segunda-feira, 21 de março de 2022

Direitos Humanos: a vedação ao retrocesso dos DH

Os Direitos Humanos ( DH ) caracterizam-se pela existência da proibição do retrocesso, também chamada de "efeito cliquet", princípio do não retorno da concretização ou princípio da proibição da evolução reacionária, que consiste na vedação da eliminação da concretização ou princípio da proibição da evolução reacionária, que consiste na vedação da eliminação da concretização já alcançada na proteção de algum direito, admitindo-se somente aprimoramentos e acréscimos. É o já famoso slogan "Nenhum direito a menos.... Só direitos a mais!".


Outra expressão utilizada pela doutrina é o entrenchment ou entrincheiramento, que consiste na preservação do mínimo já concretizado dos direitos fundamentais ( * vide nota de rodapé ), impedindo o retrocesso, que poderia ser realizado pela supressão normativa ou ainda pelo amesquinhamento ou diminuição de suas prestações à coletividade ( *2 vide nota de rodapé ).


Há diferença entre a proibição do retrocesso e a proteção contra efeitos retroativos: este é proibido por ofensa ao ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido. A vedação do retrocesso é distinta: proíbe as medidas de efeitos retrocessivos, que são aquelas que objetivam a supressão ou diminuição da satisfação de um dos DH. Abrange não somente os direitos sociais ( *3 vide nota de rodapé ) ( a chamada proibição do retrocesso social ), mas todos os DH, que, são indivisíveis ( *4 vide nota de rodapé ).


No Brasil, a proibição do retrocesso é fruto dos seguintes dispositivos constitucionais


1) Estado democrático de Direito ( Artigo Primeiro, Caput );

2) dignidade da pessoa humana ( Artigo Primeiro, Inciso Terceiro ) ( *5 vide nota de rodapé );

3) aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais ( Artigo Quinto, Parágrafo Primeiro );

4) proteção da confiança e segurança jurídica ( Artigo Primeiro, Caput, e ainda Artigo Quinto, Inciso Trinta e seis - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada ) e

5) claúsula pétrea prevista no Artigo Sessenta, Parágrafo Quarto, Inciso Quarto ( *6 vide nota de rodapé ).


A proibição de retrocesso é característica também da proteção internacional dos DH, pois, "cristalizou-se no plano internacional, a chamada proibição do retrocesso, pela qual é vedado aos Estados que diminuam ou amesquinhem a proteção já conferida aos DH. Mesmo novos tratados internacionais não podem impor restrições ou diminuir a proteção de DH já alcançada" ( *7 vide nota de rodapé ).


A proibição de retrocesso não representa, contudo, uma vedação absoluta a qualquer medida de alteração da proteção de um direitos específico. Por exemplo, podem ser constitucionais as alterações nas regras da entrada dos servidores públicos para a inatividade que façam frente ao crescimento da expectativa de vida. A inalterabilidade destas regras levaria o Estado a destinar mais recursos a este direitos social, diminuindo-se a proteção de outros direitos. Em Dois mil e dezessete ( já depois do golpe de Estado de Dois mil e dezesseis ), nas discussões sobre a reforma da previdência dos trabalhadores do setor privado ( Regime Geral de Previdência Social- RGPS ) e dos servidores públicos ( Regime Próprio de Previdência Social - RPPS ), a inexistência ou insuficiência de regras de transição adequadas aos que já estavam vinculados ao sistema previdenciário pode violar a proibição do retrocesso, coso venha a se constatar a vulneração desproporcional da igualdade ( tratando igualmente os desiguais, ou seja, aqueles que já contribuíram por anos com aqueles que ainda irão ingressar no mercado de trabalho ) ou do direito à segurança jurídica na sua faceta da proibição da surpresa.


Assim, há três condições para que eventual diminuição na proteção normativa ou fática de um direito seja permitida:


1) que haja justificativa também de estatura jusfundamental;

2) que tal diminuição supere o crivo da proporcionalidade e

3) que seja preservado o núcleo essencial ( *8 vide nota de rodapé ) do direito envolvido.


