No momento em que a Advocacia-Geral da União (AGU) defende no Supremo Tribunal Federal (STF) que civis possam ser julgados por juízes militares quando criticarem as Forças Armadas e corporações similares, a condescendência da Justiça Militar ao julgar militares de alta patente contrasta com o rigor aplicado aos casos de civis. Se nos últimos 18 meses a Justiça Militar julgou 771 civis, em dez anos, apenas um general foi punido, e 20 investigações contra oficiais superiores foram arquivadas.
Reportagem da Folha de São Paulo revela que o único oficial general punido pelo Superior Tribunal Militar (STM) na última década foi o contra-almirante Jorge Nerie Vellame. A sentença, condenando-o a dois meses de detenção, menor pena prevista em lei para o crime de lesão corporal culposa, previu a suspensão da execução da pena e permitiu que o militar recorresse em liberdade.
O jornal identificou 13 inquéritos policiais militares (IPMs) contra generais, brigadeiros ou almirantes. Os processos foram conduzidos internamente por colegas de farda e acabaram arquivados pela Justiça Militar antes mesmo de chegarem ao STM.
Além disso, de oito denúncias contra oficiais-generais apresentadas pelo Ministério Público Militar (MPM) nos últimos dez anos, cinco foram rejeitadas pelo STM. Das três denúncias recebidas e convertidas em ações, apenas uma resultou em condenação. Em nota, STM e MPM negaram existir impunidade e corporativismo nos processos.
O caso de condenação de um oficial-general pode ter sido o único em um período ainda maior, de 30 anos. O jornal ressalva que o STM se recusou a fornecer as informações, que envolvem processos sigilosos. A quantidade de processos arquivados, portanto, é maior do que a verificada em consultas a bancos de dados abertos.
No sistema possível de ser consultado no STM, aparecem apenas 11 ações penais originadas no tribunal, que tem a atribuição de conduzir os processos com suspeitas de crimes militares praticados por oficiais-generais. Essas 11 ações foram abertas num período de 30 anos. Pelos dados abertos disponíveis, aparece apenas uma condenação, a do contra-almirante em 2015.
Na lista dos beneficiados pelo arquivamento de inquéritos está o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, dois ex-auxiliares do desgoverno Bolsonaro e dois integrantes da cúpula do Exército. O IPM que investigou o general Heleno em 2015 nem chegou ao plenário. Foi arquivado por decisão monocrática de um ministro civil do STM, José Barroso Filho.
Os outros quatro generais são Jamil Megid Júnior, ex-secretário nacional de Transportes Terrestres de Bolsonaro, Marco Aurélio Costa Vieira, ex-secretário especial do Esporte de Bolsonaro, Richard Fernandez Nunes, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, e Tomás Miguel Miné Paiva, comandante militar do Sudeste.
O episódio com o ex-ministro da Saúde e general da ativa Eduardo Pazuello, que fez discurso em um palanque ao lado de Bolsonaro em maio, também foi lembrado. Por se tratar de uma infração disciplinar, o caso foi resolvido internamente. Ao final, o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, arquivou o procedimento aberto para investigar a transgressão.
Presidente do STM defendeu Bolsonaro e atacou a oposição
Quando um militar é suspeito de ter cometido um crime, o Código Penal Militar determina que o caso passe por investigação interna (os IPMs), por análise do MPM e por julgamento no Conselho de Justificação (primeira instância) e, finalmente no STM. A Corte Suprema é formada por 15 ministros, a maioria (dez deles), militares da ativa com as patentes mais elevadas.
O atual presidente do STM, general do Exército Luis Carlos Mattos, defendeu Jair Bolsonaro e atacou a oposição em entrevista à revista Veja, em junho. Para ele, o brasileiro precisa “saber votar”, Bolsonaro não é uma ameaça à democracia e quem está contra ele vai “esticar essa corda, como se diz, até que ela arrebente”.
A entrevista foi publicada uma semana após Mattos ser agraciado por Bolsonaro com a promoção ao Grau de Grã-Cruz da Ordem do Mérito da Defesa. A honraria é concedida a autoridades e personalidades militares e civis que prestam relevantes serviços ao Ministério da Defesa e às Forças Armadas.
Bolsonaro, por sua vez, só recebeu a primeira medalha 18 anos depois de ter sido acusado pelo então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, de “indignidade para o oficialato”, em um processo que terminou com sua absolvição pelo STM, em 1988. Já deputado federal, ele recebeu a medalha do mérito militar em 2005.
“É tempo de reconciliação”, disse ele na ocasião. “Essa é a primeira medalha que recebo de minha casa, o Exército. Já tinha uma da Aeronáutica, Arma para a qual fiz minha primeira prova para o serviço militar, mas fui reprovado”, confessou.
Bolsonaro tornou-se figura pública em 1986, quando assinou na revista Veja um artigo em que reclamava dos baixos salários pagos aos militares. Um ano depois, a mesma revista publicou reportagem sobre a confissão de Bolsonaro à repórter Cássia Maria Rodrigues, de que tinha um plano terrorista chamado Beco sem Saída em que ele iria explodir bombas em unidades militares em protesto contra os baixos salários.
Entre 1987 e 1988, Bolsonaro foi julgado duas vezes por diferentes Conselhos de Justificação. Pela autoria do artigo, chegou a ser preso por 15 dias ao “ter ferido a ética, gerando clima de inquietação na organização militar” e “por ter sido indiscreto na abordagem de assuntos de caráter oficial, comprometendo a disciplina”.
Em janeiro de 1988, o Conselho de Justificação do Exército o considerou culpado, por 3 a 0, por ter tido “conduta irregular e praticado atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe”. O Conselho também excluiu Bolsonaro do quadro da Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO), na Zona Norte do Rio de Janeiro, por considerar que as explicações dadas por ele não foram satisfatórias.
Dois laudos grafotécnicos acusavam o capitão de maneira peremptória como sendo o autor do plano terrorista, inclusive do croqui da bomba que seria colocada na adutora do Guandu, no Rio de Janeiro. Baseado nesses dois laudos grafotécnicos, que constam como prova nos autos, ele foi condenado.
O então capitão recorreu ao STM e, em junho de 1988, a Corte o considerou inocente por nove votos a quatro. Seis meses depois, ele passaria para a reserva, candidatando-se a vereador no Rio de Janeiro, onde morava.
“O STM julgou de forma contrária às provas dos autos. A maioria dos ministros foram indicados durante a ditadura militar, portanto esse espírito de corpo que o Bolsonaro pertenceu foi determinante no julgamento. E pelo fato de terem feito vistas grossas de maneira ostensiva à prova técnica dos autos, que são os laudos”, afirmou o jornalista Luiz Maklouf Carvalho, morto em maio de 2020, autor do livro ‘O cadete e o capitão’ (Editora Todavia), sobre o episódio.
“Eu avento que houve um grande combinado para preservá-lo, para não o condenar, desde que ele saísse do Exército, onde aliás ele não iria muito longe porque ele já tinha uma prisão e o currículo não era lá essas coisas”, defendeu o jornalista em entrevistas de lançamento do livro, em 2019. “A hostilidade em relação à imprensa acabou ajudando Bolsonaro no resultado do tribunal”, concluiu.
Com informações de pt.org.br .
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