O desenvolvimento tecnológico das últimas décadas gerou uma mudança de paradigma na coleta, transmissão e armazenamento de informação tendendo a abranger de modo mais ou menos sutil, todas as facetas da vida em sociedade.
Esse imenso acervo de informação sobre um indivíduo já é utilizado maciçamente pelas empresas privadas dos mais diversos setores: desde gigantes da internet, empresas multinacionais de bens e serviços até o pequeno comerciante que contrata um serviço para oferta focada em potenciais clientes, cujos dados foram coletados por rede social de uso "gratuito". Do ponto de vista do indivíduo, é praticamente um truísmo reconhecer que suas interações armazenadas no mundo digital fornecem mais informações sobre sua pessoa que eventual violação do seu domicílio ( * vide nota de rodapé ) físico.
No plano da segurança pública ( *2 vide nota de rodapé ) e da persecução criminal, o Estado também utiliza essas informações para fins de promover
1) o direito à segurança;
2) o direito à verdade ( *3 vide nota de rodapé ) e
3) o direito à justiça ( *4 vide nota de rodapé ).
A "tríade da privacidade ( *5 vide nota de rodapé )" da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) auxilia pouco. O Artigo Quinto, Inciso Onze, é restrito à morada ( *6 vide nota de rodapé ), que, mesmo no sentido ampliativo dado pelo Supremo Tribunal Federal ( STF ) não abrange o mundo digital ( da "nuvem da dados" aos dados contidos nos smartphones ); já o Artigo Quinto, Inciso Doze, é de maior utilidade, mas protege somente as "comunicações" ( *7 vide nota de rodapé ). Finalmente, o Artigo Quinto, Inciso Dez, incide com maior propriedade, ao dispor que "são invioláveis a intimidade, a vida privada...". Porém, não há direitos absolutos, devendo o intérprete ( *7 vide nota de rodapé ) realizar a devida ponderação com outros direitos em conflito ( *8 vide nota de rodapé ), em especial o direito de terceiros protegidos pelo direito penal e o direito difuso à segurança pública da coletividade ( artigo Cento e quarenta e quatro da CF - 88 ). No plano infraconstitucional, a Lei Geral de Proteção de Dados ( LGPD ) ( *9 vide nota de rodapé ) é inútil na seara criminal, pois seu Artigo Quarto, Inciso terceiro exclui de sua abrangência as atividades relacionadas:
1) segurança pública;
2) defesa nacional;
3) segurança do Estado; ou
4) atividades de investigação e repressão de infrações penais.
Por sua vez, a Lei número Doze mil novecentos e sessenta e cinco / Dois mil e quatorze ( "marco Civil da Internet - MCI" ) é concisa e prevê somente a inviolabilidade e o sigilo das comunicações privadas armazenadas na rede mundial de computadores ( dados armazenados ), "salvo por ordem judicial".
Três casos envolvendo a privacidade em face da persecução penal merecem destaque:
1) Acesso da polícia, em caso de flagrante delito, a dados armazenados em celular apreendido.
Tradicionalmente, o Código de Processo Penal ( CPP ) autoriza a perícia nos instrumentos apreendidos que podem ter sido utilizados p0ara a prática de crimes ( Artigo Sexto, Incisos Segundo, Terceiro e Sétimo, do CPP ). Tais dispositivos legais são compatíveis com a CF - 88, Pois não há reserva de jurisdição e a ponderação de direitos feita pela lei é tida como proporcional. Assim, inicialmente, o conteúdo armazenado no aparelho, tal qual outro objeto apreendido, poderia ser analisado, sem ordem judicial, pela autoridade policial.
Contudo, a crescente capacidade dos celulares e suas diversas aplicações ( dados variados, fotos em número expressivo, informações bancárias, mensagens, histórico de sítios visitados, informações dos aplicativos de orientação no trânsito levando a locais visitados, vídeos etc. ) impedem que sua apreensão e perícia sejam equiparadas a um livro, uma agenda telefônica apreendida ou um álbum de fotos.
