sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Direitos Humanos: o direito ao tribunal do júri

A instituição do Júri consiste no conjunto de normas que regem o julgamento de determinada causa ( cível ou criminal ) por um colegiado de cidadãos. É inspirada pela Magna Carta de Mil duzentos e quinze ( * vide nota de rodapé ) , que determinava o direito de uma pessoa ser julgada por seus pares.


A Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) inseriu, na mesma linha, a instituição do júri no rol dos direitos individuais. No plano constitucional, a Constituição Federal de Mil oitocentos e vinte e quatro ( CF - 24 ) foi a primeira a prever o Tribunal do Júri, tradição que foi mantida até a CF - 88, com as seguintes características:


1) organização regida pela lei;

2) competência mínima a ser observada ( podendo ser ampliada pela lei, mas nunca reduzida ): julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

3) informado pelos princípios da plenitude defesa, sigilo das votações e soberania dos veredictos.


Atualmente, o Júri possui competência para os crimes dolosos contra a vida ( Artigo Cento e vinte e um, Parágrafos Primeiro e Segundo, Artigo Cento e vinte e dois, Parágrafo Único, Artigos Cento e vinte e três, Cento e vinte e quatro, Cento e vinte e cinco, Cento e vinte e seis e Cento e vinte e sete do Código Penal ( CP ) ( consumados ou tentados ) e conexos, tendo a Lei número Onze mil seiscentos e oitenta e nove / Dois mil e oito alterado as regras do Código de Processo Penal ( CPP ) ( Artigos Quatrocentos e oito e seguintes ) para dotar o Júri de um novo procedimento mais célere. A Lei Anticrime também modificou regras relativas aos efeitos da sentença, caso haja condenação a pena igual ou superior a Quinze anos de prisão. Há duas fases do julgamento do procedimento:


1) a primeira fase é o juízo de admissibilidade ( judicium accusationis ) ou juízo do sumário de culpa perante o juiz togado singular, que se inicia com o recebimento da denúncia por juiz togado ( ou queixa, na hipótese de ação penal privada subsidiária da pública ) e termina com a sentença de pronúncia, impronúncia ou absolvição sumária. O juiz pode ainda desclassificar o crime para um fora da competência do Júri e caso não seja competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja. 

2) A segunda fase, caso exista a pronúncia, é denominada judicium causae, terminando com o julgamento da causa em plenário no qual os jurados decidem sobre a matéria de fato e o juiz presidente decidirá sobre o quantum da sentença, caso os jurados decidam pela existência de crime.


Da imensa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ( STF ) sobre  a instituição do júri, devem ser ressaltadas:


1) a competência constitucional do foro por prerrogativa de função prevalece sobre a competência do Tribunal do Júri. Assim, crime doloso contra a vida cometido por juiz de direito, será julgado pelo seu Tribunal de Justiça ( TJ ).

2) A competência do Tribunal do Júri prevista na CF - 88 é mínima. A lei pode ampliar a competência do Júri, o que torna legítimo o julgamento pelo júri dos crimes conexos, tal qual preconiza o CPP.

3) Prevalência do Tribunal do Júri. A competência. A competência do Tribunal do Júri, por ser prevista na CF - 88, prevalece sobre a competência prevista somente na Constituição Estadual ( Súmula número Setecentos e vinte um do STF ).

4) Prevalência do Tribunal do Júri. A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecida exclusivamente pela Constituição Estadual ( STF, Súmula Vinculante número Quarenta e cinco );

5) A situação do corréu. Corréu que não tem foro por prerrogativa de função deve ser julgado pelo Tribunal do Júri, desmembrando-se o processo penal.

6) O caso do latrocínio. Para o STF, " a competência para o processo e julgamento de latrocínio é do juiz singular e não do Tribunal do Júri " ( Súmula número Seiscentos e três ) .

7) A Justiça Militar e o afastamento do Tribunal do Júri. Para o STF, é constitucional o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de militar em serviço pela justiça, castrense, sem a submissão destes crimes ao Tribunal do Júri, nos termos do Artigo Nono, Inciso Terceiro, Alínea d, do Código Penal Militar ( CPM ) ( Habeas Corpus número Noventa e um mil e três, Relatora Ministra Cármen Lúcia, julgado em Vinte e dois de maio de Dois mil e sete, Primeira Turma, Diário da Justiça de Três de agosto de Dois mil e sete ) .