São identificadas cinco subespécies da proibição do retrocesso já reconhecidas no Supremo Tribunal Federal ou em debate:


1) Vedação do retrocesso social


O Ministro Celso de Mello sustentou que "o postulado da proibição do retrocesso social, cuja eficácia impede - considerada a sua própria razão de ser - sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão, que não pode ser despojado, por isto mesmo, em matéria de direitos sociais, no plano das liberdades reais, dos níveis positivos de concretização por ele já atingidos". Depois, o Ministro Celso de Mello apontou que "em realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização destas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses - de todo inocorrente na espécie - em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais" ( Mandado de Segurança número Vinte e quatro mil oitocentos e setenta e cinco, julgado em Onze de maio de Dois mil e seis, Pleno ( *9 vide nota de rodapé ). Para a Ministra Cármem Lúcia, que foi relatora de Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre a reforma da Previdência Social ( julgada improcedente ), a proibição do retrocesso só seria aplicada se a aposentadoria, enquanto direito social, fosse abolida, mas não seria o caso de invocá-la no caso de mudança dos critérios para aposentadoria tão somente ( Ação Direta de Inconstitucionalidade número Três mil cento e sessenta e quatro, relatora Ministra Cármem Lúcia, julgada em Vinte e seis de setembro de Dois mil e sete, Plenário, Diário da Justiça de Nove e novembro de Dois mil e sete ).


2) Vedação do retrocesso político


Em Dois mil e onze, o STF decidiu suspender o Artigo Quinto da Lei número Doze mil e trinta e quatro / Dois mil e nove que dispunha sobre a volta do "voto impresso". Para a Ministra Cármem Lúcia, a proibição de retrocesso político-constitucional impede que direitos conquistados ( como o da garantia de voto secreto pela urna eletrônica ) retroceda para dar lugar a modelo superado ( voto impresso ) exatamente pela sua vulnerabilidade ( Ação Direta de Inconstitucionalidade número quatro mil quinhentos e quarenta e três - Minas Gerais, relatora Ministra Cármem Lúcia, julgada em Dezenove de outubro de Dois mil e onze, Plenário ). Em Dois mil e dezoito, o STF voltou a considerar inconstitucional a impressão do voto. Foi suspenso o Artigo Cinquenta e nove - A da Lei número Nove mil quinhentos e quatro / Mil novecentos e noventa e sete, incluído pela Lei número Treze mil cento e sessenta e cinco / Dois mil e quinze ( Lei da Minirreforma Eleitoral ), o qual determinava que, mantida a votação eletrônica, deveria cada voto ser impresso e depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado. De acordo com o Parágrafo Único do mesmo dispositivo, o processo de votação não seria concluído até que o eleitor confirmasse a correspondência entre o teor de seu voto eletrônico ), significando retrocesso ao modelo do voto eletrônico puro, pois permitiria a identificação de quem votou, diminuindo a liberdade de votar ( Ação Direta de Inconstitucionalidade número Cinco mil oitocentos e oitenta e nove / Distrito Federal, relator originário Ministro Ministro Gilmar Mendes, relator para o acórdão Ministro Alexandre de Moraes, julgada em Seis de junho de Dois mil e dezoito ). Em Dois mil e vinte, o STF repudiou em definitivo a reintrodução do voto impresso, declarando a inconstitucionalidade do Artigo Cinquenta e nove - A e parágrafo Único da Lei número Nove mil quinhentos e quatro / Mil novecentos e noventa e sete ( na redação dada pela Lei número Treze mil cento e sessenta e cinco / Dois mil e quinze ). Para o STF, a impressão do voto pelo modo previsto na legislação impugnada violaria a liberdade e o sigilo do voto, tendo o Ministro Gilmar mendes ajustado seu voto a favor da inconstitucionalidade ( Ação Direta de Inconstitucionalidade número Cinco Mil oitocentos e oitenta e nove / Distrito Federal, relator Ministro Gilmar Mendes, julgada em Quinze de setembro de Dois mil e vinte ).


