sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Direitos Humanos: o direito à privacidade e a geolocalização

O desenvolvimento tecnológico das últimas décadas gerou uma mudança de paradigma na coleta, transmissão e armazenamento de informação tendendo a abranger de modo mais ou menos sutil, todas as facetas da vida em sociedade.


Esse imenso acervo de informação sobre um indivíduo já é utilizado maciçamente pelas empresas privadas dos mais diversos setores: desde gigantes da internet, empresas multinacionais de bens e serviços até o pequeno comerciante que contrata um serviço para oferta focada em potenciais clientes, cujos dados foram coletados por rede social de uso "gratuito". Do ponto de vista do indivíduo, é praticamente um truísmo reconhecer que suas interações armazenadas no mundo digital fornecem mais informações sobre sua pessoa que eventual violação do seu domicílio ( * vide nota de rodapé ) físico.


No plano da segurança pública ( *2 vide nota de rodapé ) e da persecução criminal, o Estado também utiliza essas informações para fins de promover


1) o direito à segurança;

2) o direito à verdade ( *3 vide nota de rodapé ) e

3) o direito à justiça ( *4 vide nota de rodapé ).


A "tríade da privacidade ( *5 vide nota de rodapé )" da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) auxilia pouco. O Artigo Quinto, Inciso Onze, é restrito à morada ( *6 vide nota de rodapé ), que, mesmo no sentido ampliativo dado pelo Supremo Tribunal Federal ( STF ) não abrange o mundo digital ( da "nuvem da dados" aos dados contidos nos smartphones ); já o Artigo Quinto, Inciso Doze, é de maior utilidade, mas protege somente as "comunicações" ( *7 vide nota de rodapé ). Finalmente, o Artigo Quinto, Inciso Dez, incide com maior propriedade, ao dispor que "são invioláveis a intimidade, a vida privada...". Porém, não há direitos absolutos, devendo o intérprete ( *7 vide nota de rodapé ) realizar a devida ponderação com outros direitos em conflito ( *8 vide nota de rodapé ), em especial o direito de terceiros protegidos pelo direito penal e o direito difuso à segurança pública da coletividade ( artigo Cento e quarenta e quatro da CF - 88 ). No plano infraconstitucional, a Lei Geral de Proteção de Dados ( LGPD ) ( *9 vide nota de rodapé ) é inútil na seara criminal, pois seu Artigo Quarto, Inciso terceiro exclui de sua abrangência as atividades relacionadas:


1) segurança pública;

2) defesa nacional;

3) segurança do Estado; ou

4) atividades de investigação e repressão de infrações penais.


Por sua vez, a Lei número Doze mil novecentos e sessenta e cinco / Dois mil e quatorze ( "marco Civil da Internet - MCI" ) é concisa e prevê somente a inviolabilidade e o sigilo das comunicações privadas armazenadas na rede mundial de computadores ( dados armazenados ), "salvo por ordem judicial".


Três casos envolvendo a privacidade em face da persecução penal merecem destaque:


1) Acesso da polícia, em caso de flagrante delito, a dados armazenados em celular apreendido.

Tradicionalmente, o Código de Processo Penal ( CPP ) autoriza a perícia nos instrumentos apreendidos que podem ter sido utilizados p0ara a prática de crimes ( Artigo Sexto, Incisos Segundo, Terceiro e Sétimo, do CPP ). Tais dispositivos legais são compatíveis com a CF - 88, Pois não há reserva de jurisdição e a ponderação de direitos feita pela lei é tida como proporcional. Assim, inicialmente, o conteúdo armazenado no aparelho, tal qual outro objeto apreendido, poderia ser analisado, sem ordem judicial, pela autoridade policial.


Contudo, a crescente capacidade dos celulares e suas diversas aplicações ( dados variados, fotos em número expressivo, informações bancárias, mensagens, histórico de sítios visitados, informações dos aplicativos de orientação no trânsito levando a locais visitados, vídeos etc. ) impedem que sua apreensão e perícia sejam equiparadas a um livro, uma agenda telefônica apreendida ou um álbum de fotos.


