terça-feira, 11 de julho de 2023

Direitos Humanos: o direito à liberdade de crença e a escusa de consciência

A liberdade de crença e religião ( * vide nota de rodapé ) é faceta de consciência ( *2 vide nota de rodapé ), consistindo no direito de adotar ou não qualquer crença religiosa ou abandoná-la livremente, bem como praticar seus ritos, cultos e manifestar sua fé, sem interferências abusivas. Há um duplo aspecto da liberdade de crença ou religião:


1) no sentido positivo, tal liberdade assegura o direito de professar uma fé;

2) no sentido negativo, assegura o direito de não possuir uma fé ou ainda de não ser exposto indevidamente ao proselitismo religioso.


A proteção da liberdade de crença ou religião impede a punição daquele que a invoca para não cumprir obrigação legal a todos imposta, como também impede que alguém seja obrigado a acreditar em algum culto ou religião ou impelido a renunciar ao que acredita.


Fica estabelecido o marco de tolerância a toda a qualquer religião, devendo o Estado ter uma postura de neutralidade sem favorecer ou prejudicar qualquer uma delas. O Artigo Dezenove da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) qualifica o Estado brasileiro como Estado laico, uma vez que veda a qualquer ente federativo estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.


Há relação entre a liberdade de religião e a liberdade de expressão ( *3 vide nota de rodapé ), que se reveja na possibilidade de difusão da fé e dos princípios de cada religião. Esses atos de proselitismo religioso são duplamente protegidos pela gramática de Direitos Humanos ( DH ), pois fundamentam-se na liberdade de expressão e também na liberdade de religião.


Justamente por ser uma faceta da liberdade de religião, o proselitismo religioso possui tratamento jurídico distinto da expressão de ideias em geral. O Supremo Tribunal Federal ( STF ) apreciou o limite do proselitismo religioso em espaços públicos na análise da restrição, em vigor há mais de Vinte anos no Brasil, prevista no Artigo Quarto, Parágrafo Primeiro, da Lei número Nove mil seiscentos e doze / Mil novecentos e noventa e oito, que estabelecia: "É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária". Para o STF ( por maioria ), o dispositivo colide com


1) a liberdade de expressão,

2) a liberdade religiosa e

3) o livre exercício de cultos religiosos.


No voto do Ministro Fachin ( Relator para o Acórdão ), foi eleito o "diálogo das Cortes", com citação da posição da Corte Interamericana de DH ( Corte IDH ) ( *4 vide nota de rodapé ) na Opinião Consultiva número Cinco ( *5 vide nota de rodapé ). Nesse julgado, a Corte IDH enfatizou a "dupla dimensão" da liberdade de expressão, que requer que ninguém seja arbitrariamente privado ou impedido de manifestar seu pensamento e ainda e ainda consiste no direito coletivo de receber informações e de conhecer o pensamento alheio. Para Fachin, a restrição ao proselitismo religioso em rádios comunitárias não se amolda a alguma hipótese de restrição autorizada de DH, pois a liberdade de expressão inclui o discurso persuasivo e a troca de ideias. Mesmo se tratando de concessões públicas, impera a liberdade de expressão "sob qualquer forma, processo ou veículo" ( Artigo Duzentos e vinte da CF - 88 ). Quanto ao direito de não ser exposto indevidamente ao proselitismo religioso, o dano é mínimo e bastaria ao ouvinte que "desligue o rádio" ( Ação Declaratória de Inconstitucionalidade - ADI número Dois mil quinhentos e sessenta e seis, Relator para o Acórdão Ministro Edson Fachin, julgada em Dezesseis de maio de Dois mil e dezoito, Publicado no Diário da Justiça eletrônico de Vinte e três de outubro de Dois mil e dezoito ).


A laicidade do Estado, no Brasil, foi consagrada somente na Constituição de Mil oitocentos e noventa e um e suas sucessoras. ( *6 vide nota de rodapé). Na Constituição Imperial de Mil oitocentos e vinte e quatro, houve adoção da religião Católica Apostólica Romana como oficial do Estado ( Estado Confessional, Artigo Quinto ) e prevalecia o regalismo, que consiste na subordinação da Igreja ao Estado em seus assuntos internos ( por exemplo, pelo Artigo Cento e dois, Inciso Segundo, cabia ao Imperador nomear os Bispos ).


