terça-feira, 3 de março de 2020

Fusões e aquisições: a satisfação dos acionistas e de outros stakeholders

A onda de aquisições hostis é o resultado de uma profunda mudança estrutural da economia americana, mas, por si só, já é uma séria desordem. Existe muita discussão sobre se as aquisições hostis são boas ou ruins para os acionistas. Contudo, não há a menor dúvida de que são extremamente prejudiciais para a economia. Elas forçam a administração a trabalhar no curto prazo. Em número cada vez maior, as empresas, de grande, médio ou pequeno porte, deixaram de ser administradas por resultados e passaram a se precaver contra uma aquisição hostil. Isto significa que, cada vez mais, as empresas são forçadas a se concentrar nos resultados dos próximos três meses. Elas estão sendo administradas de modo a encorajar os investidores institucionais, de quem todas as empresas de capital aberto dependem hoje para obtenção de capital, a manter a posse das ações da empresa, em vez de se desfazer delas assim que aparecer uma proposta de aquisição hostil.

Pior: as empresas estão sendo forçadas a fazer coisas idiotas para se prevenir de uma proposta de aquisição hostil. Por exemplo, está se tornando um perigo, para qualquer empresa, ter liquidez. Esta é uma condição de alta atratividade para um raider ( * vide nota de rodapé ), que espera usar este dinheiro para se reembolsar e pagar as dívidas em que incorreu para fazer a proposta de aquisição. E, assim, as empresas que se encontram em posição líquida - não importa o quanto possam vir a precisar de dinheiro dali a apenas alguns meses - rapidamente dilapidam o caixa - comprando, por exemplo, algum empreendimento inteiramente estranho ao seu próprio negócio e cuja principal utilidade consiste em absorver muito dinheiro. Pior ainda: as empresas estão, cada vez mais, cortando as despesas para o futuro, como pesquisa e desenvolvimento. Uma das consequências mais nefastas para o futuro dos Estados Unidos da América ( EUA ) é a rapidez com que as empresas japonesas estão assumindo o controle de mercados de países de rápida industrialização, como Brasil e Índia, por exemplo. O motivo pelo qual elas fazem isto é porque podem investir no sistema de distribuição destes países, prevendo o mercado futuro. As administrações das empresas americanas estão perfeitamente conscientes disto, mas, quando indagadas por que não fazem o mesmo, tendem a responder: "Não podemos separar dinheiro para investir no futuro. Temos de apresentar bons resultados, com lucros já no mês que vem ou no próximo trimestre.".

O medo do raider ( * vide nota de rodapé ), indubitavelmente, a maior causa da crescente tendência das empresas americanas de administrar para o curto prazo e negligenciar o futuro. Este temor desmoraliza e paralisa. O impacto no moral dos administradores e demais profissionais da empresa não pode ser subestimado. E pior ainda: depois de uma aquisição hostil bem-sucedida, o moral da empresa é destruído, geralmente para sempre. As pessoas que têm condição de abandonar a empresa o fazem. As outras, que continuam, trabalham o mínimo possível. Um comentário frequente é: "Por que devo trabalhar duro se amanhã irão puxar o tapete debaixo de meus pés?" Acrescente-se a isto o fato de que, para se reembolsar, a primeira coisa que os raiders ( * vide nota de rodapé ) geralmente fazem é vender os negócios mais promissores da empresa. Desta forma, o impacto da aquisição no moral dos empregados é uma catástrofe total.

O somatório de tudo isto é que o histórico de todas as empresas que passaram por fusões - principalmente com conglomerados ou negócios com os quais tinham pouco em comum, como, por exemplo, um típico conglomerado financeiro - é sofrível. Somente três em cada dez empresas que passaram por este processo apresentam resultados tão bons dois anos após a fusão quanto os de antes. Mas o histórico das empresas que foram adquiridas de forma hostil é consistentemente desanimador.

Está claro que uma aquisição hostil não pode ser justificada como caminho para uma alocação mais eficiente de recursos. A maioria não tem objetivo, a não ser enriquecer o raider, que, para atingir este propósito, oferece aos acionistas mais dinheiro por suas ações do que conseguiram obter no mercado, isto é, ele os suborna. E, para conseguir pagar suborno, ele endivida pesadamente a empresa que está sendo adquirida, o que, por si só, dificulta enormemente seu potencial de desempenho econômico. O fato de que, quase sem exceção, o resultado e uma aquisição hostil é também a desmoralização e a grave obstrução da organização humana reprova a argumentação de que uma aquisição hostil leva a uma alocação mais eficiente de recursos. Na verdade, tudo o que prova é que recursos no moderno empreendimento de negócios não são basicamente tijolos e cimento - ou mesmo petróleo debaixo da terra - , mas a organização humana.

Existem, efetivamente, casos em que uma organização humana se torna mais produtiva ao ser desmembrada de sue antigo empreendimento e operada de forma autônoma. Na verdade, muitas das grandes organizações de hoje, especialmente os conglomerados, aumentariam em muito sua produtividade se fossem divididas em unidades de menor porte, ou se formassem negócios separados. Contudo, não é bem isto que a aquisição hostil consegue. Pelo contrário, as partes mais valiosas do negócio adquirido de forma hostil são, invariavelmente, colocadas à venda, de modo a arrecadar dinheiro para a liquidação de parte das dívidas. E isto prejudica tanto a produtividade da empresa quanto a de seus ativos restantes.

