segunda-feira, 21 de março de 2022

Direitos Humanos: a intangibilidade como uma característica dos DH e suas exceções

Os Direitos Humanos ( DH ) são tidos como imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis ( também chamados de irrenunciáveis ), o que, em seu conjunto, compõe uma proteção de intangibilidade aos direitos tidos como essenciais ( * vide nota de rodapé ) a uma vida digna ( *2 vide nota de rodapé ).


A imprescritibilidade implica reconhecer que tais direitos não se perdem pela passagem do tempo: existindo o ser humano, há estes direitos inerentes. A inalienabilidade pugna pela impossibilidade de se atribuir uma dimensão pecuniária destes direitos para fins de venda. Finalmente, a indisponibilidade ou irrenunciabilidade revela a impossibilidade de o próprio ser humano - titular destes direitos - abrir mão de sua condição humana e permitir a violação destes direitos.


Esta proteção de intangibilidade foi importante na afirmação dos DH a partir das revoluções liberais ( *3 vide nota de rodapé ) e suas declarações de direitos (*4 vide nota de rodapé ). Era importante gravar direitos de cláusulas protetivas, contra a vontade do Estado e até mesmo contra a vontade de seu titular, demonstrando a essencialidade destes direitos e sua inerência à condição humana ( *5 vide nota de rodapé ).


Porém, três observações são importantes:


1) Em primeiro lugar, apesar de não se admitir a eliminação ou disposição dos DH em abstrato, seu exercício pode ser facultativo, sujeito inclusive à negociação ou mesmo prazo fatal para seu exercício.  Só assim é possível compreender o disposto no Artigo Sétimo, Inciso Sexto ( irrenunciabilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo ); Inciso Treze ( duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo dou convenção coletiva de trabalho ); Inciso Quatorze ( "jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva" ), e ainda o Inciso Vinte e nove ( ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho ), da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ). Há, então, liberdade do titular de exercer - ou não - tais direitos e um prazo para tanto.


2) A segunda observação diz respeito à indisponibilidade dos DH, para proteger seu titular de tratamento humilhante, cruel, e degradante. Este limite à autonomia quanto ao exercícios dos direitos ocorreu no chamado Caso do Arremesso de Anão, na França. No caso, ocorreu a proibição deste tipo de conduta ( arremesso de anão ) oferecia por uma casa noturna em Morsang-sur-Orge ( periferia de Paris, França ). Houve intenso debate sobre a indisponibilidade dos DH, uma vez o próprio anão atacou a proibição, alegando ter dado consentimento a tal prática, utilizar equipamento de segurança satisfatório e de ter direito ao trabalho. Tanto perante o Conselho de Estado ( CE ) francês ( *6 vide nota de rodapé ) quanto perante o Comitê de DH do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos ( PIDCP ) ( *7 vide nota de rodapé ) ( *8 vide nota de rodapé ), confirmou-se a legitimidade da proibição da prática do "arremesso de anão" ( *9 vide nota de rodapé ). É importante salientar que a aplicação da fórmula do "homem objeto" não pode ser mecânica e automática: a instrumentalização do ser humano é claramente ofensiva à dignidade humana quando presente um elemento de desvalorização, humilhação ou degradação da pessoa. Por exemplo, a ação de determinada pessoa que auxilia outra a subir em um muro, sendo utilizada como uma "escada", revela certa coisificação pontual, mas não há a intenção de degradação. Em sentido contrário, o Tribunal Constitucional da Alemanha considerou inconstitucional lei de segurança aérea de Dois mil e quatro, pela qual as autoridades poderiam abater aeronaves em voo com passageiros inocentes, caso se constatasse que esta seria utilizada para atentado contra a vida de pessoas no sole e este ( o abate ) fosse o último recurso para impedir a conduta. Para o Tribunal alemão, tal abate instrumentalizava em absoluto os passageiros inocentes ( para salvar outras vidas ) e violava o direito à vida ( *10 vide nota de rodapé ) e à dignidade humana, mesmo que os passageiros fossem, ao final da ação terrorista ( *11 vide nota de rodapé ), também mortos ( *12 vide nota de rodapé ). No caso brasileiro, a "Lei do Abate" ( Lei número Nove mil seiscentos e quatorze / Mil novecentos e noventa e oito, que incluiu o Parágrafo Terceiro Artigo Trezentos e três do Código Brasileiro de Aeronáutica ) sofre a crítica de permitir a "medida de destruição" para casos de tráfico de entorpecentes ( de acordo com o Decreto número Cinco mil cento e quarenta e quatro / Dois mil e quatro ).


