A defesa da democracia no Mercado Comum do Sul ( Mercosul ), conforme os Protocolos de Ushuaia Um, Dois ( * vide nota de roda pé ) e Protocolo de Assunção ( *2 vide nota de rodapé ), bem como dos demais tratados institutivos, dependem da ação dos Estados Partes, que podem apontar a existência da ruptura - ou não - do regime democrático, acionando-se as sanções lá previstas.
Assim, inicialmente a cláusula democrática do Mercosul ( *2 vide nota de rodapé ) depende da avaliação discricionária dos demais Estados sobre a situação de preservação da democracia em um dos membros. Esse tipo de mecanismo de proteção de Direitos Humanos ( DH ) é denominado mecanismo político, sendo criticado justamente por permitir uma apreciação discricionária dos demais Estados sobre a existência - ou não - de violação de DH no Estado infrator, o que pode gerar seletividade e ambiguidade. Por outro lado, o Mercosul já conta com sistema de solução de controvérsias próprio, capitaneado pelo Tribunal Permanente de Revisão ( TPR, regulado pelo Protocolo de Olivos, de Dois mil e quatro ) ( *3 vide nota de rodapé ), no qual há possibilidade de apreciação jurídica do uso dos mecanismos de proteção da democracia.
A Ação dos Estados e do TPR no caso impeachment do Presidente Lugo", em Dois mil e doze, foi importante teste sobre a viabilidade do uso da "cláusula democrática" do Mercosul. O caso diz respeito ao processo de impeachment e a destituição do Presidente Lugo em Dois mil e doze no Paraguai. tendo em vista a rapidez do processo de impedimento, com restrições á ampla defesa e contraditório do Presidente Lugo e com base nas disposições do primeiro Protocolo de Ushuaia, o Paraguai foi suspenso, em decisão datada de Vinte e nove de junho de Dois mil e doze, do direito de participar dos órgãos do Mercosul e suas deliberações até que restabelecida a ordem democrática no país. Somente em Doze de julho de Dois mil e treze, o Mercosul decidiu retirar a sanção contra o Paraguai, a partir de Quinze de agosto daquele mesmo ano, em virtude da eleição do novo Presidente Horácio Cartes.
O "caso Lugo" mostra as divergências geradas pela apreciação discricionária da situação de DH realizada a partir do mecanismo internacional político: se, por um lado, o Mercosul reagiu, partindo da sua constatação de ruptura do regime democrático, a Organização dos Estados Americanos ( OEA ) não o fez, apesar de ter acompanhado a crise ( *4 vide nota de rodapé ). Para aumentar a complexidade da temática, a União Sul-Americana de Nações ( Unasul ) também considerou que houve deposição ilegítima do Presidente eleito e suspendeu o Paraguai das atividades daquela organização internacional ( *5 vide nota de rodapé ).
Além disso, o impeachment do Presidente Lugo do Paraguai mostrou um hibridismo do modelo mercosulino de promoção da democracia, que, apesar de ser essencialmente política, possui certa tonalidade "judiciária". Essa tonalidade de mecanismo internacional judiciário é vista na possibilidade de revisão jurídica, pelo sistema de controvérsia do Mercosul, das sanções impostas ao Estado no qual houve a pretensa ruptura democrática. Ou seja, a discricionariedade típica do mecanismo político pode ser contrariada pela força do Direito Internacional, graças á revisão jurídica dessas sanções.
No caso, o Paraguai reagiu à deliberação de suspensão feita pelos demais Estados e os acionou perante o TPR do Mercosul em Nove de julho de Dois mil e doze, cuja competência é regulada pelo Protocolo de Olivos. O Paraguai sustentou, quanto à sua suspensão, a ocorrência de vícios formais, como a ausência de legitimidade dos Chefes de Estado para adotarem referidas decisões e a não realização das consultas previstas no Artigo Quarto do Protocolo de Ushuaia, bem como matéria de mérito, ponderando que não houve ruptura da ordem democrática do país com a deposição de seu presidente.
No que tange à aplicação do Protocolo de Ushuaia, Argentina, Brasil e Uruguai defenderam-se alegando que o TPR não poderia julgar o mérito em razão de sua incompetência ratione materiae ( *6 vide nota de rodapé ) por se tratar de um "litígio de natureza política" não alcançado pelo sistema de solução de controvérsias previsto no Protocolo de Olivos. Subsidiariamente, sustentaram os três Estados réus não ser aplicável o Protocolo de Olivos para dirimir conflitos que resultam da aplicação do Protocolo de Ushuaia.
Contudo, o TPR decidiu, em sede preliminar e unanimemente, pela competência ratione materiae daquela Corte para apreciar controvérsia referente à legalidade dos procedimentos previstos no Protocolo de Ushuaia, uma vez que o TPR poderia decidir sobre controvérsias afetas a qualquer norma do Mercosul e não somente sobre lides comerciais ( *7 vide nota de rodapé ).
Não obstante, por maioria, o TPR lembrou que o Protocolo de Olivos permite o acesso direto ao TPR, sem a fase anterior de tribunal ad hoc somente quando os Estados partes na controvérsia concordem expressamente em submeter o litígio diretametne em única instância ao TPR ( Artigo Vinte e três do Protocolo de Olivos ). Sem o consentimento dos demais Estados Partes e ainda considerando que o Paraguai não demonstrou a tentativa de realização de negociações diretas com os demais Estados 9 outra exigência do sistema de controvérsias do Mercosul ), o TPR entendeu não ser possível conhecer diretamente o mérito da demanda.