Trata-se de uma devassa na vida íntima ( *10 vide nota de rodapé ) em grande proporção ainda sem regulação legal específica ( uma futura "LGPD criminal" ), que não foi sequer imaginada pelo legislador no momento da elaboração das regras gerais do CPP ( de Mil novecentos e quarenta e um ). Por isso, utilizando o Marco Civil da Internet ( MCI ), como analogia, a jurisprudência - não sem razão - tende a reconhecer a necessidade de ordem judicial para o acesso aos dados contidos em um celular apreendido, quer seja em flagrante delito ou em cumprimento de ordem de busca e apreensão ( superior Tribunal de Justiça - STJ, Habeas Corpus Quinhentos e trinta e sete mil duzentos e setenta e quatro / Minas Gerais, julgado em Dezenove de novembro de Dois mil e dezenove, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e seis de novembro de Dois mil e dezenove ). Essa ordem judicial pode ser de busca e apreensão tão somente, pois subentende-se que o aparelho será periciado e seus dados extraídos ( STJ, Recurso de Habeas Corpus número Setenta e cinco mil e oitocentos / Paraná, Relator Ministro Felis Fischer, Quinta Turma, julgado em Quinze de setembro de Dois mil e dezesseis ).


Em uma corrente intermediária, Ramos ( *11 vide nota de rodapé ) defende, na falta de uma regulação legal específica, que não é possível descartar o acesso direto das autoridades policiais ( sem ordem judicial ) em determinado caso concreto, no qual a demora na obtenção do mandado judicial possa trazer prejuízo à


a) investigação ou à

b) vítima ( por exemplo, caso de extorsão mediante sequestro - necessidade imediata de acessar aparelho celular recém-abandonado ), tal como consta da ressalva de voto da Ministra Maria thereza de Assis Moura, em importante precedente do STJ a favor da necessidade da autorização judicial para acesso a dados de celulares ( STJ, Recurso de Habeas Corpus número Cinquenta e um mil quinhentos e trinta e um, Relator Nefi Cordeiro, julgado em Dezenove de abril de Dois mil e dezesseis, Diário da Justiça eletrônico de Nove de maio de Dois mil e dezesseis ) ( *12 vide nota de rodapé )


2) Uso da gelolcalização e da visita a sites para fins de investigação criminal.


Outro instrumento de investigação criminal é o geofencing ( mapeamento de presença pela via digital ) ou o uso da geolocalização de pessoas com base em coordenadas determinadas pelo uso do aparelho celular. Inicialmente, o Marco Civil da Internet ( MCI ), no seu Artigo Vinte e dois, permite o acesso a tais informações de geolocalização individual, pelo qual se, pelo qual se busca o mapa da presença física de um indivíduo em uma área geográfica por meio da detecção de sua presença digital via celular, sob autorização judicial, a qual, obviamente, deve ser fundamentada, expondo


a) fundados indícios  da ocorrência do ilícito;

b) justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ouinstrução probatória e 

c) período ao qual se referem os registros.


Por outro lado, seria possível o uso da "geolocalização objetiva ou de massa", pela qual se pede genericamente dados não a partir da identificação de um número de celular específico, mas de todos os que estiveram em uma localidade ( em determinada data / período de tempo e horário ) e, com isso, identificar um determinado indivíduo?


Para os defensores da geolocalização objetiva ( também com autorização judicial ), o espeço virtual é comparável hoje a um condomínio residencial ou a um clube recreativo com "controle de portaria" ( os provedores de serviços da internet ). O acesso a tais dados gerais seria equivalente à consulta, pela polícia, do registro de entrada em um condomínio ou clube privado em um certo período de tempo para que seja localizado um indivíduo. Aos que são contrários, há o argumento da devassa e do risco da violação da privacidade sem que haja um motivo justificável ( a grande maioria daqueles que terão seus dados devassados.


No caso dos homicídios da vereadora do município do Rio de Janeiro Marielle Franco ( do Partido 
Socialismo e Liberdade - PSOL ) e do motorista Anderson Gomes, o STJ considerou lícita a geolocalização de massa exigida - por ordem judicial - à empresa Google Brasil, obrigando-a a fornecer identificação dos usuários de aplicativos de um conjunto não identificado de pessoas que tenham transitado, em certo período de tempo, por determinadas coordenadas geográficas no Rio de janeiro. Deixando de lado a falta de interesse de agir da Google ( já que a ordem - em tese - violaria direitos de terceiros ), apontou-se que a quebra de sigilo de dados ( registros ) violaria essencialmente o direito à privacidade, devido processo legal ( *13 vide nota de rodapé ) e presunção de inocência ( *14 vide nota de rodapé ).


