quarta-feira, 7 de junho de 2023

Direitos Humanos: O direito à integridade física e moral e a vedação à tortura

A Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF  - 88 ) dispõe, no Inciso terceiro do Artigo Quinto, que "ninguém será submetido à tortura ( * vide nota de rodapé )". Logo depois, no Inciso Quarenta e três, do Mesmo Artigo Quinto, impõe que a lei "considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia ( *2 vide nota de rodapé ) a prática da tortura, ( ... )", por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.


Retomou-se, então, a previsão da Constituição imperial de Mil oitocentos e vinte e quatro, que em seu Artigo Cento e setenta e nove, Inciso Dezenove, estabeleceu: "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis ( *3 vide nota de rodapé )".


A tortura foi sistematicamente utilizada pelo regime militar no Brasil ( de Mil novecentos e sessenta e quatro a Mil novecentos e oitenta e cinco ) ( *4 vide nota de rodapé ) em diversos presos políticos, sendo a apuração de tais fatos bárbaros um dos objetivos da Comissão Nacional da Verdade ( CNV ) ( *5 vide nota de rodapé ) instituída pela Lei número Doze mil quinhentos e vinte e oito / Dois mil e onze.


A CF - 88 não definiu "tortura", tendo deixado tal tarefa para a jurisprudência, secundada pelos tratados internacionais e pela Lei número Nove mil quatrocentos e cinquenta e cinco / Mil novecentos e noventa e sete ).


Para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ( STF ), decidiu o Ministro Celso de Mello que "o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza-se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam o seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade" ( Habeas Corpus número Setenta mil trezentos e oitenta e nove / São Paulo, relator para o Acórdão Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça de Dez de agosto de Dois mil e um, passagem de voto ).


A Convenção da Organização das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes ( CONUCCTOTPCDD ) ( * 6 vide nota de rodapé ), adotada em Dez de dezembro de Mil novecentos e oitenta e quatro ( promulgada internamente pelo Decreto número Quarenta, de Quinze de fevereiro de Mil novecentos e noventa e um ), designa tortura como qualquer ato pelo qual


1) dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais,

2) são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,

3) informações ou confissões; de

4) castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido;

5) de intimidar ou coagir esta pessoa  ou outras pessoas; ou 

6) por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza;

7) quanto tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou como o seu consentimento ou aquiescência".


A CONUCCTOTPCDD ainda determina que não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. Por sua vez, a CONUCCTOTPCDD, em seu Artigo Quinto, Parágrafo Segundo, estabelece o princípio do aut dedere, aut judicare, pelo qual o Estado contratante tem o dever de extraditar ou julgar o torturador que esteja sob sua, não importando a nacionalidade do autor, vítima ou local que a tortura tenha ocorrido ( jurisdição universal condicionada à presença do autor no território estatal ). Também estabelece o Artigo Quinto o dever do Estado de criminalizar a tortura, no caso de ela ocorrer em seu território, for seu nacional o autor ( princípio da nacionalidade ativa, justificando a extraterritorialidade da lei penal ) ou a vítima ( princípio da nacionalidade passiva ).


Assim, para essa CONUCCTOTPCDD, a tortura é ato que


1) inflige dores ou sofrimentos agudos ( físicos ou mentais ),

2) intencionalmente,

3) por agente público ( diretamente ou com sua aquiescência ),

4) para:

a) obter confissão ou obter informação; ou

b) castigar por ato próprio ou de terceiro; ou

c) para intimidar ou coagir; ou

d) por discriminação de qualquer natureza ( por exemplo, torturar um homossexual por sua orientação sexual ).


A CONUCCTOTPCDD de Mil novecentos e oitenta e quatro é criticada por ter adotado uma definição de tortura, dando a entender que a tortura não pode ser cometida por omissão e negligência. Também foi alvo de polêmicas a menção a "sanções legítimas" que descaracterizam a tortura, exigência na époc ada negociação do tratado dos países que adotam castigos corporais. Essa menção a "sanções" legítimas pode ser utilizada de modo abusivo por países, como os Estados Unidos da América interessados em justificar os seus meios de interrogatórios de suspeitos de práticas de atos de terrorismo ( *7 vide nota de rodapé ).


Já a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura ( CIPPT ) ( *8 vide nota de rodapé ) de Nove de dezembro de Mil novecentos e oitenta e cinco ( promulgada internamente pelo Decreto número Noventa e oito mil trezentos e oitenta e seis / Mil novecentos e oitenta e nove ), dispõe que a tortura é "todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim". Tal convenção cria uma figura equiparada de tortura, ao dispor que também é tortura "aplicação, sobre uma pessoa, de métidos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou  mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica" ( Artigo Segundo, Parte final ). A CIPPT dispõe que não estarão compreendidos no conceito de torutra as dores ou sofrimentos que sejam consequências unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.