Trata-se de uma devassa na vida íntima ( *10 vide nota de rodapé ) em grande proporção ainda sem regulação legal específica ( uma futura "LGPD criminal" ), que não foi sequer imaginada pelo legislador no momento da elaboração das regras gerais do CPP ( de Mil novecentos e quarenta e um ). Por isso, utilizando o Marco Civil da Internet ( MCI ), como analogia, a jurisprudência - não sem razão - tende a reconhecer a necessidade de ordem judicial para o acesso aos dados contidos em um celular apreendido, quer seja em flagrante delito ou em cumprimento de ordem de busca e apreensão ( superior Tribunal de Justiça - STJ, Habeas Corpus Quinhentos e trinta e sete mil duzentos e setenta e quatro / Minas Gerais, julgado em Dezenove de novembro de Dois mil e dezenove, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e seis de novembro de Dois mil e dezenove ). Essa ordem judicial pode ser de busca e apreensão tão somente, pois subentende-se que o aparelho será periciado e seus dados extraídos ( STJ, Recurso de Habeas Corpus número Setenta e cinco mil e oitocentos / Paraná, Relator Ministro Felis Fischer, Quinta Turma, julgado em Quinze de setembro de Dois mil e dezesseis ).
Em uma corrente intermediária, Ramos ( *11 vide nota de rodapé ) defende, na falta de uma regulação legal específica, que não é possível descartar o acesso direto das autoridades policiais ( sem ordem judicial ) em determinado caso concreto, no qual a demora na obtenção do mandado judicial possa trazer prejuízo à
a) investigação ou à
b) vítima ( por exemplo, caso de extorsão mediante sequestro - necessidade imediata de acessar aparelho celular recém-abandonado ), tal como consta da ressalva de voto da Ministra Maria thereza de Assis Moura, em importante precedente do STJ a favor da necessidade da autorização judicial para acesso a dados de celulares ( STJ, Recurso de Habeas Corpus número Cinquenta e um mil quinhentos e trinta e um, Relator Nefi Cordeiro, julgado em Dezenove de abril de Dois mil e dezesseis, Diário da Justiça eletrônico de Nove de maio de Dois mil e dezesseis ) ( *12 vide nota de rodapé )
2) Uso da gelolcalização e da visita a sites para fins de investigação criminal.
Outro instrumento de investigação criminal é o geofencing ( mapeamento de presença pela via digital ) ou o uso da geolocalização de pessoas com base em coordenadas determinadas pelo uso do aparelho celular. Inicialmente, o Marco Civil da Internet ( MCI ), no seu Artigo Vinte e dois, permite o acesso a tais informações de geolocalização individual, pelo qual se, pelo qual se busca o mapa da presença física de um indivíduo em uma área geográfica por meio da detecção de sua presença digital via celular, sob autorização judicial, a qual, obviamente, deve ser fundamentada, expondo
a) fundados indícios da ocorrência do ilícito;
b) justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ouinstrução probatória e
c) período ao qual se referem os registros.
Por outro lado, seria possível o uso da "geolocalização objetiva ou de massa", pela qual se pede genericamente dados não a partir da identificação de um número de celular específico, mas de todos os que estiveram em uma localidade ( em determinada data / período de tempo e horário ) e, com isso, identificar um determinado indivíduo?
Para os defensores da geolocalização objetiva ( também com autorização judicial ), o espeço virtual é comparável hoje a um condomínio residencial ou a um clube recreativo com "controle de portaria" ( os provedores de serviços da internet ). O acesso a tais dados gerais seria equivalente à consulta, pela polícia, do registro de entrada em um condomínio ou clube privado em um certo período de tempo para que seja localizado um indivíduo. Aos que são contrários, há o argumento da devassa e do risco da violação da privacidade sem que haja um motivo justificável ( a grande maioria daqueles que terão seus dados devassados.
