quinta-feira, 27 de junho de 2024

Direitos Humanos: direito à saúde e o direito ao deslocamento transfronteiriço durante a pandemia do coronavírus

O combate à pandemia do novo coronavírus restringiu o direito dos migrantes ( * vide nota de rodapé ) de entrada no Brasil, atingindo inclusive os solicitantes de refúgio ( *2 vide nota de rodapé ). Foram adotadas progressivamente, medidas de fechamento das fronteiras brasileiras, proibindo-se ingresso de não nacionais ( com poucas exceções ). Cabe um esclarecimento: o termo " fechamento de fronteiras " juridicamente significa restrição temporária e excepcional  da entrada de não nacionais no Brasil. Tal regime não é aplicado a brasileiros, mesmo residentes fora do País, em face da interpretação ampliativa da previsão constitucional de vedação à pena de banimento ( * vide nota de rodapé ) ( Artigo Quinto, Inciso Quarenta e sete, " não haverá penas: ( ... ) d) de banimento " ) .

A pandemia do novo coronavírus, no causou, no Brasil, mais de Setecentos mil mortes ( Três quartos evitáveis ). Foto: Partido dos Trabalhadores.


Inicialmente, a Portaria Conjunta Interministerial número Cento e trinta edois, de Vinte e dois de março de Dois mil e vinte, restringiu, pelo prazo de Trinta dias, a entrada no País, por via terrestre, de não nacionais provenientes do Uruguai, com determinadas exceções. Após, houve uma " escalada " de Portarias proibindo tal ingresso por todas as vias e países ( via terrestre, transporte aquaviário, transporte aéreo ). Com o aumento do número de casos, houve a unificação do marco infralegal do " fechamento de fronteiras " por meio da Portaria número Duzentos e cinquenta e cinco dos Ministros de Estado Chefe da Casa Civil ( CC ) da Presidência da República ( PR ), da Justiça e Segurança Pública ( MJ ), da Infraestrutura ( MI ), e da Saúde ( MS ), de Vinte e dois de maio de Dois mil e vinte, prorrogada por mais Quinze dias, pela Portaria Interministerial número Trezentos e dezenove .


A Portaria número Quatrocentos e dezenove, de Vinte e seis de agosto de Dois mil e vinte, prorrogou, pelo prazo de Trinta dias, a proibição de entrada no País de estrangeiros de qualquer nacionalidade (   *4 vide nota de rodapé ), por rodovias, po9r outros meios terrestres ou por transporte aquaviário ( transporte aéreo foi liberado ) .


O fundamento constitucional de tal drástica restrição á mobilidade internacional humana é a proteção à vida e à saúde em face do alto grau de contágio do vírus, que já atingiu, em Dois de setembro de Dois mil e vinte, cerca de Cento e oitenta países, com quase Vinte e seis milhões de infectados, resultando em mais de Oitocentos e cinquenta mil mortes ( *5 vide nota de rodapé ). A mobilidade ( *6 vide nota de rodapé ) sem restrição pode agravar esta situação, fazendo surgir novas ondas de infecção.


Já o fundamento legal encontra-se no Artigo Terceiro, Inciso Sexto, Alínea a da Lei número Treze mil novecentos e setenta e nove / Dois mil e vinte, pelo qual as autoridades governamentais podem adotar, para enfrentamento da pandemia do coronavírus, a restrição excepcional e temporária da entrada e saída do País ( *7 vide nota de rodapé ),  conforme recomendação técnica e fundamento da Agência nacional de Vigilância Sanitária ( ANVISA ), por rodovias, portos ou aeroportos .


Atualmente, há o seguinte regime de restrição ao ingresso de estrangeiro  no Brasil:


1) limites subjetivos gerais se aplica ao brasileiro em face da proibição constitucional; não se aplica ao imigrante com residência de caráter definitivo, por prazo determinado ou indeterminado, no território brasileiro ou que tenha registro nacional migratório ou a antiga carteira de identidade de estrangeiro ( CIE ), por analogia; não se aplica ao estrangeiro em missão a serviço de organismo internacional; não se aplica ao passageiro em trânsito internacional, desde que não saia da área internacional do aeroporto e que o país de destino admita o seu ingresso; não se aplica ao estrangeiro acreditado junto ao Estado brasileiro; não se aplica a estrangeiro cônjuge, companheiro, filho, pai ou curador de brasileiro; não se aplica ao indivíduo cujo ingresso seja autorizado especificamente pelo Governo brasileiro em vista do interesse público ou por questões humanitárias;

2) limite subjetivo especial, aplicável á entrada pela fronteira com a Venezuela. As hipóteses de permissão de ingresso do não nacional por motivo de residência definitiva, ou por ser portador de registro nacional migratório ( RNM ), bem como ser cônjuge, companheiro, filho, pai ou curador de brasileiro ) não se aplicam aos imigrante provenientes da Venezuela. Tal discriminação ( *8 vide nota de rodapé ) foi adotada sem fundamentação, sendo de duvidosa constitucionalidade ( ofensa à igualdade - * 9 vide nota de rodapé );

