terça-feira, 25 de julho de 2023

Direitos Humanos: o direito à privacidade e à inviolabilidade do domicílio

O Artigo Quinto, Inciso Onze, da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito, dispõe que "a casa é asilo inviolável ( * vide nota de rodapé ) do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". O direito à privacidade ( *2 vide nota de rodapé ) ecoa nessa garantia, fazendo com que o indivíduo seja o "senhor de sua morada", podendo impedir que o Poder Público ou terceiros a invadam, salvo na ocorrência das exceções previstas no texto da CF - 88, que são:


1) flagrante delito;

2) desastre;

3) prestar socorro; e

4) por ordem judicial, durante o dia.


A invasão domiciliar, então, consiste na entrada de terceiro em uma casa, sem a permissão do morador, ou ainda contra sua expressa proibição.


O Supremo Tribunal Federal ( STF ) decidiu que o conceito de "casa" é abrangente, atingindo todo e qualquer compartilhamento privado não aberto ao público, onde determinada pessoa possui moradia ou exerce profissão ou atividade.


Assim, o conceito constitucional ou normativo de "casa" abrange a moradia propriamente dita ( nas mais diversas formas ) e também os locais de exercício de qualquer atividade nos espaços não abertos ao público existentes em empresas, escritórios de contabilidade, consultórios médicos e odontológicos, entre outros ( Habeas Corpus número Noventa e três mil e cinquenta, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em Dez de junho de Dois mil e oito, Segunda Turma, Diário da Justiça eletrônico de Primeiro de agosto de Dois mil e oito ). Nessa linha, o Código Penal ( CP ) dispõe que a expressão "casa" compreende:


1) qualquer compartimento habitado;

2) aposento ocupado de habitação coletiva;

3) compartilhamento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade ( Artigo Cento e cinquenta, Parágrafo Quarto do CP ).


Para que seja, então, lícita a entrada de qualquer pessoa a uma casa ( em seu sentido normativo, amplo, consagrado pelo STF ) é necessário separar duas situações:


1) com autorização do morador e

2) sem autorização do morador ( invito domino, ou seja, contra a vontade do morador ).


Com a autorização do morador, não há restrição a entrada em uma casa, inclusive por parte de autoridades públicas.


Sem autorização do  morador, cabe a entrada em uma casa a qualquer momento, nas seguintes hipóteses:


1) na ocorrência de flagrante delito ou iminência de o ser ( Artigo Cento e cinquenta, Parágrafo Terceiro, Inciso Segundo, do CP );

2) na ocorrência de desastre; e

3) para prestar socorro.


Também sem autorização do morador e somente durante o dia, cabe a entrada de determinada pessoa em uma casa por ordem judicial.


No caso do flagrante delito e diante de diversos casos de invasão domiciliar pela polícia ( sem ordem judicial ), sob a alegação de ocorrência de crime permanente ( *3 vide nota de rodapé ) ( em, geral tráfico de drogas ), o Supremo Tribunal Federal ( STF ) decidiu aperfeiçoar a jurisprudência até então dominante, que considerava lícita tal invasão, aprovando a seguinte tese em recurso extraordinário com repercussão geral:


"A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados" ( Recurso Especial número Seiscentos e três mil seiscentos e dezesseis, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em Cinco de novembro de Dois mil e quinze, Diário da Justiça eletrônico de Nove de maio de Dois mil e dezesseis, com repercussão geral ).


Assim, mesmo que nenhum crime tenha sido detectado após a invasão, os policiais não respondem pelo crime de violação de domicílio ( majorado pela sua qualidade de funcionário público, Artigo Cento e cinquenta, Parágrafo segundo, do CP ) caso demonstrem, a posteriori, a existência das "fundadas razões" que os levaram a crer na existência de flagrante delito na residência invadida. Por outro lado, devem os policiais ter em mente a necessidade de sustentar as "fundadas razões", que devem ser analisadas já na ausência de custódia que aferirá a legalidade do flagrante.


O "durante o dia" previsão na CF - 88 é determinado de acordo com o critério físico-astronômico, compreendendo o lapso temporal entre a aurora e o crepúsculo, que, em geral, corresponde ao período das Seis horas da manhã às Dezoito horas, podendo ser alargado no caso do horário de verão, uma vez que a proteção prevista na CF - 88 visa a impedir possíveis ações ilegais acobertadas pela escuridão na casa invadida ( *4 vide nota de rodapé ). A forma pela qual deve ser feita a invasão do domicílio é ditada pelo Artigo Duzentos e quarenta e cinco do Código de Processo Penal ( CPP ), que dispõe que "as buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, entes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o em seguida, a abrir a porta".


Com isso, nenhum terceiro poderá, sem o consentimento do morador, ingressar, durante o dia, sem ordem judicial, em espaço provado não aberto ao público. É a cláusula de reserva de domicílio. Além da sanção do crime de invasão de domicílio ( Artigo Cento e cinquenta e o CP ) ou ainda de abuso de autoridade ( Artigo Vinte e oids da Lei número treze mil oitocentos e sessenta e nove / Dois mil e dezenove ), a prova resultante da diligência de busca e apreensão gerada por violação indevida do espaço domiciliar é inadmissível, "porque impregnada de ilicitude material" ( Habeas Corpus número Noventa e três mil e cinquenta, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em Dez de junho de Dois mil e oito, Segunda Turma, Diário da Justiça eletrônico de Primeiro de agosto de Dois mil e oito ).


Apesar do comando expresso do Artigo Quinto, Inciso Onze, da CF - 88, o STF reconheceu como válida a invasão domiciliar durante a noite por ordem judicial, justificando-a em virtude da


1) inexistência de outra alternativa, pois a invasão durante o dia frustraria o escopo da medida, inviabilizando a tutela judicial justa;

2) houve desgaste mínimo à privacidade, pois o escritório de advocacia cujo recinto foi invadido pelos policiais federais ( para instalação de aparelho de interceptação ambiental ) estava vazio ( Inquérito número Dois mil quatrocentos e vinte e quatro, Relator Ministro Cezar Peluzo, julgado em Vinte e seis de novembro de Dois mil e oito, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e seis de março de Dois mil e dez ).


Correto o entendimento do STF, uma vez que a ponderação de bens e valores prevista no corpo da Constituição não é exaustiva nem impede a aplicação do critério da proporcionalidade em situações não previstas pelo Poder Constituinte, em ponderação de segundo grau ( *5 vide nota de rodapé ). De fato, há casos nos quais o direito de acesso à justiça e seus corolários, como o direito à verdade ( *6 vide nota de rodapé ) e à tutela jurídica justa, exigem que o direito à privacidade seja mitigado, podendo o juiz autorizar, fundamentadamente, a invasão domiciliar noturna. Interpretar as exceções à inviolabilidade domiciliar como sendo exaustivas seria negar a tutela jurídica justa, o que não é, obviamente, o objetivo de um Estado Democrático de direito ( EDD ).  


P.S.:


Notas de rodapé:


* O direito à inviolabilidade do domicílio, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/05/direitos-humanos-doutrinas-e.html


*2 O direito à privacidade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade.html .


*3 Código de Processo Penal ( CPP ), Artigo Trezentos e três: "Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência".


*4 Nesse sentido, Moraes, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. Nona edição. São Paulo: Atlas, Dois mil e onze, Páginas Cento e cinquenta e dois a Cento e cinquenta e três.


*5 Vide sobre ponderação de segundo grau, melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/04/direitos-humanos-proporcionalidade-de.html .


*6 O direito à verdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-direito-memoria-e.html .   

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