A terceira Seção do STJ reconheceu a possibilidade da "geolocalização de massa", apontando:
a) conformidade com a lei: o MCI não exige a individualização do usuário-alvo, mas, ao contrário, tem como objetivo que os dados permitam a identificação de usuário;
b) diferença ( óbvia ) entre quebra de sigilo de dados armazenados e a interceptação do fluxo de comunicações ( *15 vide nota de rodapé ); e
c) restrição proporcional ( *16 vide nota de rodapé ) à privacidade, com envio de dados estatísticos relacionados à identificação de usuários que operaram em determinada área delimitada, com parâmetros e por lapso de tempo, em face da justificativa ( apuração de crime grave envolvendo homicídio de defensora de Direitos Humanos ( DH ), sendo citados precedentes da Corte Interamericana de DH ( Corte IDH ) ( *17 vide nota de rodapé ) contra o Brasil em face da impunidade de autores desse tipo de grave violação de DH - STJ, Recurso em Mandado de Segurança número Sessenta e dois mio cento e quarenta e três, Terceira Seção, julgado em Vinte e seis de agosto de Dois mil e vinte ). Também é importante que se assegure o caráter sigiloso desses dados, para proteger os usuários ( terceiros ), os quais devem ser cientificados de que suas informações foram remetidas e analisadas em investigação criminal. Após, os dados desses terceiros devem ser apagados.
3) Interceptação telefônica ( *18 vide nota de rodapé ) e espelhamento de conversas travadas no WhatsApp.
A Interceptação e espelhamento de mensagens também foi objeto de atenção da jurisprudência. o STJ considerou que até mesmo a autoridade judicial é insuficiente para legitimar o uso, pela Polícia, od chamado espelhamento de conversas do WhatsApp por meio do sítio eletrônico disponibilizado pela própria empresa, denominado WhatsApp Web. Foram três motivos:
a) o investigador tem a possibilidade de interagir nos diálogos e depois exclir mensagens, tornando impossível o controle a posteriori;
b) o espelhamento via Código QR viabiliza à Polícia acesso amplo e irrestrito a toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando efeitos retroativos e impossibilitando uma ordem judicial com lapso temporal definido;
c) o espelhamento exige uma conduta pública ativa de engodo, pois o aparelho de ser apreendido e devolvido, com a falsa afirmação de que nada foi feito ( STJ, Recurso de habeas Corpus número Noventa e nove mil setecentos e trinta e cinco / Santa Catarina, relator Ministra Laurita Vaz, jugado em Vinte e sete de novembro de Dois mil e dezoito, publicado no Diário da Justiça eletrônico de Doze de dezembro de Dois mil e dezoito ).
P.S.:
Notas de rodapé:
* O direito à inviolabilidade do domicílio, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade_25.html .
*2 O direito à segurança pública, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/11/direitos-humanos-garantia-do-acesso.html .
*3 O direito à verdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-direito-memoria-e.html .
*4 O direito ao acesso à justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/11/direitos-humanos-garantia-do-acesso.html .
*5 O direito à privacidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade.html .
*6 Artigo Quinto ( ... ) Inciso Onze - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro ou, durante o dia, por determinação judicial.
*7 A interpretação como critério de efetividade dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-efetividade-como.html .
*8 O conflito de direitos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh.html .
*9 O direito à proteção dos dados pessoais, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_17.html .
*10 O direito à intimidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor contextualizado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade_20.html .
*11 Ramos, André de Carvalho. Curso de direitos humanos / Oitava edição - São Paulo : Saraiva Educação, Dois mil e um. Mil cento e quarenta e quatro Páginas. Página Oitocentos e oito.
*12 Mais precedentes sobre a ( des ) necessidade de ordem judicial para o acesso da polícia a dados de celulares apreendidos, são detalhados no tema "direito à prova".
*13 O direito ao devido processo legal, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_28.html .
*14 O princípio da presunção de inocência, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_80.html .
*15 a vedação à interceptação ambiental, no conceito dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_14.html .
*16 O princípio da proporcionalidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-principio-da_31.html .
*17 A Corte Interamericana de Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .
*18 A vedação à interceptação telefônica, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/05/direitos-humanos-doutrinas-e_10.html .
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