sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Direitos Humanos: a homotransfobia equiparada a racismo

Em linha com o conceito amplo de racismo ( * vide nota de rodapé ), o Supremo Tribunal Federal ( STF ) inseriu a homotransfobia como forma de racismo ( *2 vide nota de rodapé ), criminalizando a conduta á luz da Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove em duas ações que tratavam da omissão do Congresso Nacional ( CN ) legisle especificamente sobre a discriminação por orientação de gênero e identidade de gênero ( *3 vide nota de rodapé ).


No mandado de Injunção número Quatro mil setecentos e trinta e três, o Relator, Ministro Fachin, afirmou  que a mora legislativa é ainda mais grave se for considerado que, nas Américas, o Brasil é o país onde mais ocorreram relatos de violência contra a população LGBTQIA+, conforme Relatório " Violência contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneras e Intersexuais nas Américas " da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ( Comissão IDH ) ( *4 vide nota de rodapé ) ( *5 vide nota de rodapé ). Por sua vez, o Comentário Geral número Vinte do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais aduz  que os Estados devem garantir que a orientação  sexual de uma pessoa não seja uma barrira para a realização dos direitos da Convenção Americana de Direitos Humanos ( CADH ) ( *6 vide nota de rodapé ). Também mereceu citação do Relator Ministro


1) o Princípio número Um de Yogyakarta,

2) a Opinião Consultiva número Vinte e quatro ( *7 vide nota de rodapé ) da Corte IDH ( *8 vide nota de rodapé ),

3) A Declaração e Programa de Viena ( *9 vide nota de rodapé ).


Conclui o relator estabelecendo que " toda pessoa deve ser protegida contra qualquer ato que atinja sua dignidade " e, assim não se pode tolerar tanto a discriminação baseada na cor, etnia, religião ou procedência nacional quanto as praticadas " em virtude de preconceito a homossexuais ou transgênero " .


Por sua vez, o Ministro Celso de Mello considerou, como premissa, que há um mandado de criminalização no que pertine toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais ( Artigo quinto, Inciso Quarentae um da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito - CF  - 88 ). Por isso, para Celso de Mello, a omissão do Congresso nacional ( CN ) em tipificar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero implica a aceitação de que o sofrimento e a violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersexual é tolerada ou não gera a reação devida.


Por se tratar de condutas com a mesma vocação de violar a dignidade humana ( *10 vide nota de rodapé ) pela prática da discriminação odiosa ( *11 vide nota de rodapé ), o STF julgou procedente o mandado de injunção para


1) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional ( CN ); e

2) aplicar com efeitos prospectivos, até que o CN venha a legislar a respeito, a Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação de gênero ou identidade de gênero ( STF, Mandado de Injunção número Quatro mil setecentos e trinta e três, Relator Ministro Edson Fachin, julgado em treze de junho de Dois mil e dezenove ) .


Já na Ação Direta de Inconstitucionalidade ( ADO ) por Omissão número Vinte e seis, o Relator Ministro Celso de Mello, enfatizou a " configuração de atos homofóbicos e transfóbicos como formas contemporâneas do racismo - e, nessa condição, subsumíveis à tipificação penal constante da Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove - objetiva fazer preservar - no processo de formação de uma sociedade sem preconceitos de origem, raça, gênero, cor, idade ( *12 vide nota de rodapé ) e quaisquer outras formas de discriminação ( CF - 88, Artigo Terceiro, Inciso Quarto ) - a incolumidade dos direitos da personalidade, como a essencial dignidade da pessoa humana, buscando inibir, desse modo, comportamentos abusivos que possam, impulsionados por inadmissíveis intolerância, o ódio público contra outras pessoas em razão de sua orientação de gênero ou de sua identidade de gênero " ( STF, ADO número Vinte e seis, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em Treze de junho de Dois mil e dezenove ) .


A posição divergente, minoritária, pode ser resumida no voto do Ministro Lewandowski, que, em que pese ter se posicionado contra a atual mora congressual ( optando por fixar prazo para a edição de lei formal ), entendeu que a extensão do tipo penal para abarcar situações não especificamente tipificadas pela norma penal incriminadora ofenderia o princípio da reserva legal em matéria penal ( *13 vide nota de rodapé ), cuja finalidade é assegurar a segurança jurídica ( *14 vide nota de rodapé ) ( STF, ADO número Vinte e seis, voto do Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em Treze e junho de Dois mil e dezenove ) .


Assim, por maioria, o STF deu provimento ao Mandado de Injunção para


1) reconhecer a mora inconstitucional do CN e;

2) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o CN venha a legislar a respeito, a Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação por orientação de gênero ou identidade de gênero .


No mesmo sentido, o STF também por maioria, julgou parcialmente procedente a ADO número Vinte e seis, reconhecendo e ordenando a cientificação do CN sobre sua mora inconstitucional. Decidiu, por maioria, fixar a seguinte tese:


1) Racismo e homotransfobia: o " racismo homotransfóbico " . O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente bilógicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico - cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável ( LGBTQIA+ ) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito .

