Em face de um aparente caos e da resistência do Supremo Tribunal Federal ( STF ) em reconhecer a hierarquia constitucional dos tratados de Direitos Humanos ( DH ) - o STF reconhece a hierarquia legal - , o movimento de DH buscou convencer o Congresso Nacional ( CN ) a aprovar emenda constitucional ( EC ) contendo tal reconhecimento.
Foi então, aprovada a EC número quarenta e cinco / Dois mil e quatro, que introduziu o Parágrafo Terceiro no Artigo quinto da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito, com a seguinte redação:
"Os tratados e convenções internacionais sobre DH que forem aprovados, em cada Casa do CN, em dois turnos, p0or três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes ás ECs".
A redação final aprovada do dispositivo foi recebida, contudo, com pouco entusiasmo pelos defensores de DH, pelos seguintes motivos:
1) condicionou a hierarquia constitucional ao reto idêntico ao das ECs, aumentando o quórum da aprovação congressual futura e estabelecendo dois turnos, tornando-a mais dificultosa;
2) sugeriu, au usar a expressão "que forem", a existência de dois tipos de tratados de DH no pós-EC: os aprovados pelo rito equivalente ao da EC e os aprovados pelo rito comum ( maioria simples );
3) nada mencionou quanto aos tratados anteriores à EC.
Cançado Trindade, em contundente voto em separado no Caso Damião Ximenes, da Corte Interamericana de DH ( Corte IDH ) ( * vide nota de rodapé ), criticou duramente o citado Parágrafo: " ( ... ) mal concebido, mal redigido e mal formulado, representa um lamentável retrocesso em relação ao modelo aberto consagrado pelo Parágrafo Segundo do Artigo Quinto da CF - 88". Para sintetizar, Cançado Trindade o denomina "aberração jurídica" ( Parágrafos Trinta a Trinta e um do citado voto em Separado ).
Após a EC, houve quem defendesse sua inconstitucionalidade nesse ponto, por ter piorado a hierarquia dos tratados de DH e, assim, violado cláusula pétrea ( Artigo Sessenta, Parágrafo Quarto, referente à proibição de EC que tenda a abolir direitos e garantias individuais ). Essa visão era baseada na crença da existência anterior do estatuto constitucional dos tratados internacionais de DH, fundado no interpretação do alcance do Artigo Quinto, Parágrafo Segundo, não aceita pelo STF. Essa visão também não foi aceita pelo próprio STF, que, em mais de uma ocasião, fez referência ao Artigo Quinto, Parágrafo Terceiro, sem qualquer alegação de inconstitucionalidade.
Por outro lado, parte da doutrina entendeu que a batalha pela natureza constitucional de todos os tratados internacionais fora perdida; somente alguns seriam equivalentes à EC, a saber, os que fossem aprovados pelo rito especial recém-criado. Nessa linha, José Afonso da Silva defendeu que, após a EC Quarenta e cinco / Dois mil e quatro, existiriam dois tipos de tratados de DH: os aprovados pelo rito especial do Artigo Quinto Parágrafo Terceiro e os que não aprovados ( quer por serem anteriores á EC Quarenta e Cinco / Dois mil e quatro ou, se posteriores, terem sido aprovados pelo rito simples ). Os últimos teriam estatuto equivalente á lei ordinária federal e somente os primeiros teriam estatura constitucional ( *2 vide nota de rodapé ).
Por sua vez, houve aqueles que sustentaram que o estatuto constitucional se estenderia ao menos aos tratados de DH aprovados anteriormente, graças aos instituto da recepção formal, aceito pelo constitucionalismo brasileiro, tal qual leis ordinárias preexistentes que foram consideradas leis complementares em face do novo posicionamento hierárquico da matéria pela nascente ordem constitucional. Essa posição restou fragilizada em face - novamente - da redação do Artigo Quinto, Parágrafo Terceiro, que aceita a possibilidade de tratados no pós-EC serem aprovados pelo rito simples. Assim, como os tratados anteriores seriam recepcionados com qual hierarquia, se a EC Quarenta e cinco / Dois mil e quatro usou a expressão "que forem" no Parágrafo Terceiro do Artigo Quinto, abrindo uma alternativa ao CN para aprovar os tratados pelo rito simples?
