A crescente cooperação entre os Estados no combate a crimes gerou dúvida sobre a produção de prova no exterior. Na existência de tratado de cooperação jurídica internacional, pode a autoridade pública obter determinado documento ou informação sem que se utilize a via própria prevista no tratado ( em geral, por intermédio da chamada autoridade central ) ?
Há neste caso a colisão ( * vide nota de rodapé ) entre o direito à segurança jurídica ( *2 vide nota de rodapé ) que as formalidades previstas na produção probatória protegem e o direito de acesso à justiça ( *3 vide nota de rodapé ) em tempo célere. Deve prevalecer o direito de acesso á justiça, uma vez que a essência da cooperação jurídica internacional é justamente assegurar o acesso à justiça. Seria contraditório entender que o tratado teria estabelecido uma única via de acesso a informações ( teoria da una via electa ), dificultando a transmissão rápida de dados, quando sua celebração é feita em homenagem à concretização do direito a uma tutela jurisdicional efetiva célere ( *4 vide nota de rodapé ) .
Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal ( STF ): " Ressalte - se que uma das finalidades fundamentais dos tratados de cooperação jurídica em matéria penal é justamente ' a desburocratização da colheita da prova ' ( Mandado de Segurança número Trinta e três mil setecentos e cinquenta e um, Relator Ministro Edson Fachin, Primeira Turma, Diário da Justiça eletrônico de Trinta e um de março de Dois mil e dezesseis ), de modo que, cumpridas as exigências legais do direito interno brasileiro, eventual inobservância a formalidades previstas no acordo internacional não acarretaria a ilicitude da prova " ( Inquérito número três mil novecentos e noventa, Relator Ministro Edson Fachin, julgado em quatorze de março de Dois mil e dezessete, Segunda Turma, Diário da Justiça eletrônico de Dois de junho de Dois mil e dezessete ) .
Em Dois mil e dezessete, foi interposta a Ação Declaratória de Constitucionalidade ( ADC ) número Cinquenta e um, que busca a declaração de constitucionalidade do Decreto número Três mil oitocentos e dez / Dois mil e um, que promulgou internacionalmente o " Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América ( EUA ) " ( ADC número Cinquenta e um, relator Ministro Gilmar Mendes, em trâmite em setembro de Dois mil e vinte ) .
Não há, na verdade, controvérsia sobre a constitucionalidade do acordo ( o que pode, em uma visão mais rígida, levar à falta de conhecimento da ação ), mas o Autor ( Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação - ASSESPRO Nacional, com gigantes como a Facebook e Yahoo! Brasil servindo como amici curiae - amigo da corte - ) sustenta que há decisões judiciais nacionais que exigem das subsidiárias brasileiras de conglomerados da internet que informem dados ( coletados no Brasil ) que, por decisão empresarial, ficam armazenados nos EUA ( com potencial risco de violação da lei americana ) .
A discussão envolve as seguintes dúvidas:
1) o tratado incorporado ( equivalente à lei ordinária ) criou uma única via ou somente uma via entre as possíveis ? ;
2) o não uso do tratado - se obrigatório - viola o devido processo legal ( *5 vide nota de rodapé ) e resulta em prova ilícita ( *6 vide nota de rodapé ) ?
3) como os EUA podem alegar óbice interno para não transferir o dado solicitado pelo Brasil - Artigo Terceiro do tratado - , há denegação de justiça ( por exemplo, vítima caluniada por fake news ) ? ;
4) os titulares dos dados armazenados nos EUA devem ter o seu direito à privacidade respeitado de acordo com a lei americana ou de acordo com a Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e os tratados celebrados pelo Brasil, caso os dados tenham sido produzidos e coletados no Brasil ? ;
5) como deve ser interpretado o Marco Civil da Internet ( Lei número Doze mil novecentos e sessenta e cinco / Dois mil e quatorze ) que exige das empresas de internet a obediência à legislação brasileira, caso os dados tenham vínculo com o Brasil ( " operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses ocorra em território nacional " - Artigo Onze - *7 vide nota de rodapé ) ?
As questões levantadas na ADC número Cinquenta e um representam também outra colisão de direitos, ligeiramente distinta da apontada acima. Não há dúvida que o Brasil possui jurisdição, sob o prisma do direito internacional ( jurisdição pelo local do dano ) e do direito interno ( Artigo Onze do Marco Civil da Internet ) . Não é necessária a cooperação jurídica internacional, a qual obviamente não precisa ser acionada em casos nos quais o Estado tem jurisdição .
O fato de certas empresas, por decisão empresarial, buscarem proteger a privacidade ( atraindo mais consumidores ) dos seus usuários, transferindo o armazenamento para locais com legislações mais protetivas ( safe heaven ) não afeta a jurisdição brasileira. Por outro lado, as normas brasileiras e os tratados celebrados pelo Brasil já asseguram standard global de proteção à privacidade. Só que a privacidade, de acordo com os precedentes do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos ( Corte IDH - *8 vide nota de rodapé ) não é um direito absoluto, podendo ceder em face de outros, a partir do critério da proporcionalidade ( *9 vide nota de rodapé ) .
Dessa maneira, existe a colisão ( direito à privacidade - * 10 vide nota de rodapé - e os direitos tutelados pela decisão judicial que exige a entrega de dados ), mas o problema está em quem deve resolver tal colisão: se o Poder Judiciário ( PJ ) brasileiro ( de acordo com a CF - 88 e os tratados e precedentes internacionais ) ou o PJ estrangeiro do local do armazenamento ( aplicando suas leis ), escolhido livremente pelas empresas, em uma espécie de law shopping do mundo virtual .
Essa situação de " escolha " da jurisdição pelas empresas também afeta o direito à segurança jurídica e o direito de acesso à justiça: a vítima de violação de direitos no Brasil nunca saberá se obterá ou não a tutela pretendida. Tudo dependerá em qual lugar as empresas da internet decidiram armazenar os dados, nada impedindo, a depender o resultado da ADC número Cinquenta e um, que escolham u Estado que não coopera ou que impõe delonga e entraves maiores até que os impostos pelos EUA. Mesmo uma investigação ou ação penal sob a jkurisdição do STF dependerá dessa decisão empresarial, apesar de o Brasil ter - como exposto - claramente jurisdição sobre tais dados .
P.S.:
Notas de rodapé:
* A colisão de direitos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor exemplificado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh.html .
*2 O direito à segurança jurídica, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/10/direitos-humanos-o-direito-seguranca.html .
*3 O direito de acesso à justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/10/direitos-humanos-o-direito-de-acesso.html .
*4 Sobre cooperação jurídica internacional e direitos fundamentais, ver Abade, Denise Neves. Direitos fundamentais na cooperação jurídica internacional. São Paulo: Saraiva, Dois mil e treze .
*5 O direito ao devido processo legal, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/11/direitos-humanos-o-direito-ao-devido.html .
*6 A vedação ao uso de provas ilícitas, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/11/direitos-humanos-vedacao-as-provas.html .
*7 O Artigo Onze do Marco Civil da Internet obriga os conglomerados da internet ( caso queiram continuar suas atividades - auferindo lucros - no Brasil ) a cumprir a legislação brasileira, dispondo especificamente: " Artigo Onze. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros " .
*8 A corte Interamericana de Direitos Humanos é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .
*9 O princípio da proporcionalidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-principio-da_31.html .
*10 O direito à privacidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade.html .
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