2) Racismo na dimensão social e uso temporário dos crimes previstos na Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove. Até que sobrevenha lei emanada do CN destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos Incisos Quarenta e um e Quarenta e dois do Artigo quinto da CF - 88, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de ração e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe 9 Código Penal - CP, Artigo número Cento e vinte e um, Parágrafo, Primeiro, in fine ) ;

3) Ausência de repressão penal à liberdade religiosa ( *15 vide nota de rodapé ). A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, sendo assegurado o direito de pregar e divulgar o seu pensamento e de externar suas convicções, podendo  buscar e conquistar prosélitos.

4) Liberdade religiosa não abarca o discurso de ódio. As manifestações de convicções religiosas não podem configurar discurso de ódio, sob pena de repressão penal, que são aquelas exteriorizações que incitem 

a) a discriminação,

b) a hostilidade ou

c) a violência contra pessoas em razão de sua orientação de gênero ou de sua identidade de gênero 9 STF , ADO número Vinte e seis, voto do Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em Treze de junho de Dois mil e dezenove ) .


Em síntese, os argumentos da maioria do STF na ADO número Vinte e seis e no Mandado de Injunção ( MI ) número Quatro mil setecentos e trina e três podem ser assim reunidos e sintetizados:


1) foi reconhecida a intensidade da mora do CN e a ausência de perspectiva de proteção criminal da homotransfobia, mais de Trinta anos após a edição da CF - 88;

2) houve menção às graves estatísticas sobre a violência por homotransfobia no Brasil, realçando a necessidade de uma intervenção penal específica na temática;

3) apontou-se a violação da CF - 88 pela omissão e a necessidade de dar utilidade à ADO e ao MI, que não podem gerar tão somente um pedido ao Poder Legislativo para que este legisle, em especial em uma situação na qual há mínima possibilidade de sensibilização do CN sobre a gravidade da situação de risco dos integrantes de grupo vulnerável ( LGBTQIA+ );

4) não se desconhece o princípio da reserva de lei formal em matéria penal, mas, ao mesmo tempo, prevalece a busca de concessão de efeito ao combate à omissão, em especial diante das graves violações aos direitos e á dignidade daqueles discriminados por sua orientação de gênero e pela sua identidade de gênero.

5) o racismo em sua dimensão social abarca o racismo homotransfóbico, pois se busca discriminar por motivo odioso, amesquinhando a dignidade e desrespeitando direitos básicos daqueles que são considerados diferentes e do grupo hegemônico. Combate-se a proteção deficiente ( *16 vide nota de rodapé ) dos Direitos Humanos ( DH ) e se cumpre o mandado de criminalização da CF - 88 ( Artigo Qunto, Inciso Quarenta e um ). Assim, em uma ponderação de direitos, o uso temporário dos tipos penais da Lei número Sete mil setecentos e dezesseis / Mil novecentos e oitenta e nove, até que o CN legisle, é proporcional e respeita a proteção a grupos vulneráveis que se espera do Estado Democrático de Direito ( EDD ) .         


P.S.:


Notas de rodapé:


* O conceito amplo de racismo, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/10/direitos-humanos-o-direito-igualdade-e_26.html .


*2 A vedação ao crime de racismo, no contexto dos Direitos Humanos, melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-racismo-e-formas.html .


*3 a vedação á discriminação por orientação de gênero e identidade de gênero, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/06/direitos-humanos-aplicacao-do-direito.html .


*4 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos ( Comissão IDH ) é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-comissao-edita-medidas.html .


*5 Disponível em: < http://www.oas/pt/cidh/docs/pdf/ViolenciaPessoasLGBTI.pdf > . Acesso em: Quinze de setembro de Dois mil e vinte .


*6 A Convenção Americana de Direitos Humanos ( CADH ) é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-americana.html .


*7 As opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos ( Corte IDH ) são melhor detalhadas em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-os-pareceres.html .


*8 A Corte Interamericana de Direitos Humanos ( Corte IDH ) é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .


*9 A Declaração e Programa de Ação de Viena, no contexto dos Direitos Humanos, são melhor detalhadas em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-alto-comissariado-foca.html .


*10 o direito à dignidade humana, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-dignidade-humana-e.html .


*11 A vedação à discriminação,  no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-discriminacao-e.html .


*12 A vedação ao preconceito por idade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/03/direitos-humanos-conselho-elabora.html .


*13 O princípio da reserva legal em matéria penal, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_7.html .


*14 O direito à segurança jurídica, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/10/direitos-humanos-o-direito-seguranca.html .


*15 O direito à liberdade religiosa, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/04/direitos-humanos-doutrinas-e_31.html .


*16 A vedação à proteção insuficiente aos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/04/direitos-humanos-proibicao-da-protecao.html .

Nenhum comentário:

Postar um comentário