quarta-feira, 14 de junho de 2023

Direitos Humanos: o direito à integridade física e moral e separação técnica da tortura de outros atos desumanos

A Convenção da Organização das Nações Unidas Contra a Tortura e Tratamento Desumano  e Degradante ( CONUCTTDD ) ( * vide nota de rodapé ) criou uma divisão entre "tortura" e outros atos que constituem tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, mas que não são considerados "tortura", tal como definida no Artigo Primeiro da CONUCTTDD. De acordo com o Artigo Dezesseis da CONUCTTDD, os Estados se comprometem a coibir e punir tais atos, quando forem cometidos por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.


A inspiração da reação do Artigo Dezesseis foi fruto de tratamento desumano a prisioneiros realizado em plena Europa democrática, no seio da luta antiterrorista britânica. Em Mil novecentos e setenta e um, o Reino Unido deflagrou a "Operação Demétrius" para reprimir ativistas suspeitos de integrar ou apoiar o Irish Revolutionary Army - IRA ( Exército Republicano Irlandês ) na Irlanda do Norte e deteve quase trezentas e cinquenta pessoas. Várias delas foram submetidas às chamadas "Cinco Técnicas" ( five techniques ) de interrogatório, que consistiam em:


1) obrigação de ficar em pé por horas e horas,

2) usar capuz cobrindo toda a cabeça ( retratado em foto célebre de prisioneiro iraniano na Prisão de Abu Ghraib, Iraque, feita por soldados norte-americanos ).

3) sujeição a ruído excessivo,

4) privação de sono e

5) privação de comida e água por prazo indeterminado.


Tudo voltado para desorientar, enfraquecer, gerar privação de sentidos, intimidar, obtendo a total sujeição do prisioneiro para seus propósitos.


Essas técnicas são comumente conhecidas como "tortura invisível" e foram usadas também por diversas ditaduras no mundo. A Irlanda, então, processou o Reino Unido perante a Corte Europeia de Direitos Humanos ( DH ) ( Corte EDH ), na primeira demanda interestatal de todo o sistema europeu de DH ( *2 vide nota de rodapé ). Porém, a Corte EDH, em julgamento de Dezoito de janeiro de Mil novecentos e setenta e oito, considerou que tais técnicas não eram tortura, mas sim tratamento cruel e desumano, proibido no Artigo terceiro na Convenção Europeia de DH ( Convenção EDH ).


Por isso, em Mil novecentos e oitenta e quatro, a CONUCTTDD quis evitar que os Estados utilizassem essas técnicas ( e outras ) sob a alegação de que não se trataria de "tortura". Pelo Artigo Dezesseis da CONUCTTDD, o tratamento cruel, degradante e desumano também deve ser coibido e punido.


Em Mil novecentos e noventa e nove, mostrando a evolução do sistema europeu de DH ( Sistema EDH ), a Corte EDH modificou sua posição citando expressamente a CONUCTTDD de Mil novecentos e oitenta e quatro, no Caso Selmouni versus França e considerou que atos como submeter o prisioneiro a "corredor polonês" ( fazê-lo correr entre duas fileiras de policiais e ser espancado ), assediá-lo verbalmente pela sua origem árabe, ser alvo de urina de um policial, obrigá-lo a simular sexo oral com um policial, ameaçá-lo com uma seringa, entre diversas outras condutas descritas no caso, foram além do tratamento degradante e consistiram em tortura. Para a Corte EDH, a tortura pode ser sintetizada em atos, com características cruéis e severas, de violência física e mental, considerados em seu conjunto, que causam dor e sofrimento agudo. Com isso, a Corte EDH modificou seu posicionamento, uma vez que adota a interpretação evolutiva da Convenção EDH 9 tida como um "instrumento vivo" ), sustentando que atos que hoje são caracterizados como degradantes ou desumanos podem, no futuro, ser caracterizados como tortura.   


P.S.:


Notas de rodapé:


* A Convenção da ONU conta a tortura e tratamento desumano é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/05/direitos-humanos-congresso-adota-regras.html .


*2 Sobre o sistema europeu de Direitos Humanos, ver Carvalho Ramos, André de. Processo internacional de direitos humanos. Sexta edição. São Paulo: Saraiva, Dois mil e dezenove. 

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