3) Vedação do retrocesso civil


Em Dois mil e dezessete, o STF decidiu que o Código Civil ( CC ) de Dois mil e dois não poderia desigualar a proteção sucessória conferida pelas Leis números Oito mil novecentos e setenta e um / mil novecentos e noventa e quatro e a número Nove mil duzentos e setenta e oito / Mil novecentos e noventa e seis aos companheiros. Para o Ministro Barroso, o referido CC foi anacrônico e representou um retrocesso vedado pela Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) na proteção legal das famílias constituídas pela união estável" ( voto do Ministro Barroso no Recurso Extraordinário número Oitocentos e setenta e oito mil seiscentos e noventa e quatro / Minas Gerais, relator Ministro Roberto Barroso, julgado em Dez de maio de Dois mil e dezessete ). A tese fixada pelo STF ( repercussão geral ) estabelece que "é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no Artigo Mil setecentos e noventa do referido CC, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do Artigo Mil oitocentos e vinte e nove do referido CC" ( Recurso Extraordinário número Oitocentos e setenta e oito mil seiscentos e noventa e quatro / Minas Gerais, relator Roberto Barroso, julgado em Quinze de setembro de Dois mil e vinte ).


4) Vedação do retrocesso institucional


o Decreto número Nove mil oitocentos e trinta e um, de Onze de junho de Dois mil e dezenove, remanejou onze cargos de perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT ( *10 vide nota de rodapé ) para outra área do poder Público federal, exonerando os seus ocupantes, e determinando que a participação no referido MNPCT seria considerada doravante "prestação de serviço público relevante, não remunerada". A Procuradoria-Geral da República ( PGR ) ingressou com arguição de descumprimento de preceito fundamental ( ADPF ) contra tal modificação no MNPCT, alegando vedação á proibição do retrocesso institucional. De fato, a medida teve caráter regressivo do ponto de vista institucional, na medida em que esvaziou significativamente o MNPCT, órgão essencial para o combate à prática de tortura e demais tratamentos  degradantes ou desumanos em ambientes de detenção e custódia coletiva de pessoas, ao transformar o MNPCT, antes profissional, em trabalho voluntário e precário. Reduziu-se o âmbito de proteção normativa ao direito de não submissão à tortura ou tratamentos e penas cruéis e degradantes de pessoas sob custódia do Estado, configurando ofensa ao princípio da vedação do retrocesso institucional ( petição inicial da PGR, ADPF número Seiscentos e sete, relator Ministro Luiz Fux, em trâmite em setembro de Dois mil e vinte ).


5) Vedação do retrocesso ecológico


O princípio da proibição de retrocesso ecológico ou socioambiental é fruto da tutela constitucional ( Artigo Duzentos e vinte e cinco da CF - 88 ) ( *11 vide nota de rodapé ) e internacional do meio ambiente ( Protocolo de San Salvador e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - *12 vide nota de rodapé - , entre outros ), que restringe a discricionariedade do legislador ( Estado-legislador ) na adoção de medidas contrárias á proteção ambiental, bem como impede que haja regresso no que tange à estrutura organizacional do Estado ( recursos humanos e materiais ) voltada à implementação de políticas públicas. A proibição do retrocesso ecológico evita uma atuação legislativa e administrativa inexistente ou insuficiente na promoção do direito ao meio ambiente, sendo também faceta da proibição da proteção deficiente dos DH". O STF reconheceu já a proibição do retrocesso socioambiental, exigindo a avaliação da proporcionalidade e do respeito ao núcleo essencial dos direitos ecológicos por parte de novas medidas restritivas adotadas pelo Poderes Públicos 9 STF, Ação Direita de Inconstitucionalidade número Quatro mil setecentos e dezessete / Distrito Federal, relatora Ministra Cármen Lúcia, julgada em Cinco de abril de Dois mil e dezoito, Diário da Justiça eletrônico de Quinze de fevereiro de Dois mil e dezenove ).