Por outro lado, há outros comandos da CF - 88 que fazem remissão á fé e a religiões, a saber:


1) a expressão "sob a proteção de Deus" no Preâmbulo da CF - 88;

2) a escolha do descanso semanal "preferencialmente aos domingos" prevista no Artigo Sétimo, Inciso Quinze, fruto do dia do descanso preconizado pelo cristianismo;

3) a previsão de colaboração do Estado com entes religiosos caso isso seja "de interesse público" ( Artigo Dezenove, Inciso Primeiro );

4) a previsão de dispensa do serviço militar obrigatório, em tempo de paz, aos eclesiásticos 9 Artigo Cento e quarenta e três, Parágrafo Segundo );

5) a previsão do ensino religioso, de matrícula facultativa, como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental ( Artigo Duzentos e dez, Parágrafo Primeiro );

6) o Artigo Quinto, Inciso Sétimo, assegura nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.


Quanto ao conteúdo do ensino religioso facultativo em escolas públicas, há duas visões sob o tema. 


1) A primeira visão, tradicional, sustenta que o ensino tem conteúdo vinculado ao ensino dos dogmas de determinada fé, devendo ser ofertadas várias opções aos alunos, de acordo com o interesse, podendo ser os professores vinculados a igrejas ou cultos, sendo vedado qualquer forma de doutrinação ou proselitismo. É o chamado ensino religioso de caráter confessional.

2) A segunda visão defende que o ensino religioso facultativo em escola pública deve consistir na exposição das doutrinas e história das religiões, bem como da análise de posições não religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo - sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores, que devem ser professores da própria rede pública. Essa segunda posição foi defendida pela Procuradoria Geral da República ( PGR ), ao propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade ( ADIn ) número Quatro mil quatrocentos e trinta e nove em Dois mil e dez perante o STF, questionando a Lei número Nove mil trezentos e noventa e quatro / Mil novecentos e noventa e seis ( Lei de Diretrizes e Bases - LDB - da Educação Nacional ) e a Concordata Brasil-santa Sé ( tratado incorporado internamente pelo Decreto número Setenta e sete mil cento e sete / Dois mil e dez ).


No julgamento dessa ADIn número Quatro mil quatrocentos e trinta e nove, o STF julgou improcedente pedido e conferiu interpretação conforme a CF - 88 ao Artigo Trinta e três, Caput, e Parágrafos Primeiro e Segundo, da Lei número Nove mil trezentos e noventa e quatro / Mil novecentos e noventa e seis ( Lei de Diretrizes - LDB - da Educação Nacional ), e ao Artigo Onze, parágrafo Primeiro, do acordo Brasil-santa Sé, consagrando que o ensino religioso ( no seu duplo aspecto ), deve regulamentar o Artigo Duzentos e dez, Parágrafo Primeiro, da CF - 88, autorizando, na rede pública em igualdade de condições, o oferecimento de ensino confessional. O STF entendeu que o poder público, observado o binômio laicidade do Estado e consagração da liberdade religiosa ( no seu duplo aspecto ), deve regulamentar o Artigo Duzentos e dez, Parágrafo Primeiro, da CF - 88, autorizando, na rede pública, em igualdade de condições, o oferecimento de ensino confessional das diversas crenças, mediante requisitos formais de credenciamento, de preparo, previamente fixados pelo Ministério da Educação ( MEC ). Para o STF, deve ser permitido aos alunos se matricularem voluntariamente para que possam exercer o seu "direito subjetivo ao ensino religioso" como disciplina dos horários normais das escolas públicas. o ensino deve ser ministrada, a partir de chamamento público, preferencialmente sem qualquer ônus para o poder público ( STF, ADIn número Quatro mil quatrocentos e trinta e nove, Relator para o Acórdão Ministro Alexandre de Moraes, julgada em Vinte e sete de setembro de Dois mil e dezessete, Publicado no Informativo número Oitocentos e setenta e nove ).


