quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Direitos Humanos: o direito à privacidade e ao sigilo das comunicações telefônicas

O Artigo Quinto, Inciso Doze, da Constituição Federal de Mil novecentos e oitenta e oito ( CF - 88 ) prevê, excepcionalmente, a violação do sigilo das comunicações telefônicas sob os seguintes requisitos:


1) existência de lei regulamentadora;

2) ordem judicial;

3) nas hipóteses e na forma prevista na lei regulamentadora para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.


Quanto à lei regulamentadora, houve omissão legislativa até a edição da Lei número Nove mil duzentos e noventa e seis / Mil novecentos e noventa e seis. Consequentemente, o Supremo Tribunal Federal ( STF ) considerou prova ilícita aquela obtida mediante quebra do sigilo das comunicações telefônicas, mesmo quando existia ordem judicial, uma vez que o Artigo Cinquenta e sete, Inciso Segundo, Alínea a, do Código Brasileiro de Telecomunicações ( CBT - Lei número quatro mil cento e dezessete / Mil novecentos e sessenta e dois ) foi considerado não recepcionado pela Constituição de Mil novecentos e oitenta e oito.


A ordem judicial é indispensável e deve ser fundamentada. Nem Comissão Parlamentar de Inquérito ( CPI ) pode ordenar a interceptação telefônica, uma vez que a violação do sigilo da comunicação é matéria abrangida pelo princípio da reserva de jurisdição ( * vide nota de rodapé ). Pode tão somente a CPI ordenar a quebra do sigilo dos dados telefônicos ( registros das chamadas - quem ligou e para quem ligou - e duração ) ( os meta dados ou dados sobre os dados ), mas nunca ordenar a interceptação da conversa telefônica.


Não se pode confundir a proteção da comunicação telefônica com os registros telefônicos. O sigilo da comunicação telefônica ( que só pode ser quebrado por ordem judicial ) abarca o


1) teor da conversa e do que

2) é transmitido pelos envolvidos, não abrangendo os números de chamadas, horário, duração, dentre outros registros similares, que são dados externos à comunicação propriamente dita.


Por isso, o STF autoriza a Polícia ( ou o Ministério Público - MP ) a requisitar diretamente, sem ordem judicial, às operadoras de telefonia os dados relativos à hora, ao local e à duração das chamadas realizadas por ocasião da prática criminosa, o que não configura violação ao Artigo quinto, Inciso Doze, da CF - 88 ( STF, Habeas Corpus número Cento e vinte e quatro mil trezentos e vinte e dois / Rio Grande do Sul, Relator Ministro Luís Roberto Barroso, decisão de Vinte e um de setembro de Dois mil e quinze ). Em síntese, a exigência de reserva de jurisdição ( ordem judicial para a quebra ) é para a comunicação de dados e não para a obtenção de registros e cadastros de dados ( Habeas Corpus número Noventa e um mil oitocentos e sessenta e sete, Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda turma, julgado em Vinte e quatro de abril de Dois mil e doze, Diário da Justiça eletrônico de Vinte de setembro de Dois mil e doze ). Também é lícita a requisição direta, sem ordem judicial, pela autoridade policial ou pelo MP dos dados de localização do telefone celular em relação à Estação Rádio-Base ( ERB ), bem como o número dos telefones celulares que utilizam a ERB, pois tais dados são estáticos e não desnudam o teor da conversa, sendo "externos ao conteúdo das transmissões temáticas" ( Superior Tribunal de Justiça - STJ , Habeas Corpus número Duzentos e quarenta e sete mil trezentos e trinta e um / Rio Grande do Sul, Sexta Turma, Relatora Ministra Thereza de Assis Moura, julgado em Vinte e um de agosto de Dois mil e quatorze, Diário da Justiça eletrônico de Três de setembro de Dois mil e quatorze ).


Em que pese dispensa da ordem judicial, tais dados são, em nome da privacidade, sigilosos e devem ser assim mantidos pela autoridade requisitante. Essa autorização à autoridade administrativa ( Polícia ) e ao MP de acesso direto a dados, mantidos o sigilo ( em nome do direito à privacidade - *2 vide nota de rodapé ) consagra o sigilo comum ou ordinário.


Já a compreensão do direito à privacidade que, por comando constitucional ou legal, exija autorização judicial prévia, concretiza o sigilo qualificado.


