quarta-feira, 28 de junho de 2023

Direitos Humanos: O direito à liberdade de expressão versus discursos de ódio

O discurso de ódio ( hate speech ) consiste na manifestação de valores discriminatórios, que ferem a igualdade, ou de incitamento á discriminação, violência ou a outros atos de violação de direitos de outrem. Essa terminologia acadêmica é de extrema atualidade no Brasil e em diversos países no mundo, em face do discurso neonazista, antissemita, islamofóbico, entre outras manifestações de pensamento odiosas.

Então Deputado Federal Messias Bolsonaro tem processo arquivado em 2018. Acusação: discurso de ódio.

O Supremo Tribunal Federal debateu essa temática no chamado "Caso Ellwanger", no qual foram discutidos os limites da liberdade de expressão ( * vide nota de rodapé ) e seu alcance no caso da publicação de obras antissemitas ( *2 vide nota de rodapé ). De acordo com a maioria dos votos ( vencidos os Ministros marco Aurélio e Carlos Britto, que valorizaram a liberdade de expressão ), não há garantia constitucional absoluta. Ou seja, as liberdades não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites explícitos e implícitos ( fruto da proporcionalidade e ponderação com outros direitos ) previstos na Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e nos tratados de Direitos Humanos ( DH ). A liberdade de expressão não pode ser invocada para abrigar "exteriorizações revestidas de ilicitude penal" ( passagem do voto do Ministro Celso de Mello ). Em vários votos, como, por exemplo, o do Ministro Gilmar Mendes, foram feitas referências à colisão ( *3 vide nota de rodapé ) entre a liberdade de expressão e o direito à igualdade ( *4 vide nota de rodapé ), bem como à dignidade humana ( *5 vide nota de rodapé ). No caso, preponderou o direito à igualdade e a dignidade humana, admitindo-se  que não era caso de se privilegiar a liberdade de expressão de ideias racistas ( *6 vide nota de rodapé ) antissemitas.


Consequentemente, decidiu o STF que o "preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o 'direito à incitação ao racismo', dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica" ( Habeas Corpus número Oitenta e dois mil quatrocentos e vinte e quatro, relator para o Acórdão Ministro Presidente Maurício Corrêa, julgado em Dezessete de setembro de Dois mil e três, Plenário, Diário da Justiça de Dezenove de março de Dois mil e quatro ).


Fachin, em voto no STF, aponta que há três etapas necessárias para que se caracterize o chamado "discurso discriminatório criminoso":


1) Primeira etapa: de caráter cognitivo, na qual se afirma a desigualdade entre grupos ou indivíduos;

2) Segunda etapa: de caráter valorativo, na qual, com base nas duas etapas anteriores, o agente deduz ser legítima uma consequência odiosa, que pode ser a dominação, a exploração, a escravização, a eliminação ou o amesquinhamento de quaisquer DH daquele tido somo diferente e inferior.


Para Fachin, não há repressão penal caso inexista essa terceira etapa ( Recurso de Habeas Corpus número Cento e trinta e quatro mil seiscentos e oitenta e dois, Relator Ministro Edson Fachin, julgado em Vinte e nove de novembro de Dois mil e dezesseis, Primeira Turma, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e nove de agosto de Dois mil e dezessete ).


Nesse sentido , cabe lembrar o alerta de Daniel Sarmento, que, comparando a visão norte-americana de liberdade de expressão com a brasileira, ponderou que a concepção norte-americana é uma concepção ultralibertária, sendo um verdadeiro fim em si mesma ( não admitindo restrições ), e não um instrumento ( *7 vide nota de rodapé ).


Já no Brasil, adotou-se a visão da "liberdade de expressão responsável", que possui limtes explícitos e implícitos. São limites explícitos à liberdade de expressão:


1) a vedação ao anonimato - Artigo quinto, Inciso Quarto;

2) direito de resposta - Artigo Quinto, Inciso Quinto;

3) restrições à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e terapias - Artigo Duzentos e vinte, Parágrafo Quarto,

4) classificação indicativa - Artigo Vinte e um, Inciso Dezesseis;

5) indenização ao dano material, moral o u à imagem - Artigo Quinto, Inciso .


Por sua vez, são limites implícitos aqueles gerados pela ponderação com os demais direitos, como, por exemplo, o direito à privacidade ( Artigo Quinto, Inciso Décimo ) ou no caso da divulgação de ideias racistas, o direito à igualdade ( artigo quinto, Caput ).


