terça-feira, 23 de maio de 2023

Direitos Humanos: o direito à igualdade e o combate à violência contra a mulher

Há diversos tratados incorporados ao ordenamento brasileiro que combatem a discriminação e violência contra a mulher ( * vide nota de rodapé ). Esses tratados ( *2 vide nota de rodapé ) exigem a implementação de regras de discriminação positiva, que consistem em medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade ( *3 vide nota de rodapé ) de fato entre homem e mulher.

Legenda: O então Secretário-Geral do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Santa Catarina, Cláudio Márcio Araújo da Gama ( de chapéu ), com mulheres, durante ato comemorativo do Dia Internacional da Mulher, em 8/3/22. Foto: Mariléia Gomes ( Sintespe / Divulgação ). 


Nesse sentido, a Convenção da Organização das Nações Unidas ( ONU ) sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher ( CONUETFDCM ) ( *4 vide nota de rodapé ) ( CEDAW - sigla em inglês ), determina que os Estados partes devem tomar as medidas apropriadas para combater as diversas formas de exploração, violência e discriminação contra a mulher. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher ( CIPPEVCM ) ( *5 vide nota de rodapé ) ( também Chamada de Convenção de Belém do Pará - CBPA ) foi explícita em estabelecer mandados de criminalização de condutas de violência contra a mulher ( *6 vide nota de rodapé ).


De acordo com o Artigo Sétimo, Alíneas d e e, da CIPPEVCM, os Estados Partes devem "adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas e prevenir, punir e erradicar a dita violência e empenhar-se em ( ... ) incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher".


O combate penal à violência contra a mulher foi reforçado pelo importante precedente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ( DH ) ( Comissão IDH ) no caso brasileiro "Maria da Penha Maia Fernandes". os fatos relativos a esse caso remontam a Mil novecentos e oitenta e três, quando a Srª Maria da Penha foi vítima de tentativa de homicídio por parte de seu marido à época, o que a deixou paraplégica. Houve, depois, outro ataque em Mil novecentos e oitenta e quatro, a lentidão da Justiça Penal brasileira quase gerou a prescrição do crime. Somente em Dois mil e dois ( Dezenove anos depois dos fatos ) o agressor foi preso, após o trânsito em julgado dos mais variados recursos. Para impedir a repetição de tais condutas, a Comissão IDH recomendou que o Brasil adotasse medidas legislativas que protegessem, efetivamente, a mulher contra a violência.


Em Dois mil e seis, foi adotada a Lei número Onze mil trezentos e quarenta, conhecida como Lei Maria da Penha ( LMP ) ( *7 vide nota de rodapé ), que foi resultado dos tratados internacionais já citados e também da recomendação da Comissão IDH, cumprindo ainda o disposto no Parágrafo Oitavo do Artigo Duzentos e vinte e seis da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) ( "O Estado assegurará a assistência à família no âmbito de suas relações" ). De maneira clara, a LMP trata a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma das formas de violação dos DH ( Artigo Sexto ).


A LMP objetiva coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, nem toda violência contra a mulher faz incidir a LMP: é necessário que haja


1) uma questão de gênero em um

2) contexto familiar e doméstico.


A violência tratada na LMP consiste em ato ou omissão que viole os direitos da mulher oriundos de uma relação de afeto ou de convivência.


Por isso, configura "violência doméstica e familiar contra a mulher" qualquer ação ou omissão baseada no gênero ( *8 vide nota de rodapé ) que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial,


1) no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

2) no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

3) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação ( Artigo Quinto da LMP ), como, por exemplo, relacionamentos entre amentes, namorados etc. Nesse sentido, a Súmula número Seiscentos do Superior Tribunal de Justiça ( STJ ) dispõe que " [ p ] ara a configuração da violência doméstica e familiar prevista no Artigo Quinto da LMP não se exige a coabitação entre autor e vítima".


Essas relações pessoais ( domésticas, familiares e de afetividade ) independem de orientação sexual e a coabitação, o que inclui o namoro e as relações entre amantes. O Artigo Sétimo da LMP lista, de modo não exaustivo, as espécies de violência doméstica e familiar: violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral, ou seja a violência física não é a única que faz incidir a LMP: a agressão verbal, perseguição contumaz, vigilância constante são tipos de violência previstos pela LMP.


A LMP visa a combater toda e qualquer violência realizada no local de residência da vítima ou, ainda, em qualquer lugar, desde que a violência seja resultado de relação de afeto ou de convivência.


Prevê o Artigo Vinte e dois da LMP que o juiz poderá aplicar, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência contra o agressor:


1) suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente;

2) afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

3) proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das restemunhas, fixando o limite mínimo de distência entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

4) restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

5) prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Tais medidas não são exaustivas, podendo ainda o juiz usar, analogicamente, o disposto no novo Código de Processo Civil ( CPC ) de Dois mil e quinze para cumprimento da tutela específica de obrigação de fazer ( Artigo Quinhentos e trinta e seis ) para assegurar os direitos da vítima.


Há ainda medidas protetivas a favor da mulher, que podem ser adotadas pelo juiz, como, por exemplo:


1) o encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

2) a determinação de recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

3) a determinação do afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

4) e a separação de corpos.


São também previstas medidas protetivas da integralidade dos bens da sociedade conjugal ou de propriedade particular da mulher.


Como tais medidas são apenas exemplificadas na lei, admite-se o uso de medidas previstas na Lei número Doze mil quatrocentos e três / Dois mil e onze ( Lei sobre prisão e outras medidas cautelares ), como, por exemplo, o monitoramento eletrônico.


