Em um Estado de Direito, o acesso à Justiça ( * vide nota de rodapé ) é qualificada pela instituição do Poder Judiciário ( PJ ), que deve ter o compromisso com a aplicação das normas jurídicas de modo independente e sem medo de desagradar, inclusive aos demais órgãos e poderes do Estado.
A independência judicial é fundamental tanto para a correta aplicação das normas jurídicas quanto para a sua legitimação política. Não existe o império da norma, essência do Estado Democrático de Direito ( EDD ), sem que haja a confiança na independência dos julgadores e do próprio PJ.
A independência do PJ possui duas dimensões:
1) a dimensão substantiva ou decisional e
2) a dimensão garantia.
A dimensão substantiva consiste no reconhecimento da vinculação do juiz somente ao ordenamento jurídico, retratando uma verdadeira independência funcional, sem temores ou influências indevidas do poder econômico ou político. A dimensão garantia consiste no conjunto de mecanismos de proteção que asseguram aos julgadores a independência funcional, tais como a garantia do juiz natural, da imparcialidade do respeito - especialmente por parte dos demais Poderes - a suas decisões etc. A independência não é somente um atributo a ser preservado em um caso concreto e em relação a determinado julgador: há também a independência coletiva, que consiste na independência do PJ em seu conjunto frente aos demais Poderes do Estado, como expressão do princípio da separação das funções do poder em uma democracia ( *2 vide nota de rodapé ).
Por isso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ( Corte IDH ) ( *3 vide nota de rodapé ), ao analisar a destituição da Srª Maria Cristina Reverón Trujillo do cargo de juíza provisória no PJ venezuelano, entendeu que a independência do PJ relaciona-se com aspectos essenciais de um EDD, tais como a
1) separação das funções do poder e no
2) papel que cumpre a função judicial em uma sociedade democrática. Cabe ao Estado o dever de zelar pelo respeito à independência do PJ adotando medidas para fazer cumprir as deliberações judiciais, não desrespeitando - as ou adotando qualquer outro meio de ameaçar a independência funcional dos magistrados ( * 4 vide nota de rodapé ).
A garantia institucional da independência do PJ encontra abrigo no Artigo Oito ponto Um da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ( CADH ) ( *5 vide nota de rodapé ) ( toda pessoa tem direito a ser ouvida... por um juiz ou tribunal competente independente e imparcial... ) ( *6 vide nota de rodapé ).
Por sua vez, a existência de divergências entre os Poderes do Estado e entes extra poder ( como o Ministério Público - MP ) é resolvida por meio do acesso ao PJ, sob os mais variados instrumentos processuais. O Artigo Quinto, Inciso Trinta e cinco, da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito CF - 88 ) é claro ao dispor sobre a universalidade da jurisdição devendo todas as controvérsias ( inclusive as que impactem as instituições políticas ) serem solucionadas á luz do ordenamento vigente.
Contudo, em Dos mil e vinte, houve proposta de um novo modo de solucionar as divergências entre os Poderes: o recurso ao papel "moderador" das Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República ( PR ), e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa do qualquer destes, a dlei e da ordem " .
Com base nesse dispositivo e a partir de decisão do Ministro Alexandre de Moraes ( impedindo a posse de Direitos do Departamento da Polícia Federal - DPF - indicado pelo PR Jair Messias Bolsonaro ( do Partido Liberal - PL - * 7 vide nota de rodapé ), Ives Gandra Martins assinala que, sem entrar no mérito da decisão monocrática ( se cabe ou não determinação judicial impedindo a posse de Diretor-Geral do DPF ), existiria perigo à harmonia e independência dos Poderes, podendo tal questão ser levada às Forças Armadas " para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no Artigo Cento e quarenta e dois da CF - 88." ( * 8 vide nota de rodapé ) .
Tal proposta traz como premissa que uma decisão judicial do Supremo Tribunal Federal ( STF ) pode trazer risco à lei e à ordem, sem levar em consideração que a própria CF - 88 reserva ao PJ o papel de interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais. Ou seja, a decisão judicial reafirma o conteúdo da norma jurídica ( não podendo pôr em risco a lei e a ordem... ), não cabendo aos chefes do demais Poderes descumprir a decisão, alegando que a interpretação, foi equivocada ou abusiva, aniquilando a essência da independência da função judicial .
As Forças Armadas brasileiras têm como autoridade suprema o PR, sendo seus comandantes indicados pelo próprio. A tese do uso do "Artigo Cento e quarenta e dois da CF - 88 " implica em reconhecer que o PR é o intérprete final das normas constitucionais e legais, podendo descumprir decisão judicial, caso seus subordinados ( os comandantes das Forças Armadas ) entendam que há risco à lei e à ordem. Obviamente, se tal poder for conferido algum dia ao PR, fica desnaturada a própria independência do PJ e sua função de interpretação da norma jurídica .
Usar o aparato militar para superar interpretações jurídicas dadas pelo PJ viola frontalmente a CF - 88 e os tratados internacionais ( *9 vide nota de rodapé ), na medida em que transfere o poder de interpretar a norma jurídica ( caso a decisão judicial desagrade ) do PJ aos comandos militares. Sem PJ, não há como assegurar a proteção, de modo independente ( *10 vide nota de rodapé ), da democracia e dos Direitos Humanos ( DH ) .
P.S.:
Notas de Rodapé:
* O direito de acesso à justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/10/direitos-humanos-o-direito-de-acesso.html .
*2 Díez-Picazo, Luís María. Notas de derecho comparado sobre la indenpendencia judicial. Revista Espeñola de Derecho Constitucional, número Trinta e quatro, enero-abril Mil novecentos e noventa e dois, Páginas Dezenove a Trinta e nove, em especial Páginas Dezenove a Vinte e um.
*3 A Corte Interamericana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .
*4 Corte IDH, Caso Reverón Trujillo versus Venezuela, sentença de Trinta de junho de Dois mil e ove, Parágrafo Cento e quarenta e seis. Resumo do caso em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-corte-edita-mais-de.html . Caso número Vinte e cinco.
*5 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-americana.html .
*6 Voto concorrente do Juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot. Corte IDH, Caso Corte Suprema de Justicia ( Quintana Coello y Otros ) versus Equador, sentença de Vinte e três de agosto de Dois mil e treze, Parágrafo Cinquenta e quatro.
*7 Supremo Tribunal Federal ( STF ), mandado de Segurança número Trinta e sete mil e noventa e sete, Relator Ministro Alexandre de Moraes, decisão monocrática de Vinte e nove de abril de Dois mil e vinte .
*8 Martins, Ives Gandra da Silva. harmonia e independência dos poderes? Consultor Jurídico - Conjur, Dois de maio de Dois mil e vinte, Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-mai-02/ives-gandra-harmonia-independencia-poderes > . Acesso em Treze de setembro de Dois mil e vinte .
*9 A vinculação interna versus externa dos tratados internacionais, no contexto dos Direitos Humanos é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/02/direitos-humanos-vinculacao.html .
*10 A independência dos poderes, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/02/direitos-humanos-doutrinas-e_22.html .
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