A Lei número Nove mil duzentos e noventa e seis, de Vinte e quatro de julho de Mil novecentos e noventa e seis, regrou as hipóteses e forma da interceptação telefônica, que rapidamente se transformou em um dos instrumentos mais utilizados de investigação policial no Brasil.


A interceptação dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça, podendo ser decretada de ofício pelo juiz, ou a requerimento da autoridade policial ou do MP.


Para a decretação da interceptação de comunicações telefônicas é necessário que haja:


1) indício razoáveis da autoria ou participação em infração penal, inclusive com a qualificação dos investigados ( salvo impossibilidade ), bem como que a 

2) prova não possa ser feita por outros meios disponíveis em casos de

3) infração penal punida com pena de reclusão ( pena máxima de mera detenção não autoriza interceptação telefônica ).


Assim, de acordo com a Lei número Nove mil duzentos e noventa e seis / Mil novecentos e noventa e seis não cabe a determinação judicial de interceptação telefônica se:


1) não houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal;

2) existir outro meio de produção da prova pretendida;

3) for caso de crime punido com pena máxima de detenção.


No caso de notitia criminis ( *3 vide nota de rodapé ) anônima, deve a autoridade policial antes realizar diligências preliminares para, só após, com novos indícios, solicitar a interceptação telefônica ( Habeas Corpus número Noventa e nove mil quatrocentos e noventa, Relator Ministro Joaquim Barbosa, julgado em Vinte e três de novembro de Dois mil e dez, Segunda Turma, Diário da Justiça eletrônico de Primeiro de fevereiro de Dois mil e onze ).


O juiz deve decidir no prazo máximo de Vinte e quatro horas, fundamentando a decisão. O período de interceptação deve ser fixado na decisão, mas não poderá exceder o prazo de Quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Apesar de a lei não estabelecer, expressamente, quantas prorrogações de "Quinze dias", são possíveis, prevalece o entendimento da possibilidade de renovações sucessivas até que a investigação esteja finalizada, desde que as ordens judiciais sejam fundamentadas e demonstrem a indispensabilidade das prorrogações para o deslinde do caso. Nesse sentido, decidiu o STF que " ( ... ) É lícita a prorrogação do prazo legal de autorização para interceptação telefônica, ainda que de modo sucessivo, quando o fato seja complexo e, como tal, exija investigação diferenciada e contínua, ( ... )" ( Inquérito número Dois mil quatrocentos e vinte e quatro, Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em Vinte e seis de novembro de Dois mil e oito, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e seis de março de Dois mil e dez ).


Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao MP, que poderá acompanhar a sua realização. Em vários casos, não há a hipótese do MP ofertar a denúncia, o STF entendeu que esse argumento é superado, pois a denúncia implica "envolvimento próximo do promotor" ( Habeas Corpus número Oitenta e três mil quinhentos e quinze, Relator Ministro Nelson Jobim, julgado em Dezesseis de setembro de Dois mil e quatro, publicado em Quatro de março de Dois mil e cinco ).


Porém, na fase do inquérito policial, pode o próprio MP determinar o arquivamento da peça ( agora decidido internamente no MP, na sistemática do Artigo Vinte e oito automático" após a edição da Lei Anticrime, caso não aceite ter sido mantido alheio à interceptação e a considere prova ilícita, não existindo outra apta a sustentar uma denúncia idônea.


Após, será feita a transcrição das conversas, com foco naquilo que interessa para o caso. Atualmente, há diversas discussões judiciais sobre o dever de transcrição integral do conteúdo gravado das conversas telefônicas e não somente as partes relevantes, em nome da ampla defesa ( *4 vide nota de rodapé ). Porém, o STF decidiu que "só é exigível, na formalização da prova de interceptação telefônica, a transcrição integral de tudo aquilo que seja relevante para esclarecer sobre fatos da causa sub iudice ( *5 vide nota de rodapé )" ( Inquérito número Dois mil quatrocentos e vinte e quatro, Relator Ministro Cezar Peluso, julgado em Vinte e seis de novembro de Dois mil e oito, Plenário, Diário da Justiça eletrônico de Vinte e seis de março de Dois mil e dez ). Nesse mesmo sentido, decidiu o STF que "é desnecessária a juntada do conteúdo integral das degravações das escutas telefônicas realizadas nos autos do inquérito no qual são investigados os ora pacientes, pois bastam que se tenham degravados os excertos necessários ao embasamento da denúncia oferecida, não configurando, essa restrição, ofensa ao princípio do devido processo legal ( *4 vide nota de rodapé ) ( Artigo Quinto, Inciso Cinquenta e cinco, da CF - 88 ). Liminar indeferida" ( Habeas Corpus número Noventa e um mil duzentos e sete - Medida Cautelar, Relator para o Acórdão Ministra Cármen Lúcia, julgada em Onze de junho de Dois mil e sete, Plenário, Diário da Justiça de Vinte e um de setembro de Dois mil e sete.