Em Dois mil e dezenove, foi editada a Lei número treze mil oitocentos e vinte e sete, pela qual se autorizou, na existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, que seja determinado o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida pelo:


1) delegado de polícia ou

2) pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível.


Nessas hipóteses, o juiz deve ser comunicado em Vinte e quatro horas para decidir sobre a manutenção ou revogação da medida, devendo dar ciência ao Ministério Público ( MP ) ( *9 vide nota de rodapé ) concomitantemente. Também ficou estabelecido que as medidas protetivas de urgência serão registradas em banco de dados mantido e regularmente pelo MP, da Defensoria Pública ( *10 vide nota de rodapé ) e dos órgãos de segurança pública e de assistência social, com vistas á fiscalização e à efetividade das medidas protetivas.


Ainda em Dois mil e dezenove, foram editadas mais três novas leis que alteraram a LMP, para incrementar a proteção da mulher. A Lei número Treze mil oitocentos e setenta e um / Dois mil e dezenove previu a obrigação de ressarcimento ao Estado pelos


1) gastos relativos ao atendimento da vítima através do Sistema Único de Saúde ( SUS ), por parte daquele que, por ação ou omissão, causou lesão , violência física, sexual, ou psicológica e dano moral ou patrimonial contra a mulher. Também foi prevista a obrigação de ressarcimento dos gastos estatais com os

2) dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas ( por exemplo, tornozeleiras eletrônicas ). De acordo com a nova lei, em ambas as hipóteses de ressarcimento, os gastos realizados não podem configurar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e de seus dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar a possibilidade de substituição da pena aplicada. Já a Lei número Treze mil oitocentos e oitenta / Dois mil e dezenove estabeleceu a possibilidade de apreensão de arma de fogo sob a posse de agressor em casos de violência doméstica. Por sua vez, a Lei número treze mil oitocentos e oitocentos e oitenta e dois / Dois mil e dezenove alterou a LMP para garantir a matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência doméstica e familiar na instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio. Essas quatro leis de Dois mil e dezenove buscam aumentar o arco legal de proteção à mulher vítima da violência doméstica.


Em Dois mil e vinte, foi aprovada a Lei número Treze mil novecentos e oitenta e quatro, pela qual se estabeleceu, como medidas protetivas de urgência da LMP, a frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial.


A violência contra a mulher exige complexa política pública de prevenção e repressão que envolve o Poder Executivo ( autoridades policial e assistência de todos os tipos ), Defensoria Pública, MP e Poder Judiciário  ( PJ ). No que tange ao PJ, a lei dispõe que poderão ser criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher ( JVDFCM ), com competência cível e criminal, para o processo, julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.


Por sua vez, a proteção regulada pela LMP ( e demais leis a ela relacionadas ) depende da condição de mulher, que pode ser definia sob três critérios:


1) psicossocial, que consiste no critério de autoidentificação da vítima como pertencente ao gênero feminino;

2) critério genético, que identifica a mulher a partir de análise genética; e, finalmente

3) critério legal, baseado na identidade de gênero do registro civil perante o Estado.


O atendimento á finalidade da norma ( combate à discriminação e violência ) dá-se com a aplicação do critério psicossocial, sendo então cabível o uso dos institutos protetivos da LMP pelas pessoas que se identificam como sendo do gênero feminino, como é o caso das mulheres transexuais e transgêneros, não sendo exigível ( sob pena de discriminação odiosa )  a


1) alteração do registro civil ou 

2) cirurgia de transgenitalização.


Além disso, os "Princípios de Yogyakarta" ( *11 vide nota de rodapé ) exigem que o Estado tome todas as medidas legais, administrativas e de outras espécies para reconhecer legalmente a identidade de gênero autodefinida por cada pessoa. Nessa linha, para deixar clara essa opção ( que advém da defesa da igualdade, prevista na CF - 88 ), há o Projeto de Lei ( PLS ) número Cento e noventa e um do Senado Federal ( SF ), que inclui as mulheres transgêneras e as transexuais sob proteção da LMP ( em trâmite, em setembro de Dois mil e vinte ) ( *12 vide nota de rodapé ).  

       


P.S.:


* O combate à violência contra a mulher, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-visa.html .


*2 A diversidade terminológica referente aos tratados de Direitos Humanos é melhora detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/02/direitos-humanos-os-tratados-e.html .


*3 O direito à igualdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/05/direitos-humanos-o-direito-igualdade-e_16.html .


*4 A Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-eliminacao-da_27.html .


*5 A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-prevencao-punicao-e.html .


*6 Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos  em Seis de junho de Mil novecentos e noventa e quatro e ratificada pelo Brasil em Vinte e sete de novembro de Mil novecentos e noventa e cinco.


*7 A Lei Maria da Penha, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-coibicao-da-violencia.html .


*8 Sexo refere-se às características biológicas de um ser: homem ou mulher. Já gênero consiste no conjunto de aspectos sociais, culturais, políticos relacionados a diferenças percebidas entre os papéis masculinos e femininos em uma sociedade. Assim, o travesti e o transexual referem-se à identidde de gênero de uma determinada pessoa.


*9 O Ministério Público, na condição de guardião da lei, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/04/direitos-humanos-guardiao-da-lei.html .


*10 A Defensoria Pública, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/04/direitos-humanos-defensoria-publica-na.html .


*11 Os Princípios de Yogyakarta, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/06/direitos-humanos-aplicacao-do-direito.html .


*12 Disponível em: < www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129598 > . Acesso em Quinze de setembro de Dois mil e vinte .   

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