A terceira Seção do STJ reconheceu a possibilidade da "geolocalização de massa", apontando:


a) conformidade com a lei: o MCI não exige a individualização do usuário-alvo, mas, ao contrário, tem como objetivo que os dados permitam a identificação de usuário;

b) diferença ( óbvia ) entre quebra de sigilo de dados armazenados e a interceptação do fluxo de comunicações ( *15 vide nota de rodapé ); e 

c) restrição proporcional ( *16 vide nota de rodapé ) à privacidade, com envio de dados estatísticos relacionados à identificação de usuários que operaram em determinada área delimitada, com parâmetros e por lapso de tempo, em face da justificativa ( apuração de crime grave envolvendo homicídio de defensora de Direitos Humanos ( DH ), sendo citados precedentes da Corte Interamericana de DH ( Corte IDH ) ( *17 vide nota de rodapé ) contra o Brasil em face da impunidade de autores desse tipo de grave violação de DH - STJ, Recurso em Mandado de Segurança número Sessenta e dois mio cento e quarenta e três, Terceira Seção, julgado em Vinte e seis de agosto de Dois mil e vinte ). Também é importante que se assegure o caráter sigiloso desses dados, para proteger os usuários ( terceiros ), os quais devem ser cientificados de que suas informações foram remetidas e analisadas em investigação criminal. Após, os dados desses terceiros devem ser apagados.


3) Interceptação telefônica ( *18 vide nota de rodapé ) e espelhamento de conversas travadas no WhatsApp.


A Interceptação e espelhamento de mensagens também foi objeto de atenção da jurisprudência. o STJ considerou que até mesmo a autoridade judicial é insuficiente para legitimar o uso, pela Polícia, od chamado espelhamento de conversas do WhatsApp por meio do sítio eletrônico disponibilizado pela própria empresa, denominado WhatsApp Web. Foram três motivos:


a) o investigador tem a possibilidade de interagir nos diálogos e depois exclir mensagens, tornando impossível o controle a posteriori;

b) o espelhamento via Código QR viabiliza à Polícia acesso amplo e irrestrito a toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando efeitos retroativos e impossibilitando uma ordem judicial com lapso temporal definido;

c) o espelhamento exige uma conduta pública ativa de engodo, pois o aparelho de ser apreendido e devolvido, com a falsa afirmação de que nada foi feito ( STJ, Recurso de habeas Corpus número Noventa e nove mil setecentos e trinta e cinco / Santa Catarina, relator Ministra Laurita Vaz, jugado em Vinte e sete de novembro de Dois mil e dezoito, publicado no Diário da Justiça eletrônico de Doze de dezembro de Dois mil e dezoito ).            


P.S.:


Notas de rodapé:


* O direito à inviolabilidade do domicílio, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade_25.html .


*2 O direito à segurança pública, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/11/direitos-humanos-garantia-do-acesso.html .


*3 O direito à verdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-direito-memoria-e.html .


*4 O direito ao acesso à justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/11/direitos-humanos-garantia-do-acesso.html .


*5 O direito à privacidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade.html .


*6 Artigo Quinto ( ... ) Inciso Onze - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro ou, durante o dia, por determinação judicial.


*7 A interpretação como critério de efetividade dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-efetividade-como.html .


*8 O conflito de direitos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-delimitacao-dos-dh.html .


*9 O direito à proteção dos dados pessoais, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_17.html .


*10 O direito à intimidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor contextualizado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade_20.html .


*11 Ramos, André de Carvalho. Curso de direitos humanos / Oitava edição - São Paulo : Saraiva Educação, Dois mil e um. Mil cento e quarenta e quatro Páginas. Página Oitocentos e oito.


*12 Mais precedentes sobre a ( des ) necessidade de ordem judicial para o acesso da polícia a dados de celulares apreendidos, são detalhados no tema "direito à prova".


*13 O direito ao devido processo legal, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_28.html .


*14 O princípio da presunção de inocência, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_80.html .


*15 a vedação à interceptação ambiental, no conceito dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_14.html .


*16 O princípio da proporcionalidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-principio-da_31.html .


*17 A Corte Interamericana de Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .


*18 A vedação à interceptação telefônica, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/05/direitos-humanos-doutrinas-e_10.html .

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