sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Direitos Humanos: o direito à liberdade e de não autoincriminar-se

Diversos tratados ( * vide nota de rodapé ) de Direitos Humanos ( DH ) asseguram o direito de todo indivíduo de não ser obrigado a se autoincriminar ( *2 vide nota de rodapé ), o que é conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se detegere. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos ( PIDCP ) ( *3 vide nota de rodapé ), aprovado pela Assembleia Geral da Organzação das Nações Unidas ( ONU ) em Mil novecentos e sessenta e seis e já ratificado e incorporado internamente, assegura a "cada indivíduo acusado de um crime", entre as garantias processuais mínimas para o exercício  do direito de defesa, aquela de "não ser constrangido a depor contra si mesmo ou a confessar-se culpado" ( Artigo Quatorze, Incisos Segundo e terceiro, Alínea g ). A Convenção Americana sobre DH - CADH ( Pacto de São José da Costa Rica - PSJCR ) ( *4 vide nota de rodapé ), em vigor para o Brasil desde Mil novecentos e noventa e dois, assegura "a toda pessoa acusada de delito", entre outras garantias mínimas, o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada ( Artigo Oitavo, Inciso Segundo, Alínea g ).


No caso brasileiro, a disposição constitucional sobre o direito ao silêncio do preso ( Artigo Quinto, Sessenta e três ) gerou, para o Supremo Tribunal Federal ( STF ), o direito de toda pessoa, perante qualquer Poder, em qualquer processo ( administrativo ou judicial ), não importando a qualidade de sua posição no procedimento ( mesmo se na condição de testemunha ) de não ser obrigado a se autoincriminar ou a contribuir, de qualquer forma, para sua própria incriminação ( privilégio contra a autoincriminação, nemo tenetur se detegere ).


O direito a não ser obrigado a se autoincriminar compõe o direito à defesa. A não incriminação é uma modalidade de autodefesa passiva, que é exercida por meio da inatividade do indivíduo sobre quem recais ou pode recair uma imputação. O indivíduo pode defender-se da maneira que entender mais conveniente, sem que ninguém possa coagi-lo ou induzir seu comportamento, podendo inclusive optar pelo non facere. Afinal, ônus da prova recai sobre a Acusação.


O direito de não ser obrigado a se autoincriminar implica a proibição de qualquer ato estatal que impeça, condicione ou perturbe a vontade do indivíduo de não contribuir para o processo sancionatório contra ele dirigido no momento ou no futuro ( o que protege a testemunha de reponder que pode, futuramente, levar a um processo contra si ).


As principais consequências, na jurisprudência brasileira, do privilégio contra a autoincriminação são:


1) Silêncio em face de pregunta cuja resposta é autoincriminadora


o STF já se pronunciou diversas vezes que toda pessoa pode invocar o direito de não produzir prova contra si, mesmo sem acusação formal ou  no momento de depoimento na condição de testemunha. Toda pessoa que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos públicos, inclusive perante um juiz e Comissão Parlamentar de Inquérito ( CPI ), pode invocar o direito ao silêncio, sem qualquer prejuízo ou sanção ( por exemplo, prisão em flagrante pelo crime de falso testemunho, modalidade "calar a verdade" ).


2) Nulidade gerada pela ausência da notificação do direito ao silêncio


O STF determinou que há nulidade no caso de omissão de informação do direito do preso de quedar-se em silêncio, pois "ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas" ( STF, Habeas Corpus número Setenta e oito mil setecentos de oito, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em Nove de março de Mil novecentos e noventa e nove, Primeira Turma, Diário da Justiça de Dezesseis de abril de Mil novecentos e noventa e note ).


3) Direito de não produzir elementos que servirão de prova contra si mesmo


O investigado não pode ser obrigado, sob "pena de desobediência", a fornecer qualquer elemento de prova contra si mesmo. Por exemplo, não cabe exigir autógrafos para servir de padrão à perícia. Há outros métodos menos gravosos e que atingem o mesmo resultado, como, por exemplo, fazer requisição a órgãos públicos que detenham documentos da pessoa a qual é atribuída a letra.