8) A soberania relativa dos vereditos do Tribunal do Júri. A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri não é absoluta, sendo constitucionais os dispositivos que preveem a anulação da decisão do Júri sob o fundamento de que ela se deu de modo contrário à prova dos autos. Evita - se o arbítrio que é incompatível com o Estado de Direito 9 Habeas Corpus número Oitenta e oito mil setecentos e sete, relatora Ministra Ellen Gracie, julgado em Nove de setembro de Dois mil e oito, Segunda Turma, Diário da Justiça eletrônico de Dezessete de outubro de Dois mil e oito ) .

9) A nova competência da Justiça Militar. A Lei número Treze mil quatrocentos e novena e um / Dois mil e dezessete restringiu o alcance do Tribunal do Júri ao prever que, mesmo quando dolosos contra a vida de civil, serão da competência da Justiça Militar da União ( JMU ) quando praticados por militares ( somente das Forças Armadas ) nas seguinte situações:

a) do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ( PR ) ou pelo Ministro de Estado da Defesa ( MD );

b) de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, ainda que não beligerante; ou

c)de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária.

Nessa última hipótese se encaixam as mortes de civis causadas por militares das Forças Armadas nas chamadas " Operações de Garantia da Lei e da Ordem ( GLO ) ", vistas, por exemplo, no Rio de Janeiro.

10) A execução provisória da pena e a lei Anticrime. Há discussão em custo no STF sobre o cabimento da execução provisória da pena após a mera condenação pelo Tribunal do Júri. De um lado, há a corrente que defende ser inaceitável " a conclusão de que a soberania do veredicto do júri legitimaria a execução antecipada ou meramente provisória da condenação proferida, em primeira instância, pelo Conselho de Sentença " ( STF, Medida Cautelar no Habeas Corpus número Cento e setenta e quatro mil setecentos e cinquenta e nove, Relator Ministro Celso de Mello, decisão monocrática de Vinte de setembro de Dois mil e vinte ) . No plano legislativo, a Lei número Treze mil novecentos e sessenta e quatro deu nova redação ao Artigo número Quatrocentos e noventa e dois do CPP, determinando, no caso de condenação no Tribunal do Júri, a uma pena igual ou superior a Quinze anos de reclusão, que seja dado início imediato à execução provisória das penas ( Artigo número Quatrocentos e noventa e dois, Inciso Primeiro, Alínea e e seu Parágrafo Quarto, do CPP - cabe efeito suspensivo à apelação em hipóteses especialíssimas constantes do Parágrafo Quinto do mesmo Artigo ) ,

11) O in dubio pro societate. O critério de decisão do in dubio pro societate é tradicional na fase de pronúncia nos julgamentos submetidos ao Tribunal do Júri. Por tal critério, caso haja mínimo lastro probatório sobre os indícios de autoria, além da materialidade, a soberania constitucional dos julgados do Tribunal do Júri  exigirá que o réu fosse submetido ao Conselho de Sentença. Contudo, mesmo na fase da pronúncia, deve existir uma apreciação racional das provas coligidas, levando à preponderância de provas incriminadoras em face daquelas que são consistentes com a narrativa defensiva. Não se trata de exigir da acusação um standart probatório típico da condenação, mas que ao menos haja um " lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória " ( voto do Ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário com Agravo ( ARE ) número Um milhão sessenta e sete mil trezentos e noventa e dois ). Além disso, caso haja dúvida sobre a preponderância de provas ( existindo equilíbrio entre as que sustentam a tese acusatória e a tese defensiva ) , incide o critério de decisão do in dubio pro reo, estabelecido na consagração da presunção de inocência da CF - 88 ( Artigo Quinto, Cinquenta e sete ), em tratados internacionais de Direitos Humanos ( DH ) ( por exemplo, no Artigo Oito ponto Dois da Convenção Americana de DH - CADH - ) ( *2 vide nota de rodapé ) e também no CPP ( Artigos números Quatrocentos e treze e Quatrocentos e quatorze ) . Não se viola o princípio da soberania dos vereditos no Tribunal do Júri, uma vez que

a) a lógica do sistema bifásico ( pronúncia por juiz togado e julgamento final pelo corpo de jurados ) assegura um processo penal racional em um Estado Democrático de Direito ( EDD ) e

b) outra denúncia pode ser proposta, caso surjam novas provas incriminatórias " ( STF , Agravo no Recurso Extraordinário número Um milhão sessenta e sete mil Trezentos e noventa e dois, Segunda Turma, Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em Vinte e seis de março de Dois mil e dezenove - concessão de ordem de habeas corpus de ofício ) .