3) limites objetivos: todos os meios de transporte foram alcançados inicialmente pelos fechamento de fronteiras. Contudo, não foram afetadas:

a) a execução de ações humanitárias transfronteiriças previamente autorizadas pelas autoridades locais;

b) o tráfego de residentes fronteiriços em " cidades-gêmeas " ( conurbadas ), mediante a apresentação de documento de residente fronteiriço ( DRF ) ou outro documento comprobatório, desde que seja garantida a reciprocidade no tratamento ao brasileiro pelo país vizinho;

c) o livre tráfego do transporte rodoviário de cargas;

d) a continuidade do transporte e do desembarque de cargas, sem que haja desembarque  de tripulantes, salvo para assistência médica ou para conexão de retorno aéreo ao país de origem relacionada a questões operacionais ou término de contrato de trabalho;

e) o transporte fluvial e o transporte aéreo de cargas;

f) pouso técnico para reabastecer, quando não houver necessidade de desembarque de passageiros das nacionalidades com restrição;

g) o ingresso e a permanência de tripulante marítimo estrangeiro portador de carteira internacional de marítimo ( CIM ) emitida nos termos de Convenção da Organização Internacional do Trabalho ( OIT ), cujo ingresso seja requerido, pelo agente marítimo ao Departamento da Polícia Federal ( DPF ), para exercício de funções específicas a bordo de embarcação ou plataforma em operação em águas jurisdicionais. A Portaria Interministerial número Um, de Vinte e nove de julho de Dois mil e vinte, liberou a entrada de estrangeiros pela via aérea, excluindo-se determinados aeroportos. Chama a atenção a abertura da fronteira somente para os que chegam pela via aérea, podendo ser questionada essa discriminação ao transporte aquaviário ou mesmo terrestre. A Portaria Interministerial número Quatrocentos e dezenove / Dois mil e vinte manteve a exclusão da via aérea do regime de fechamento de fronteiras ;

4) sanções: as Portarias estabeleceram também uma lista de sanções de modalidade internacional, consolidadas na portaria número Duzentos e cinquenta e cinco e mantidas na Portaria número Quatrocentos e dezenove, além da responsabilização civil, administrativa e penal:

a) repatriação ou deportação imediata; e

b) inabilitação de pedido de refúgio.


Assim, o fechamento de fronteira impactou negativamente  tanto a migração em geral regulada pela Lei de Migração ( Lei número Treze mil quatrocentos e quarenta e cinco / Dois mil e dezessete ) quanto o direito ao acolhimento regrado pelo direito internacional do refúgio e pelas normas nacionais, em especial a Lei número Nove mil quatrocentos e setenta e quatro ( Estatuto do Refugiado ) .


Todavia, um dos pilares tanto da Convenção de Mil novecentos e cinquenta e um sobre o Estatuto dos Refugiados quanto a Lei número Nove mil quatrocentos e setenta e quatro / Mil novecentos e noventa e sete é o princípio da proibição da devolução do refugiado ( ou rechaço ) ou non refoulement, que consiste na vedação da devolução do refugiado ou solicitante de refúgio para o Estado do qual tenha o fundado temor de ser alvo de perseguição odiosa ( *10 vide nota de rodapé ). Esse princípio encontra-se inserido no Artigo Trinta e três da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados ( CRER ) de Mil novecentos e cinquenta e um e também em diversos outros diplomas internacionais, já ratificados pelo Brasil. Por exemplo, o Artigo Vinte e dois ponto Oito da Convenção Americana de Direitos Humanos ( CADH ) ( *11 vide nota de rodapé ) dispõe que " em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ( *12 vide nota de rodapé ) ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação  em virtude de sua raça ( *13 vide nota de rodapé ), nacionalidade, religião ( *14 vide nota de rodapé ), condição social ( *15 vide nota de rodapé )ou de suas opiniões políticas ( *16 vide nota de rodapé ) ".


Além disso, o Artigo Sétimo da Lei número Nove mil quatrocentos e setenta e quatro / Mil novecentos e noventa e sete prevê que o estrangeiro, ao chegar ao território nacional, poderá expressar sua vontade de solicitar declaração de sua situação jurídica refugiado a qualquer autoridade migratória e em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupos social ou opinião política.