Esse limite à liberdade de expressão, foi testado do "Caso Bolsonaro", no qual o ex-presidente da República, Jair Messias Bolsonaro ( então deputado federal ), foi processado criminalmente pela Procuradoria-geral da República ( PGR ) em virtude de ter, fora do recinto do Congresso Nacional ( CN ), utilizado expressões como "arroba" e "procriador" ao se referir aos membros de comunidade quilombola do interior do Estado de São Paulo ( SP ) ( *8 vide nota de rodapé ). pra o Ministro Barroso ( acompanhado pela Ministra Rosa Weber ), o uso de expressões comumente associadas a animais para se referir a indivíduos afrodescendentes no Brasil representou o cometimento do crime do Artigo Vinte da Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove ( *9 vide nota de rodapé ) que trata de conduta discriminatória por raça ou etnia. Na linha do "Caso Ellwanger", a prática de racismo contra os quilombolas do então Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro teria constituído:


1) hate speech e

2) não poderia ser vista como protegida pela liberdade de expressão, bem como 

3) não pode ser abarcada pela imunidade material dos congressistas ( freedom form speech, Artigo Cinquenta e três da CF - 88 ).


Neste último ponto, cabe salientar que a imunidade material dos parlamentares não é absoluta, pois há  a tensão entre a liberdade de expressão e o abuso da palavra ( que pode levar à responsabilização cível e criminal ). Para a jurisprudência do STF, a imunidade material só se verifica se as palavras ofensivas guardarem conexão com o exercício do mandato parlamentar, o que não seria o caso ( Inquérito número Dois mil cento e trinta e quatro, relator Ministro Joaquim Barbosa, julgado em vinte e três de março de Dois mil e seis, Publicado no Dipario da Justiça de Dois de fevereiro de Dois mil e sete ). Para a Ministra Rosa Weber, o pronunciamento do denunciado não guardou vínculo com sua atividade parlamentar. Contudo, a maioria de votos entendeu que se tratou de uso regular da liberdade de expressão no exercício da atividade parlamentar. Para o Ministro Alexandre de Moraes, apesar da "grosseria, a vulgaridade e, no tocante aos quilombolas, principalmente, total desconhecimento da realidade nas declarações que foram feitas", a conduta do então deputado federal Jair Messias Bolsonaro não extrapolou os limites da liberdade de expressão, não tendo se constituído em um discurso de ódio, de incitação ao racismo, uma vez que não defendeu ou incitou tratamento desumano, degradante ou cruel ( *10 vide nota de rodapé ) aos afrodescendentes, nem fez apologia do que foi feito no período abominável da escravidão ( *11 vide nota de rodapé ) no Brasil. Também não teria a conduta buscando ampliar ou propagar o ódio racial. Por não caracterizar a incitação ao ódio e à violência racial, não seria discurso de ódio e sim "crítica a políticas de governo, com as quais o denunciado não concorda" ( trecho do voto do Ministro Alexandre de Moraes ). Assim, a denúncia foi rejeitada por Três votos a Dois ( STF, Inquérito número Quatro mil seiscentos e noventa e quatro, Relator Mnistro Marco Aurélio, julgado em Onze de setembro de Dois mil e dezoito, Diário da Justiça eletrônico de Primeiro de agosto de Dois mil e dezenove ).    


P.S.:


Notas de rodapé:


* O direito à liberdade de expressão, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/06/direitos-humanos-o-direito-liberdade-de.html .


*2 Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus número Oitenta e dois mil quatrocentos e vinte e quatro, relator para o Acórdão Ministro Presidente Maurício Corrêa, julgado em Dezessete de setembro de Dois mil e três, Plenário, Diário da Justiça de Dezenove de março de Dois mil e quatro.


*3 A colisão ou o conflito de direitos, no contexto dos Direitos Humanos, são melhora detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh.html .


*4 O direito à igualdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/05/direitos-humanos-o-direito-igualdade-e_16.html .


*5 O direito à dignidade humana, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-dignidade-humana-e.html .


*6 A vedação ao racismo, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-racismo-e-formas.html .


*7 Sarmento, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional, em especial "A liberdade de expressão e o problema do hate speech". Rio de Janeiro: Lumen Juris, Dois mil e dez.


*8 A frase transcrita nos autos e apontada com prática de discriminação foi: "eu fui em um quilombo em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem para procriador eles servem mais" ( STF, Inquérito número Quatro mil novecentos e sessenta e quatro / Distrito Federal, Relator Ministro Marco Aurélio, ju8lgado em Onze de setembro de Dois mil e dezoito, publicado no Diário da Justiça eletrônico de Primeiro de agosto de Dois mil e dezenove ).


*9 Também denominada "Lei Caó". Artigo Vinte. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.


*10 A vedação ao tratamento desumano, degradante ou cruel, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/06/direitos-humanos-o-direito-integridade.html .


*11 A vedação ao trabalho escravo, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/04/direitos-humanos-comissao-acompanha.html .   

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