segunda-feira, 28 de março de 2022

Direitos Humanos: os falsos conflitos de direitos e a teoria interna

A primeira fórmula de superação dos conflitos aparentes entre Direitos Humanos ( DH ) é o uso da interpretação sistemática e finalística, que determinaria o verdadeiro conteúdo dos direitos envolvidos e a adequação deste conteúdo à situação fática analisada. Este modo de solução de conflitos entre direitos ( *12 vide nota de rodapé ) é denominado "teoria interna" ( * vide nota de rodapé ), já que os conflitos são superados pela determinação do verdadeiro conteúdo interno dos direitos envolvidos. Assim, o conflito teria sido meramente aparente: um dos direitos envolvidos não deve ser aplicado ao caso concreto porque este direito nunca realmente incidiu sobre a situação fática.


A teoria interna, então, defende a existência de limites internos a todo direito, quer estejam trançados ( *2 vide nota de rodapé ) expressamente no texto da norma, quer imanentes ou inerentes a determinado direito, que faz com que não seja possível um direito colidir com outro ( *3 vide nota de rodapé ).


No caso do limite expresso ou aparente, o direito fundamental ( *4 vide nota de rodapé ) traz, em seu texto, a própria ressalva que o exclui da aplicação no caso concreto, como, por exemplo, a liberdade de expressão ( *5 vide nota de rodapé ) que exclui o anonimato. Quanto ao limite imanente, trata-se do poder do intérprete ( *6 vide nota de rodapé ) de reconhecer qual é a estrutura e finalidades ( *7 vide nota de rodapé ) do uso de determinado direito, delimitando-o. O clássico exemplo de limite imanente é o do homem que grita falsamente "fogo" em uma sala de cinema lotada, violando com sua conduta a integridade física ( *8 vide nota de rodapé ) daqueles que foram pisoteados pelo pânico gerado. A liberdade de expressão nunca teria incidido, pois ela não alberga a conduta de gritar "fogo" falsamente em um cinema lotado. Nunca existiu conflito entre direitos, pois aquele que assim agiu, atuou sem amparo de qualquer direito, pois a liberdade de expressão não protege este tipo de conduta abusiva ( *9 vide nota de rodapé ). Como se viu, a teoria interna nega os conflitos entre DH. Virgílio Afonso da Silva lembra a máxima do direito francês, que sintetiza o âmago da teoria interna: "o direito cessa onde o abuso começa" ( *10 vide nota de rodapé ).


A teoria interna impõe ao intérprete que conheça a natureza, estrutura, finalidades do direito em análise, para que possa bem delinear seu âmbito de atuação. todo o que estiver fora do âmbito de atuação daquele direito é, na realidade, uma conduta desprovida de amparo da ordem jurídica.


Em linha com a teoria interna está a Teoria Estruturante do Direito de Friederech Muller ( também chamada de "metódica normativa-estruturante" ), que defende a separação entre programa da norma ( ou programa normativo ) e âmbito da norma ( ou âmbito normativo ). Para Muller, a aplicação do direito não é um tradicional processo de subsunção do fato a determinada norma preexistente e sim um processo de concretização da norma a partir do texto e da realidade social. A interpretação de concretização da norma a partir do texto e da realidade social. A interpretação inicia-se com análise da linguagem e finalidade do texto gerando o chamado "programa da norma". Em seguida, o aplicador deve se atentar ao "âmbito normativo", que é composto dos dados da realidade abrangida pelo programa da norma: a união do programa da norma aos dados da realidade ( âmbito normativo ) gera a norma jurídica incidente ( *11 vide nota de rodapé ). No exemplo do "gritar falsamente fogo" em um cinema lotado, vê-se que há um suposto fático que não está abrangido pelo programa da norma ( liberdade de expressão ), que é a falsidade e o desejo de criar pânico. Assim, em que pese o exemplo apresentado possuir determinado dado da realidade abrangido pelo programa da norma ( gritar falsamente ), não sendo então a citada conduta protegida pela liberdade de expressão.


Em síntese, a teoria dos limites internos dos DH defende que as restrições a tais direitos devem estar expressamente autorizadas pela Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) e pelos tratados de DH, ou, ainda, devem ser extraídas dos limites imanentes de cada direito. A delimitação de cada direito será realizada por meio da apreciação tanto da redação do direito quanto também dos dados da realidade social sobre a qual o texto incide. O resultado do uso da teoria interna é singelo: ou a situação fática é albergada no âmbito de incidência de um DH, ou não é albergada e consequentemente não há direito algum a ser invocado.