4) Direito à vida e as falsidades do investigado


O direito de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo foi expandido no Brasil e fundamenta, em conjunto com o direito á ampla defesa ( modalidade autodefesa ), a atipicidade da conduta de apresentar versões falsas. O tipo penal de falso testemunho não comporta a punição do investigado ou acusado. O Artigo número trezentos e quarenta e dois do Código Penal ( CP ), com a redação dada pela Lei número Dez mil duzentos e sessenta e oito / Dois mil, estabelece ser o falso testemunho o ato da testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral, de fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, excluindo o investigado ou réu.


5) Direito à mentira e impossibilidade de usar as falsidades na dosimetria da pena


Como resultado do direito do réu de se defender com versões falsas, não pode o juiz, na visão majoritária, usar tal conduta na dosimetria da pena, punindo com maior severidade o réu. para o STF, "a fixação da pena acima do mínimo legal existe fundamentação adequada, baseada em circunstâncias que, em tese, se enquadrem entre aquelas a ponderar, na forma prevista no Artigo Cinquenta e nove do Código Penal, não se incluindo, entre elas, o fato de haver o acusado negado falsamente o crime, em virtude do princípio constitucional - nemo tenetur se detegere" ( Habeas Corpus número sessenta e oito mil setecentos e quarenta e dois, Relator para o Acórdão Ministro Ilmar Galvão, julgado em Vinte e oito de junho de mil novecentos e noventa e um, Plenário, Diário da Justiça de Dois de abril de Mil novecentos e noventa e três, com vários julgados posteriores ).


6) Vedação da atribuição falsa de identidade


Todavia, o investigado não pode mentir e atribuir para si falsa identidade. Deve optar pelo silêncio, caso não queira revelar sua identidade verdadeira, pois poderá ser processado pelo crime previsto no Artigo trezentos e sete do CP ( "Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem" ). Para o STF, "o princípio constitucional da autodefesa ( Artigo Quinto, Inciso Sessenta e três, da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito - CF - 88 ) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo gente ( Artigo trezentos e sete do CP )" ( Recurso Extraordinário número Seiscentos e quarenta mil cento e trinta e nove - Repercussão Geral, Relator Ministro Dias Toffoli, julgado em Vinte e dois de setembro de Dois mil e onze, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Quatorze de outubro de Dois mil e onze, com repercussão geral ). No mesmo sentido, há a Súmula número quinhentos e vinte e dois do Superior Tribunal de Justiça ( STJ ): "A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa" ( decisão de Vinte e cinco de março de Dois mil e quinze, Diário da Justiça eletrônico de Seis de abril de Dois mil e quinze ).


7) Privilégio contra a autoincriminação e a interceptação telefônica


O privilégio contra a autoincriminação proíbe apenas que o Estado exija do investigado que contribua com sua própria incriminação. Contudo, não impede que o Estado realize investigações que colham, inclusive, a confissão do investigado em interceptações telefônicas ( *5 vide nota de rodapé ) ou escutas ambientais ( *6 vide nota de rodapé ). O que é vedado, por ofensivo ao princípio da dignidade humana ( *7 vide nota de rodapé ), é coagir e forçar o investigado a revelar prática de crime. Nesse sentido, o STF decidiu que "não pode vingar a tese da impetração de que o fato de a autoridade judiciária competente ter determinado a interceptação telefônica dos pacientes, envolvidos em investigação criminal, fere o direito constitucional ao silêncio, a não autoincriminação" ( Habeas Corpus número Cento e três mil duzentos e trinta e seis, voto do Relator Ministro Gilmar Mendes, julgado em quatorze de junho de Dois mil e dez, Segunda Turma, Diário da Justiça eletrônico de três de setembro de Dois mil e dez ).


8) Privilégio contra a autoincriminação e o dever de apresentação de documentos


O dever de fornecer documentos é tratado de modo diferente. Nesse último caso, esses documentos entregues em si não têm o condão de incriminar ou absolver quem que seja. A batalha da defesa estará na interpretação ( *8 vide nota de rodapé ) do alcance e sentido de cada informação contida nos documentos. Assim, é legítima a requisição de documentos ou mesmo o recurso à busca e apreensão judicial de documentos.