A jurisprudência internacional de Direitos Humanos ( DH ) caminha no mesmo sentido. A Corte Internacional de Direitos Humanos ( Corte IDH ) ( *17 vide nota de rodapé ) explicitou que, em qualquer hipótese 9 mesmo no asilo diplomático - *18 vide nota de rodapé ), o Estado de acolhida está obrigado a não devolver o solicitante a um território no qual este possa sofrer o risco de perseguição odiosa. Assim, o princípio da proibição do rechaço ( proibição do non refoulement " ) é exigível por qualquer estrangeiro. Esse dever de proteção ao solicitante de asilo ou refúgio, para a Corte IDH, é obrigação erga omnes e vincula internacionalmente os Estados ( *19 vide nota de rodapé ). Ou seja, há a proibição de os Estados transferirem ( qualquer que seja a nomenclatura - rechaço, expulsão, deportação etc. ) um indivíduo a um outro Estado  quando sua vida, segurança, ou liberdade estejam em risco de violação por causa de


1) perseguição ou ameaça de perseguição odiosa,

2) violência generalizada ou

3) violações massivas aos DH, entre outros, assim como para um Estado onde

4) corra o risco de ser submetida a tortura ( *20 vide nota de rodapé ) ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes ( *21 vide nota de rodapé ) ( *22 vide nota de rodapé )


Consequentemente, o fechamento de fronteiras e o consequente estabelecimento da sanção inovadora ( não prevista em lei ) de " inabilitação do pedido de refúgio " para aqueles que ingressarem no Brasil no período proibido abalam fortemente o direito ao acolhimento previstos nos tratados e na Lei número Nove mil quatrocentos e setenta e quatro / Mil novecentos e noventa e sete, ofendendo as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil .


Por sua vez, a Lei de Migração ( Lei número Treze mil quatrocentos e quarenta e cinco / Dois mil e dezessete ) estabelece que a política migratória do Brasil é regida pelo princípio da acolhida humanitária ( Artigo Terceiro, Inciso Sexto ), estando em linha com a promoção de direitos da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e dos tratados internacionais ( *23 vide nota de rodapé ) .


Claro que não se trata de desconsiderar o impacto da pandemia e os riscos de contágio. por isso, houve a proposta de proporcional ( *24 vide nota de rodapé ) restrição da mobilidade internacional para melhor proteger o direito á vida, à saúde, sem desconsiderar o direito ao acolhimento aos solicitantes de refúgio e a aceitação hmanitária de migrantes .


A solução que foi sugerida foi aquela que é aplicável aos que têm o direito de ingresso no território nacional, como, por exemplo, os brasileiros ou estrangeiros com residência permanente: o controle sanitário nas fronteiras ( testagem ) e posterior isolamento pelo prazo de Quatorze dias. Já aqueles que necessitam de atendimento médico, devem ser tratados como todos os solicitantes de refúgio ou de acolhida humanitária que, após o ingresso, contraem uma doença: serão atendidos pelo Sistema Único de Saúde ( SUS ) nacional ( *25 vide nota de rodapé ).      


P.S.:


Notas de rodapé:


* Os direitos do migrante, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/06/direitos-humanos-os-direitos-do.html .


*2  Os direitos dos refugiados, no contexto dos Direitos Humanos, são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/05/direitos-humanos-declaracao-protege.html .


*3 A vedação à pena de banimento, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/05/direitos-humanos-o-direito-vida-versus.html .


*4 O direito à nacionalidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/05/direitos-humanos-o-direito.html .


*5 Ver o número de casos por país tabulado pela organização Mundial de Saúde em < https://covid19.who.int/ > . Acesso em Três de setembro de Dois mil e vinte .


*6 O direito ao deslocamento, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/04/direitos-humanos-o-direito-de-locomocao_25.html .


*7 O direito ao deslocamento transfronteiriço, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/06/direitos-humanos-o-direito-ao.html .


*8 A vedação à discriminação, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-discriminacao-e.html .


*9 O direito à igualdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/05/direitos-humanos-o-direito-igualdade-e_16.html .


*10 Ramos, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. sétima edição. São Paulo: Saraiva, Dois mil e dezenove, Páginas Noventa e cinco e seguintes .


*11 A Convenção Americana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-americana.html .


*12 O direito à vida, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/04/direitos-humanos-doutrinas-e.html .


*13 A vedação ao racismo, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/10/direitos-humanos-o-direito-igualdade-e_26.html .


*14 O direito à liberdade religiosa, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/04/direitos-humanos-doutrinas-e_31.html .


*15 O direito à assistência social, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/04/direitos-humanos-o-direito-assistencia.html .


*16 O direito à liberdade de expressão de opiniões políticas, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/06/direitos-humanos-o-direito-liberdade-de_30.html .


*17 A Corte Interamericana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .


*18 O direito ao asilo diplomático, no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-direito-ao-asilo.html .


*19 Corte Internacional de Direitos Humanos. Opinião consultiva número Vinte e cinco, de Dois mil e dezoito, sobre o instituto do asilo e seu reconhecimento como um dos Direitos Humanos .


*20 A vedação à tortura, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-previne-e.html .


*21 A vedação aos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-sistema-e-mecanismo-de.html .


*22 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião consultiva número Vinte e um, de Dois mil e quatorze, sobre os direitos e garantias das crianças migrantes .


*23 Os tratados internacionais de Direitos Humanos, são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/02/direitos-humanos-hierarquia-normativa.html .


*24 O princípio da proporcionalidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-principio-da_31.html .


*25 O direito à saúde, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2024/04/direitos-humanos-o-direito-saude.html .    

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