Também cabe mencionar que a Lei número Nove mil duzentos e noventa e seis / Mil novecentos e noventa e seis permite a interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática, particularmente útil nos casos de correio eletrônico, chats, redes sociais e outras formas de comunicação da internet. Essa previsão legal não viola o direito à privacidade constitucional, que não é absoluto, podendo ser limitado - no caso, pela lei - para que se assegurem os direitos fundamentais de terceiros, vítimas de crimes sujeitos à pena de reclusão ( ou seja, crimes graves ).


Por sua vez, a Lei número Doze mil novecentos e sessenta e cinco / Dois mil e quatorze ( Marco Civil da Internet - MCI ) determinou sigilo qualificado ( ordem judicial ) quanto à entrega de conteúdo das comunicações privadas e para os registros de acesso a aplicações de internet nos mais diversos suportes ( computador, aparelho celular, tablet etc. - Artigo Sétimo, Inciso Terceiro, Artigo Dez, Parágrafos Primeiro e Segundo ). Inicialmente, como não se trata de "interceptação", esses dados estáticos poderiam ser requisitados pela autoridade policial ou pelo MP. Contudo, o legislador entendeu que tais dados hoje representam importante devassa da vida íntima, com envio constante de dados, fotos, vídeos etc. Criou-se um regime especial aos dados armazenados na rede mundial de computadores. Uma mensagem de correio eletrônico exigirá ordem judicial para ser lida por uma autoridade policial; já a correspondência tradicional pode ser violada diretamente por uma autoridade administrativa ( caso dos presídios -  * 6 vide nota de rodapé ).


Por sua vez, constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei ( o chamado "grampo telefônico", com pena de reclusão, de dois a quatro anos, e multa ).



Em Dois mil e oito, no bojo de diversas críticas de advogados criminalistas sobre o uso descontrolado de interceptações telefônicas na investigação criminal, o Conselho Nacional de Justiça ( CNJ ) editou a Resolução número Cinquenta e nove, regrando a matéria em especial quanto ao trâmite burocrático dos pedidos. No mesmo ano, o Procurador-Geral da República ( PGR ) considerou que tal deliberação administrativa foi além da regulamentação da Lei número Nove mil duzentos e noventa e seis / Mil novecentos e noventa e seis e ingressou com a Ação Direita de Inconstitucionalidade ( ADI ) número Quatro mil cento e quarenta e cinco perante o STF. O STF declarou somente a inconstitucionalidade do Artigo treze, Parágrafo Primeiro, dessa Resolução, que proibia a prorrogação da interceptação durante plantão judiciário ( ADI número Quatro mil cento e quarenta e cinco, redator para o Acórdão Ministro Alexandre de Moraes, julgado em Vinte e seis de abril de Dois mil e dezoito ).     


P.S.:


Notas de rodapé:


* O princípio da reserva de jurisdição, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor contextualizado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/02/direitos-humanos-classificacao-dos-dh.html .


*2 O direito à privacidade no contexto dos Direitos Humanos é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/07/direitos-humanos-o-direito-privacidade.html .


*3 Vieira, Jair Lot. notitia criminis: notificação do crime. Dicionário latim-português : termos e expressões / supervisão editorial - São Paulo : Edipro, Dois mil e dezesseis, Página Duzentos e setenta e quatro.


*4 O direito ao devido processo legal e à ampla defesa, no contexto dos Direitos Humanos, é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2021/06/direitos-humanos-doutrinas-e_28.html .


*5 Vieira, Jair Lot. sub iudice: sob o juiz; dependente de decisão judicial. Dicionário latim-português : termos e expressões / supervisão editorial - São Paulo : Edipro, Dois mil e dezesseis, Página Trezentos e noventa e oito.


*6 O direito ao sigilo de correspondência e a restrição deste direito aos presos, são melhora contextualizados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2023/08/direitos-humanos-o-direito-privacidade_9.html

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