12) Apelação da Acusação em caso de absolvição pelo quesito genérico. No Brasil, o STF deve ainda decidir, no caso da absolvição do réu em resposta ao quesito genérico ( se o / a jurado / a absolve o / a acusado / a ) ter ocorrido em suposta contrariedade á prova dos autos, se o Acusador pode apelar e o tribunal de segunda instância pode determinar a realização de novo júri. Assim, se o júri é soberano e pode absolver por razão humanitária, clemência ou por puro sexismo ( *3 vide nota de rodapé ), racismo ( *4 vide notas de rodapé ) ou outra discriminação ( *5 vide nota de rodapé ) odiosa ( por exemplo, absolve homem que matou ex - mulher por ciúmes para "defesa  da honra " ), pode o Acusador apelar e o Tribunal determinar  novo julgamento, com base no Artigo número Quinhentos e noventa e três, Inciso Terceiro, do CPP ? A situação foi enfrentada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos ( Comissão IDH ) ( *6 vide nota de rodapé ) ( ver caso Roche Azaña e outros versus Nicarágua - *7 vide nota de rodapé ), para quem é necessário que exista recurso da Acusação, de modo a se preservar os direitos da vítima ou seus familiares á verdade e á justiça. Ramos ( *8 vide nota de rodapé ) entende que a " soberania dos veredictos "do júri não pode ser interpretada em termos absolutos, devendo ser compatibilizada com a igualdade ( paridade de armas ) e a preservação do papel da tutela penal dos DH em especial nos crimes dolosos contra a vida. Permitir, em especial nos casos envolvendo vulneráveis como no feminicídio ( *9 vide nota de rodapé ), homotransfobia e outros, que a absolvição não sofra algum crivo - mesmo que flagrantemente contrária às contrária às provas dos autos - , estimularia o uso de argumentos preconceituosos capazes de  gerar absolvição, perpetuando - se estereótipos inferiorizantes. Assim, há compatibilidade entre o quesito genérico ( Artigo número Quatrocentos e oitenta e três, Inciso terceiro, Parágrafo Segundo, do CPP ) e o cabimento da apelação pela Acusação nos casos de decisão manifestamente contrária às provas dos autos ( Artigo Quinhentos e noventa e três, Inciso terceiro, Inciso d, do CPP ) ( STF, Recurso Extraordinário com Agravo número Um milhão duzentos e vinte e cinco mil cento e oitenta e cinco - Tema Mil e oitenta e sete - repercussão geral - em trâmite em outubro de Dois mil e vinte ) .      


P.S.:


Notas de rodapé:


* A Magna Carta de Mil duzentos e quinze, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/02/direitos-humanos-liberdade-e-gozo-de.html .


*2 A Convenção  Americana de Direitos Humanos ( CADH ) é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-americana.html .


*3 A prevenção, punição ou erradicação do sexismo, no contexto dos Direitos Humanos, são melhora detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-visa.html .


*4 A vedação ao racismo, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-racismo-e-formas.html .


*5 A vedação à discriminação,  no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-discriminacao-e.html .


*6 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-comissao-examina.html .


*7 O caso Rche Azaña e outro versus Nicarágua, é melhor detalhado no caso número Oitenta e oito em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-corte-edita-mais-de.html .


*8 Ramos, André de Carvalho. Curso de direitos humanos / Oitava edição - São Paulo : Saraiva Educação, Dois mil e vinte e um. Mil cento e quarenta e quatro Páginas. Página Oitocentos e oitenta e quatro.


*9 A lei do feminicídio, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/05/direitos-humanos-o-direito-igualdade-e_24.html .  

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