7%C3%A3o-de-propriedades-rurais .


*21 O direito a um meio ambiente equilibrado é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*22 O direito à saúde pública é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*23 O direito das crianças e adolescentes à proteção integral é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*24 O direito ao acesso à justiça é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-85 .


*25 O direito à dignidade humana é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*26 A liberdade de informação e livre divulgação dos fatos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-49 .


*27 O mito de que defensores de Direitos Humanos são defensores de bandidos, são melhor desfeitos em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-seguran%C3%A7a-p%C3%BAblica-a-criminalidade-e-as-viola%C3%A7%C3%B5es


*28 Comparato, Fábio Konder. Muda Brasil - Uma Constituição para o Desenvolvimento Democrático. São Paulo: Brasiliense. Mil novecentos e oitenta e seis. Página Onze.


*29 A lei dos crimes hediondos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-68 .


*30 O direito de reunião é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-52 .


*31 Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo ( Tradução de Marco Aurélio Nogueira ). Rio de Janeiro. Paz e Terra. Mil novecentos e oitenta e seis. Página Vinte.


*32 Alves, Maria Helena moreira. Estado e Oposição no Brasil ( Mil novecentos e sessenta e quatro a Mil novecentos e oitenta e quatro ). Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro. Editora Vozes. Mil novecentos e oitenta e quatro. Página Trezentos e vinte e sete.


Mais em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-transi%C3%A7%C3%A3o-para-a-democracia-e-a-continuidade-das-viola%C3%A7%C3%B5es


Referência


Santos Júnior, Belisário; Plastino, Carlos Alberto; Junqueira, Eliane Botelho; Rodrigues, José Augusto de Souza; Gómez, José Maria; Barbosa, Marco Antonio Rodrigues. Direitos humanos - um debate necessário. Instituto Interamericano de Direitos Humanos. Editora Brasiliense. Mil novecentos e oitenta e oito. Páginas Sessenta e cinco a Setenta e um.

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