3) A terceira observação diz respeito ao consentimento. Inicialmente, o indivíduo é livre para não exercer seus direitos: sua autonomia e autodeterminação são componentes do direito à liberdade ( *13 vide nota de rodapé ) e da própria dignidade humana. Assim, a indisponibilidade dos DH não pode gerar um paternalismo estatal exacerbado, que fulminaria a vontade de um indivíduo para protegê-lo. Neste sentido, a participação em reality shows e o afastamento do direito à privacidade em um ambiente de consentimento livre e informado de indivíduos capazes é legítimo. Ou ainda a colocação consentida de tatuagens, conduta que é compatível com a liberdade, não podendo ser considerada como uma violação à integridade ( *14 vide nota de rodapé ). Como resume Barroso, " [ o ] que o Estado não pode fazer é anular integralmente a liberdade pessoal e a autonomia moral do indivíduo, vivendo sua vida para poupá-lo do risco". Para o citado autor, os DH são, a princípio, disponíveis e sua indisponibilidade exigirá um ônus argumentativo do Estado, tendo em vista:


a) a natureza de direito,

b) a natureza de eventuais direitos contrapostos e

c) os valores sociais relevantes em uma sociedade democrática ( *15 vide nota de rodapé ).


A intangibilidade de um direito contra a vontade de seu titular, então depende da ponderação entre a liberdade do indivíduo e o eventual direito em colisão.


Há pouca utilidade da proteção de intangibilidade em um cenário marcado pela expansão dos DH e seus choques. A indisponibilidade dos DH pode ser traduzida como sendo uma limitação ( compressão ) da liberdade em prol da prevalência de outros direitos ou da dignidade humana.


Quadro sinótico


imprescritibilidade, inalienabilidade e indiponibilidade


Imprescritibilidade, inalienabilidade e indisponibilidade são características que, em conjunto compõem uma proteção de inatangibilidade aos direitos tidos como essenciais a uma vida digna.


Imprescritibilidade:


Implica o reconhecimento de que os DH não se perdem pela passagem do tempo.


Inalienabilidade


Pugna pela impossibilidade de se atribuir uma dimensão pecuniária dos DH para fins de venda.


Irrenunciabilidade


Revela a impossibilidade de o próprio ser humano - titular dos DH - abrir mão de sua condição humana e permitir a violação destes direitos.


Observações:


1) Apesar de não se admitir a eliminação ou disposição dos DH em abstrato, seu exercício pode ser facultativo, sujeito inclusive a negociação ou mesmo prazo fatal para seu exercício.

2) Pela própria definição de DH, o indivíduo não é livre para não exercer os direitos quando há lesão à dignidade humana - limites da liberdade de exercício dos direitos calcada na autonomia da vontade.

3) Tais características perdem utilidade em um cenário marcado peal expansão dos DH, já que os conflitos entre os DH fazem com que a sua interpretação tenha de ser acionada para estabelecer os limites entre eles, sem que seja útil apelar à proteção da intangibilidade conferida genericamente a todos, pois ambos os direitos em conflito também o terão.    


P.S.:


Notas de rodapé:


* Os direitos essenciais no contexto dos Direitos Humanos são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-direitos-considerados-indispens%C3%A1veis .


*2 O princípio da dignidade humana no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-princ%C3%ADpio-da-dignidade-humana-no-contexto-dos-dh e

https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-dignidade-humana-e-a-jurisprud%C3%AAncia .


*3 A contribuição do liberalismo e do neoliberalismo na construção dos Direitos Humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-as-ideias-pol%C3%ADticas-que-influenciaram-os-dh .


*4 A contribuição das declarações de direitos na construção dos Direitos Humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-as-declara%C3%A7%C3%B5es-transcendentes-universalistas-e-amb%C3%ADguas .


*5 Os Direitos Humanos como inerentes ao homem e a contribuição do jusnaturalismo como um dos fundamentos dos DH são melhor detalhados em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-o-jusnaturalismo-como-um-dos-fundamentos-dos-dh e

https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-resqu%C3%ADcios-do-jusnaturalismo-nos-dh


*6 Decisão do Conseil d'Estat, de Vinte e sete de outubro de Mil novecentos e noventa e cinco, número Cento e trinta e seis mil setecentos e vinte e sete, Commune de Morsang-sur-Orge.


*7 O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e seu impacto sobre os Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-os-direitos-civis-e-pol%C3%ADticos-no-brasil .


*8 Deliberação em petição individual contra a França, número Oitocentos e cinquenta e quatro / Mil novecentos e noventa e nove, de Vinte e seis de julho de Dois mil e dois.


*9 Carvalho Ramos, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. Sétima edição. São Paulo: Saraiva, Dois mil e dezenove.


*10 O direito à vida é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-12 .


*11 A intolerância do Estado ao terrorismo no contexto da proteção dos Direitos Humanos é melhor detalhada em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-investiga%C3%A7%C3%A3o-e-processo-contra-terrorismo-previstos-em-lei-no-brasil .


*12 Novais, Jorge Reis. A dignidade da pessoa humana. Volume Segundo - Dignidade e inconstitucionalidade. Coimbra: Almedina, Dois mil e sete, em especial Páginas Cento e dezenove e Duzentos e quarenta e quatro.


*13 O direito à liberdade no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-defini%C3%A7%C3%A3o-das-liberdades-p%C3%BAblicas-como-direitos-civis .


*14 O direito à integridade física e moral no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-doutrinas-e-jurisprud%C3%AAncias-72 .


*15 Barroso, Luís Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Disponível em: < http://www.juisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/testemunhas_de_jeova.pdf > .


Mais em:


https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-a-intangibilidade-como-uma-caracter%C3%ADstica-dos-dh-e-suas-exce%C3%A7%C3%B5es .

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