Quadro Sinótico


Proibição do retrocesso ( "efeito cliquet" )


"Efeito cliquet" ou princípio do não retorno da concretização


Consiste na vedação da eliminação da concretização já alcançada na proteção de algum direito, admitindo-se somente de aprimoramentos e acréscimos.


Entrenchment ou entrincheiramento


Consiste na preservação do mínimo já concretizado dos direitos fundamentais, impedindo o retrocesso, que poderia ser realizado pela supressão normativa ou ainda pelo amesquinhamento ou diminuição de suas prestações à coletividade.


Proteção contra efeitos retroativos


Este é proibido por ofensa ao ato jurídico perfeito, a coisa julgada e ao direito adquirido. Difere da vedação ao retrocesso, que proíbe as medidas de efeitos retrocessivos, que são aquelas que objetivam a supressão ou diminuição da satisfação de um dos DH.


Fundamentos da CF - 88 para proibição do retrocesso


1) Estado Democrático de Direito;

2) dignidade da pessoa humana;

3) aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais;

4) proteção da confiança e segurança jurídica ( a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada ) e

5) cláusula pétrea prevista no Artigo Sessenta, Parágrafo Quarto, Inciso Quarto.


Condições para que eventual diminuição na proteção normativa ou fática de um direito seja permitida


1) que haja justificativa também de estatura jusfundamental;

2) que tal diminuição supere o crivo da proporcionalidade e

3) que seja preservado o núcleo essencial do direito envolvido.


A proteção de retrocesso não representa uma vedação absoluta a qualquer medida de alteração da proteção de um direito específico. 

     


P.S.:


Notas de rodapé:


* A diversidade terminológica referente aos Direitos Humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-as-terminologias-utilizadas-ao-longo-da-hist%C3%B3ria-dos-dh .


*2 Agra, Walber de Moura. O entrenchment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: Tavares, André Ramos ( Coordenador ). Justiça constitucional: pressupostos teóricos e análises concretas. Belo Horizonte: Fórum, Dois mil e sete.


*3 Os direitos sociais no contexto dos Direitos Humanos são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-articula%C3%A7%C3%A3o-com-os-sistema-sociais-como-forma-de-combater-a-exclus%C3%A3o .


*4 A indivisibilidade como característica dos Direitos Humanos, é melhor contextualizada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-classifica%C3%A7%C3%A3o-dos-dh-de-acordo-com-a-forma-de-reconhecimento .


*5 O princípio da dignidade da pessoa humana no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-princ%C3%ADpio-da-dignidade-humana-no-contexto-dos-dh e

https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-dignidade-humana-e-a-jurisprud%C3%AAncia .


*6 Sarlet, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos direitos sociais num contexto de crise. Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC. São Paulo, número Quatro, Páginas Duzentos e quarenta e um a Duzentos e setenta e um. Julho / dezembro de Dois mil e quatro.


*7 Carvalho Ramos, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Sétima edição. São Paulo: Saraiva, Dois mil e dezenove, em especial a Página Duzentos e noventa e um.


*8 O núcleo essencial dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-direitos-considerados-indispens%C3%A1veis e

https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-valores-essenciais-retratados-nas-constitui%C3%A7%C3%B5es .


*9 Voto do Ministro Celso de Mello, STA número Cento e setenta e cinco - Agravo Regimental / Ceará, Informativo do STF número Quinhentos e oitenta e dois, abril de Dois mil e dez, Ver também o seu voto vencido da Ação Direta de Inconstitucionalidade número Três mil cento e cinco, relator para o acórdão Ministro Cezar Peluso, julgado em Dezoito de agosto de Dois mil e quatro, Diário da Justiça de Dezoito de fevereiro de Dois mil e cinco.


*10 O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate á Tortura, no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-sistema-e-mecanismo-de-combate-%C3%A0-tortura-previstos-em-lei-no-brasil .


*11 O direito a uma meio ambiente limpo e equilibrado no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .


*12 O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ( PIDESC ) é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-direitos-econ%C3%B4micos-sociais-e-culturais-no-brasil .


Mais em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-veda%C3%A7%C3%A3o-ao-retrocesso-dos-dh-1 .

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