Assim, para o STF, o caráter confessional do ensino religioso em escolas públicas não viola a laicidade do Estado e a liberdade de religião no sentido negativo.


Quanto à prestação de assistência religiosa nos estabelecimentos civis e militares de internação coletiva ( quartéis, presídios, hospitais públicos, entre outros ), há um direito que exige do Estado a implementação das condições materiais mínimas para a realização do culto, sem discriminação de qualquer um, desde que solicitados pelos internos.


Também é constitucional a lei de proteção animal que, em nome da liberdade de religião, prevê o sacrifício ritual de animais em cultos de religião de matriz africana. para o SFT, a proibição do sacrifício aniquilaria a própria essência da pluralidade cultural e religiosa. Fixou-se a seguinte tese: "É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana" ( Recurso Especial número Quatrocentos e noventa e quatro mil seiscentos e um, relator para o acórdão Ministro Edson Fachin, julgado em Vinte e oito de março de Dois mil e dezenove ). Destaque-se, no caso, a posição da maioria do STF a favor de evitar que, em nome da tutela de um direito relevante, seja aniquilado de modo desproporcional outro.


Em Dois mil e dezenove, foi editada a Lei número Treze mil setecentos e noventa e seis, pela qual ficou assegurado ao aluno regularmente matriculado em instituição de ensino público ou privada, de qualquer nível, ausentar-se de prova ou de aula marcada para dia em que, segundo os preceitos de sua religião, seja vedado o exercício de tais atividades, devendo ser atribuído, a critério da instituição e sem custos para o aluno, prestação alternativa, que pode ser


1) prova ou aula de reposição, em data alternativa e com anuência expressa do aluno; ou

2) trabalho escrito ou outra modalidade de pesquisa.


Trata-se aqui de ponderação legislativa entre a liberdade de crença e a igualdade ( os alunos, sem distinção, devem se submeter aos exames para comprovação de conhecimento ), preservando-se a convicção religiosa do aluno.


Por sua vez, o STF considerou inconstitucional a Lei número Mil oitocentos e sessenta e quatro / Dois mil e oito do Estado de Rondônia, que determinou a oficialização da Bíblia como livro-base de fonte doutrinária para fundamentar princípios, usos e costumes de comunidades, igrejas e grupos no Estado de Rondônia. Essa adoção implicou inconstitucional discriminação entre religiões, bem como resultou em ofensa à neutralidade exigida do Estado pela CF - 88 ( ADI número Cinco mil duzentos e cinquenta e sete, relator Ministro Dias Toffoli, julgada em Vinte de setembro de Dois mil e dezoito, Publicada no Diário da Justiça eletrônico de Três de dezembro de Dois mil e dezoito ). Reafirmou-se, assim, a laicidade do Estado brasileiro, que não é religioso ou ateu, e, sim, neutro ( Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF número cinquenta e quatro, voto do Relator Ministro Marco Aurélio, julgada em Doze de abril de Dois mil e doze, Publicada no Diário da Justiça eletrônico de Trinta de abril de Dois mil e doze, Publicado no Diário da Justiça eletrônico de Trinta de abril de Dois mil e treze ).      


P.S.:


Notas de rodapé:


* O direito à liberdade de crença e religião, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/04/direitos-humanos-doutrinas-e_88.html .


*2 O direito à liberdade de consciência, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/11/direitos-humanos-o-direito-de-objecao.html .


*3 O direito à liberdade de expressão, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/06/direitos-humanos-o-direito-liberdade-de.html .


*4 A Corte Interamericana de Direitos Humanos é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .


*5 As opiniões ou pareceres consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/01/direitos-humanos-os-pareceres.html .


*6 A Constituição de Mil oitocentos e noventa e um e suas sucessoras, são melhora detalhadas em: https://administradores.com.br/artigos/direitos-humanos-teoria-geral .  

Nenhum comentário:

Postar um comentário