A defesa da teoria interna sustenta que seu uso evita uma explosão do número de falsas colisões entre DH e a consequente insegurança jurídica sobre qual direito prevalecerá em determinada situação.


No Supremo Tribunal Federal ( STF ), há precedentes nos quais está clara a ideia de combate às pseudocolisões ou falsas colisões de direitos, como se vê na seguinte decisão do Ministro Gilmar Mendes: "Assinale-se que a ideia de conflito ou de colisão de direitos individuais ( *12 vide nota de rodapé ) comporta temperamentos. É que nem tudo que se pratica no suposto exercício  de determinado direito encontra abrigo no seu âmbito de proteção. Destarte, muitas questões tratadas como relações conflituosas de direitos individuais configuram conflitos aparentes, uma vez que as práticas controvertidas desbordam da proteção oferecida pelo direito fundamental em que se pretende buscar abrigo" ( Extradição número Oitocentos e noventa e seis, relator Ministro Carlos Veloso, decisão monocrática proferida pelo Ministro Presidente Gilmar Mendes, julgado em Onze de julho de Dois mil e oito, Diário da Justiça eletrônico de Cinco de agosto de Dois mil e oito. No caso Ellwanger no STF, apesar de muitos votos terem feito referência à proporcionalidade ( teoria externa ), constou do acórdão passagem típica de uma teoria interna, ao se defender que "O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. ( ... ) O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra" ( Habeas Corpus número Oitenta e dois mil quatrocentos e vinte e quatro, relator para o acórdão Ministro Presidente Maurício Corrêa, julgado em Dezessete de setembro de Dois mil e três, Plenário, Diário da Justiça de Dezenove de março de Dois mil e quatro ).


A maior fragilidade da teoria interna está justamente na dificuldade do intérprete delimitar, com argumentos racionais, o conteúdo dos direitos em análise, traçando seus limites, sem que ele seja também acusado de "arbitrário". Como aponta Novais, a coerência de que goza a doutrina dos limites ( fruto da teoria interna ) é meramente formal e possui o imenso defeito de "esconder" o jogo de valores opostos em disputa, sob o manto dos limites prestabelecidos em cada direito ( *13 vide nota de rodapé ).  


P.S.:


Notas de rodapé:


* Alexy, robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo. Malheiros, Dois mil e oito.


*2 A interdependência, como característica dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-indivisibilidade-e-a-indissociabilidade-como-caracter%C3%ADsticas-dos-dh .


*3 A eventual ocorrência de colisão entre Direitos Humanos é melhor abordada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-efetividade-como-crit%C3%A9rios-de-interpreta%C3%A7%C3%A3o-dos-dh .


*4 A diversidade terminológica referente aos Direitos Humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-as-terminologias-utilizadas-ao-longo-da-hist%C3%B3ria-dos-dh


*5 O direito à liberdade de expressão e a vedação da censura prévia são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-39 .


*6 A intepretação dos Direitos Humanos é melhor detalhada em:


a) https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-interpreta%C3%A7%C3%A3o-de-um-dh-conforme-os-demais-dh e

b) https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-interpreta%C3%A7%C3%A3o-jur%C3%ADdica-evitando-pendores-pessoais-na-aplica%C3%A7%C3%A3o-dos-dh .


*7 A classificação dos Direitos Humanos conforme a finalidade é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-classifica%C3%A7%C3%A3o-dos-dh-de-acordo-com-a-finalidade .


*8 O direito à integridade física, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-conven%C3%A7%C3%A3o-americana-v%C3%A1lida-e-promulgada-no-brasil .


*9 Exemplo retirado do voto do Juiz Oliver Wendell Holmes Júnior, em Mil novecentos e dezenove, no julgamento Schenck vs. United States ( Duzentos e quarenta e nove U.S. Páginas Quarenta e sete a Cinquenta e dois ).


*10 Silva, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais, Revista de Direito do Estado, número Quatro, Páginas Vinte e três a Cinquenta e um, Dois mil e seis, em especial a Página Trinta e sete.


*11 Muller, Friederich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Segunda edição. São Paulo: Max Limonad, Dois mil. Souza Neto, Cláudio Pereira. Jurisdição constitucional, democrática e racionalidade prática. Rio de Janeiro: Renovar, Dois mil e dois.


*12 O conflito de direitos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-delimita%C3%A7%C3%A3o-dos-dh-diante-do-conflito-de-direitos .


*13 Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, Dois mil e três, Página Trezentos e vinte.


Mais em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-falsos-conflitos-de-direitos-e-a-teoria-interna .

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