Comparando a CONUCCTOTPCDD de Mil novecentos e oitenta e quatro com a CIPPT de Mil novecentos e oitenta e cinco, há as seguintes convergências:


1) ambas considerando tortura como "sofrimentos físicos e mentais";

2) par afins de investigação penal, intimidação, castigo pessoal.


Já as divergências são as seguintes:


1) só a CONUCCTOTPCDD exige que a tortura seja feita por agente público ou com sua aquiescência;

2) Só a CONUCCTOTPCDD exige que o sofrimento seja aguda;

3) a CIPPT tipifica como tortura o ato de imposição de sofrimento físico e psíquico com "qualquer fim";

4) a CIPPT admite que pode ser tortura determinada pena ou medida preventiva;

5) a CIPPT criou a "figura equiparada", ou seja, são equiparadas a tortura medidas que infligem dor ou sofrimento, mas diminuem a capacidade física ou mental.


Além  dessas definições, o Estatuto de Roma ( que criou o Tribunal Penal Internacional - TPI - *9 vide nota de rodapé ) conceituou tortura como sendo o ato por meio do qual uma dor ou sofrimento agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle do acusado; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas ( Artigo Sete ponto Dois ).


O STF utilizou a definição de tortura prevista na CONUCCTOTPCDD de Mil novecentos e oitenta e quatro ( incorporada internamente em Mil novecentos e noventa e um ) para dar sentido ao tipo estabelecido no Artigo Duzentos e trinta e três do Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA ) (n Artigo Duzentos e trinta e três, Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura: Pena - reclusão de um a cinco anos" - habeas Corpus número Setenta mil trezentos e oitenta e nove / São Paulo, relator para o Acórdão Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça de Dez de agosto de Dois mil e um ).


No que tange á divisão de competência judicial interna para apurar o crime de tortura cometido contra brasileiro no exterior, o Superior Tribunal de Justiça ( STJ ) decidiu que o crime de tortura cometido contra brasileiros não é, inicialmente, de competência da Justiça Federal, pois não é aplicável o Artigo Cento e nove, Inciso Quinto, da CF - 88 ( que dispõe que compete à Justiça Federal processar e julgar "os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução do País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente" ) por não se tratar de um  crime a a distância. Todavia, é possível que a Justiça Federal venha a julgar tal fato, caso ocorra o deslocamento de competência ( *10 vide nota de rodapé ), de acordo com o Artigo Cento e nove, Inciso Quinto - A e Parágrafo Quinto, da CF  - 88 ( STJ, Conflito de Competência número Cento e sete mil trezentos e noventa e sete - Distrito Federal, relator Ministro Nefi cordeiro, julgado em Vinte e quatro de setembro de Dois mil e quatorze ), conforme os requisitos do Incidente de Deslocamento de Competência ( IDC ) ( *11 vide nota de rodapé ).


Por outro lado, na hipótese de ter existido pedido de cooperação jurídica passiva de transferência de processo por parte do Estado estrangeiro, a competência é da Justiça Federal, á luz do Artigo Cento e nove, Inciso quarto, da CF - 88, em nome do interesse da União em cumprir o pedido sob promessa de reciprocidade ou tratado cooperacional 9 como, por exemplo, um tratado de extradição ). Tem-se a consagração do princípio do direito internacional aut dedere, aut indicare ou extraditare vel iudicare, pelo qual se evita a ausência de punição aos brasileiros não extraditáveis e que cometeram o crime fora do território nacional ( STJ, Recurso em Habeas Corpus número Cento e dez mil setecentos e trinta e três, relator Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em Dezoito de agosto de Dois mil e vinte, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e quatro de agosto de Dois mil e vinte ).  



P.S.:


Vide notas de rodapé:


* A vedação à submissão à tortura, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-comite-e-constituido.html .


*2 O crime de tortura, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_10.html .


*3 A vedação a penas cruéis, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_64.html .


*4 As violações aos Direitos Humanos decorrentes da Doutrina de Segurança Nacional, no regime militar, são melhor detalhadas em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/07/direitos-humanos-as-violacoes-que.html .


*5 O direito à memória e à verdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-direito-memoria-e.html .


*6 A Convenção da Organização das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-combate-tortura-e.html .


*7 A vedação ao terrorismo, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-investigacao-e.html .


*8 A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-prevencao-e-punicao-da.html .


*9 O Tribunal Penal Internacional, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-tratado-cria-tribunal.html .


*10 O deslocamento de competência, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/03/direitos-humanos-o-deslocamento-de.html .


*11 Os requisitos para o incidente deslocamento de competência, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/03/direitos-humanos-motivacao-para-o.html .   

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