Existem sérias questões sobre a alocação de recursos na economia americana, mas a aquisição hostil é claramente a ferramenta errada para melhorar isto. Ela provoca sérios danos á verdadeira fonte de produção - a organização humana, seu espírito, dedicação, moral, confiança na administração e identificação com o empreendimento que emprega as pessoas.

Ainda que uma aquisição hostil pareça boa para os acionistas - e elas são boas apenas por um curtíssimo tempo - , não são boas para a economia. Na verdade, são tão ruins que haverá uma pressão para acabar com esta prática, por bem ou por mal.

Uma das maneiras de fazer isto poderia ser emulando os britânicos e criando um comitê de aquisições ( ou como existe no Brasil um Conselho Administrativo de Defesa Econômica  - CADE ) , com poder para suspender propostas de aquisições hostis, consideradas contrárias aos melhores interesses de longo prazo dos empreendimentos e da economia. Se um comitê ou conselho deste tipo poderia ser montado nos EUA - ou se ele tornaria apenas mais uma agência de governo a atrapalhar - , esta é uma questão a ser debatida. Do modo como os britânicos estão fazendo, o comitê entraria em rota de colisão com as leis antitruste americanas.

É, portanto, mais provável que seja colocado um fim à aquisição hostil - ou, pelo menos, sejam colocados sérios obstáculos em seu caminho - por meio da revogação do conceito de "uma ação, um voto", com sua substituição por ações que, embora tenham participação equânime nos lucros ( e nos processos de liquidação ), tenham poder de voto diferenciado, pelo menos enquanto a empresa apresentar resultados financeiros adequados. A General Motors Company ( GMC ) já começou a trilhar este caminho e várias outras empresas menores estão fazendo o mesmo.Isto não seria uma mudança radical. Os britânicos, por muito tempo, tinham a private limited company ( companhia limitada privada ), em que a administração tinha poder de voto, desde que apresentasse resultados específicos. Da mesma forma, por mais de cem anos, os alemães tinham a Kommanditgesellschaft auf Aktien, em que a administração tem a maioria do poder votante, embora possua uma pequena minoria do total de ações - mais uma vez, enquanto houver um desempenho adequado adequado e a empresa apresentar resultados. Em outras palavras, uma mudança para um sistema em que diferentes classes de ações possuam diferentes poderes de voto - com ações Classe A, por exemplo, tendo cem vezes poder de voto de ações classe B - precisaria apenas de poucas e relativamente simples salvaguardas para se tornar funcional. Primeiro, conferindo às ações Classe A poder superior de voto, por uma diretoria verdadeiramente independente e forte, e não pela administração; uma diretoria em quem membros de fora da empresa tivessem uma clara maioria ( o que, por acaso, é o que os alemães exigem ). Segundo, tornando o poder adicional de voto das ações Classe A condicionando ao desempenho adequado da empresa, que deve produzir resultados específicos. Portanto, um sistema composto por dois tipos de ações controlaria as tentativas de aquisição hostil e ainda daria proteção contra o mau desempenho administrativo, ou até mesmo contra a mediocridade administrativa.

Entretanto, talvez a onda de aquisições venha a ter um fim com um gemido, e não com um grito, ao perder suporte financeiro. Não seria preciso muito para fazer isto acontecer. A falta de pagamento de um grande empréstimo para o financiamento de uma aquisição hostil, um escândalo de um bilhão de dólares, similar ao colapso de Penn Square, em Oklahoma, que derrubou o poderoso Continental Ilinois Bank - e não haveria mais o dinheiro disponível para financiar este tipo de operação. e, na longa história da finanças, todos os esquemas que induziram financiadores a adiantar dinheiro disponível para financiar este ripo de operação. E, na longa história das finanças, todos os esquemas que induziram financiadores a adiantar dinheiro para propósitos economicamente não produtivos, mediante a promessa de um retorno substancialmente acima das taxas atuais de mercado, chegaram, mais cedo ou mais tarde, a um final triste - em geral, mais cedo.

Contudo, ainda que fosse controlada a aquisição hostil, ainda haveria os problemas estruturais subjacentes dos quais a aquisição hostil é apenas um sintoma. Isto levanta claramente algumas questões básicas sobre o papel, as funções e a governança dos fundos de pensão, sobre a legitimidade da administração e, finalmente, sobre o propósito do empreendimento de negócio, especialmente dos de grande porte. Será que os acionistas seriam o único grupo ( stakeholders - *2 vide nota de rodapé ) a quem todos os outros interesses, inclusive aqueles do próprio empreendimento como negócio atual, devem estar totalmente subordinados? Outras informações podem ser obtidas no livro As fronteiras da administração, de autoria de Peter F. Drucker.

P.S.:

Notas de rodapé:

A expressão raider do mercado de ações é melhor introduzida em https://administradores.com.br/artigos/fus%C3%B5es-e-aquisi%C3%A7%C3%B5es-raiders-eles-n%C3%A3o-d%C3%A3o-f%C3%A9rias-para-os-seus-p%C3%A9s .

*2 A expressão stakeholders pode ser interpretada como partes interessadas, apesar de não ser uma tradução literal da língua inglesa para a língua portuguesa.

Mais em:

https://administradores.com.br/artigos/fus%C3%B5es-e-aquisi%C3%A7%C3%B5es-a-satisfa%C3%A7%C3%A3o-dos-acionistas-e-de-outros-stakeholders .

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