9) Privilégio contra a autoincriminação e a intervenção corpórea mínima


O privilégio contra a autoincriminação e a integridade física ( *9 vide nota de rodapé ) são direitos utilizados para impedir que o Estado exija do investigado que ceda material integrante do próprio corpo para a investigação de ilícitos. Assim, no Brasil, é vedado que se exija de um indivíduo que doe material para o exame de Ácido Desóxirribo Nucléico ( ADN ) ou DNA ( sigla em inglês ), que faça o teste do etilômetro ( "bafômetro" ) ou permita exame de sangue para aferição e estado de embriagêz. A conduta do investigado em fazer tais atos tem de ser voluntária, não podendo se exigida. Nada impede, contudo, que a investigação obtenha material sem que a integridade física seja violada. No STF, foi considerado legítimo o exame de DNA feito na placenta, após sua expulsão pelo corpo, mesmo contra a vontade d mãe ( Reclamação número Dois mil e quarenta - Questão de Ordem, Relator Ministro Néri da Silveira, julgada em Vinte e um de fevereiro de Dois mil e dois, Plenário, Diário da Justiça de Vinte e sete de junho de Dois mil e três ). Contudo, outros órgãos internacionais de DH, como a Corte Europeia de DH ( CEDH ) aceitam a intervenção corpórea mínima no próprio investigado ( por exemplo, exame compulsório de DNA ), de modo a preservar o direito à verdade ( *10 vide nota de rodapé ) e à justiça ( *11 vide nota de rodapé ) das vítimas fazendo ponderação entre os direitos do investigado e os diretos das vítimas.


Fuga do local do acidente de trânsito e crime do Artigo Trezentos e cinco do Código de Transito Brasileiro ( CTB ). Constitucionalidade


Ao punir a conduta do condutor envolvido em acidente de trânsito que não permanece no local do acidente, o crime do Artigo Trezentos e cinco do CTB não ofende o princípio da não incriminação. De fato, o envolvido não precisa dar declarações ou assumir culpa. o núcleo duro do "nemo tenetur se detegere" consiste em não obrigar o indivíduo a a gir ativamente na produção de prova contra si próprio, o que a previsão do Artigo Trezentos e cinco não ofende. Tutela-se somente administração da justiça, que tem interesse em preservar o local do acidente, impondo que os condutores lá permaneçam. Em síntese, para o STF, " [ a ] exigência de permanência no local do acidente e de identificação perante a autoridade de trânsito não obriga o condutor a assumir eventual responsabilidade cível ou penal pelo sinistro nem, tampouco, enseja que contra ela se aplique qualquer penalidade caso não o faça" ( Recurso Extraordinário número Novecentos e setenta e um mil novecentos de cinquenta e nove, relator Ministro Luiz Fux, julgado em quatorze de novembro de Dois mil e dezoito, Publicado no Informativo número Novecentos e vinte e três, Tema Novecentos e sete ).


P.S.:


Notas de rodapé:


* Os tratados internacionais, no contexto dos Direitos Humanos, são melhora detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/02/direitos-humanos-vontade-do-brasil-de.html .


*2 O direito de não ser obrigado a se autoincriminar, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-liberdade-e_31.html .


*3 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/04/direitos-humanos-pacto-obriga-estados.html .


*4 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-convencao-americana.html .


*5 O direito à privacidade e ao sigilo das comunicações telefônicas, no contexto dos Direitos Humanos, são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_10.html .


*6 O direito à privacidade e a captação de sinais óticos ou acústicos, no contexto dos Direitos Humanos, são melhora detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_14.html .


*7 O princípio da dignidade humana, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-o-principio-da.html .


*8 A interpretação dos Direitos de acordo com os demais Direitos Humanos, é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/03/direitos-humanos-interpretacao-de-um-dh.html .


*9 O direito à integridade física, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/06/direitos-humanos-o-direito-integridade.html .


*10 O direito à verdade, no contexto dos Direitos Humanos, é melhora detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-o-direito-memoria-e.html .


*11 O direito á justiça, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-defensoria-publica.html .

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