Entre esses dois polos antagônicos, floresceu visão doutrinária defendida, entre outros, por Piovesan ( *3 vide nota de rodapé ), que fez interessante compatibilização entre a visão minoritária de outrora ( estatuto constitucional dos tratados de DH ) com a redação peculiar do reto especial do parágrafo Terceiro e sua expressão "que forem". Nem o Parágrafo Terceiro seria inconstitucional nem os tratados de DH aprovados pelo rito simples seriam equivalentes á lei ordinária federal.
Nessa linha conciliatória, todos os tratados de DH - incorporados antes ou depois da EC Quarenta e cinco, teriam estatuto constitucional, com base no Artigo Quinto, Parágrafo Segundo. Na acepção de Piovesan, todos seriam materialmente constitucionais. Porém, os tratados aprovados sob a forma do rito do Artigo Quinto, Parágrafo Terceiro, seriam material e formalmente constitucionais.
ter sido aprovado pelo reto especial do Artigo Quinto, Parágrafo Terceiro, e ser consequentemente, material e formalmente constitucional, acarretaria duas consequências adicionais aos tratados de DH:
1) a impossibilidade de denúncia, pois tais tratados seriam material e formalmente constitucionais; e
2) a inclusão no rol de cláusulas pétreas, uma vez que não poderiam mais ser denunciados e excluídos do nosso ordenamento.
Assim, teríamos tão somente a petrificação dos tratados de DH que fossem aprovados de acordo com o rito especial, visto que seriam sujeitos á denúncia ( ato unilateral pelo qual o Estado brasileiro manifesta sua vontade de não se engajar perante determinado tratado ).
O STF, contudo, adotou outro entendimento, consagrando a "teoria do duplo estatuto".
Quadro sinótico
A hierarquia normativa dos tratados de DH e a EC Quarenta e cinco / Dois mil e quatro
Debate doutrinário e posição do STF dobre a hierarquia normativa dos tratados de DH antes da EC quarenta e cinco / Dois mil e quatro
1) Mesmo após a CF - 88, prevalecia, no plano judicial, o posicionamento do STF: o tratado de DH possuía hierarquia equivalente à lei ordinária federal, como todos os demais tratados incorporados.
2) Entretanto, até a edição da EC Quarenta e cinco / Dois mil e quatro houve intenso debate doutrinário sobre a posição hierárquica dos tratados internacionais. As posições de maior repercussão eram as seguintes:
a) natureza supraconstitucional, em face de sua origem internacional;
b) natureza constitucional;
c) natureza equiparada à lei ordinária federal ( STF da época );
d) natureza supralegal ( acima da lei e inferior á CF - 88, voto do Ministro Sepúlveda Pertence ).
Diferentes visões doutrinárias após a EC Quarenta e cinco / Dois mil e quatro, que introduziu o Parágrafo Terceiro no Artigo Quinto da CF - 88
1) Artigo Quinto, Parágrafo terceiro, da CF - 88: "Os tratados e convenções internacionais sobre DH que forem aprovados, em cada Casa do CN, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às ECs".
2) A redação final aprovada do dispositivo gerou ainda diversos debates, com os seguintes posicionamentos:
i) inconstitucionalidade do novo Parágrafo, por ter piorado a hierarquia dos tratados de DH e, assim, violado cláusula pétrea;
ii) somente alguns tratados internacionais seriam equivalentes á EC, a saber, os que fossem aprovados pelo rito especial recém-criado;
iii) o estatuto constitucional se estenderia ao menos aos tratados de DH, aprovados anteriormente, graças aos instituto da recepção formal;
iv) todos os tratados de DH, incorporados antes ou depois da EC Quarenta e cinco, teriam estatuto constitucional, com base no Artigo Quinto, Parágrafo Segundo, pois todos seriam materialmente constitucionais ( Piovesan ); as consequências do rito especial seriam apenas duas:
- a impossibilidade de denúncia, pois tais tratados seriam material e formalmente constitucionais; e
- a inclusão no rol de cláusulas pétreas, uma vez que não poderiam mais ser denunciados e excluídos do nosso ordenamento.
P.S.:
Notas de rodapé:
* O Caso Damião Ximenes, da Corte Internacional de Direitos Humanos é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-corte-edita-mais-de.html .
*2 Silva, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. Segunda edição. São Paulo : Malheiros, Dois mil e seis, Página Cento e setenta e nove.
*3 Piovesan, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Sétima edição. São Paulo : Saraiva, Dois mil e seis, página setenta e sete.
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