O Laudo número Um / Dois mil e doze do TPR indica, então, alguns passos para o controle da ação dos Estados contra a ruptura democrática ou mesmo graves e sistemáticas violações dos DH em situações de crise institucional:
i) exigência de comprovação de negociações infrutíferas,
ii) demanda de criação de tribunal arbitral ad hoc ou
iii) consenso para que a demanda arbitral seja instaurada diretamente do TPR.
Em Dois mil e dezessete, ocorreu outro caso de invocação da "cláusula democrática do Mercusul" que gerou a suspensão da Venezuela por ruptura da ordem democrática. Esta decisão impôs a suspensão de todos os direitos e obrigações inerentes à condição de Estado Parte do Mercosul por parte da República Bolivariana da Venezuela, em conformidade com o disposto no Artigo Quinto, Parágrafo Segundo, do Protocolo de Ushuaia Um ( *8 vide nota de rodapé ). A decisão foi, como exige o Protocolo de Ushuaia Um, por unanimidade dos demais membros plenos ( Brasil Argentina, Uruguai e Paraguai ). O motivo foi a implementação do processo constituinte na Venezuela em meio a acusações de fraude e desbalanceamento das circunscrições eleitorais ( para dar maior peso a regiões de eleitores a favor do governo ) na escolha dos constituintes, bem como pela repressão à oposição.
Por outro lado, na hipótese de os Estados mercosulinos - por razões geopolíticas - ignorarem a ruptura democrática ou graves e sistemáticas violações do sistema da Convenção Americana de Direitos Humanos ( CADH ) ( *9 vide nota de rodapé ) em relação aos quatro Estado do Mercosul que a ratificaram, bem como reconheceram a jurisdição contenciosa obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos ( Corte IDH ) ( *10 vide nota de rodapé ) ( Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai ). Por exemplo, pode a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ( Comissão IDH ) ( *11 vide nota de rodapé ), a partir de petição individual ou interestatal, considerar que houve ruptura democrática e provocar a Corte IDH.
Quanto á Venezuela, que denunciou a CADH em Dois mil e doze, cabe a utilização do sistema da Carta e Organização dos Estados Americanos ( *12 vide nota de rodapé ), podendo a Assembleia Geral suspende o Estado no qual tenha existido a ruptura da ordem democrática ( maioria exigida de dois terços ). também cabe a edição de medida cautelar por parte da Comissão IDH, que não tem força vinculante. É também possível acionar a jurisdição consultiva da Corte IDH, para que seja, por exemplo, interpretada a compatibilidade do regime de exceção ou mesmo dos atos que ocasionaram a ruptura democrática com a CADH. A jurisdição consultiva, apesar de não vinculante, é importante instrumento de interpretação do real alcance e sentido das normas de DH aplicáveis nas Américas. A Corte IDH pode interpretar qualquer dispositivo de DH que incida sobre Estados Americanos, sendo que a Venezuela permanece como membro da OEA. Caso a opinião consultiva da Corte IDH aponte ruptura do regime democrático, os Estados do Mercosul podem ser sensibilizados a fazer valer a cláusula democrática.
Quadro sinótico
Órgãos e mecanismo de proteção da democracia no Mercosul
Entes envolvidos: Estados e Tribunal Permanente de Revisão
Objetivo:
a) Cabe aos Estados da partida ao trâmite da "cláusula democrática do Mercosul", podendo inclusive suspender o Estado faltoso.
b) Cabe ao TPR do Mercosul, no contexto das regras de solução de controvérsia, analisar juridicamente a existência dos pressupostos para a implantação da cláusula democrática.
Essência da atuação desses entes: Os estados avaliam, discricionariamente, se houve ou não ruptura democrática. O TPR avalia se a aplicação das sanções oriundas da ruptura do regime democrático foi bem realizada.
P.S.:
Notas de rodapé:
*Os Protocolos de Ushuaia são melhor detalhados em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-o-respeito-aos-dh-como.html .
*2 O Protocolo de Assunção é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-protocolo-e-mais-uma.html .
*3 O Protocolo de Olivos é melhor detalhado em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/10/direitos-humanos-mercosul-tem-tratado.html .
*4 Sobre a postura distinta da OEA durante a crise do impeachment do Presidente Lugo, conferir em MCCOY, Jennifer L. "Chalenges for the Collective Defense of Democracy on teh Tenth Anniversary of the Inter-American Democratic Charter". In: Latin American Policy, volume Três, número Um, Páginas trinta e três a cinquenta e sete. Disponível em < http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/22343.pdf >. Último acesso em: Dez de agosto de Dois mil e vinte.
*5 A Unasul também busca a promoção da democracia nos seus Estados Partes. O Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia, assinado na Quarta Reunião do Conselho de Chefes de Estado da Unasul, realizada em Georgetown, Guiana, em vinte e seis de novembro de Dois mil e dez, prevê mecanismo concreto para a proteção, defesa e eventual restauração da democracia. tal qual o Protocolo de Ushuaia Dois, há a previsão de adoção de medidas como o fechamento de fronteiras terrestres, limitação o suspensão do comércio, tráfego aéreo e marítimo, comunicações, provimento de energia e outros serviços, entre outras medidas contra o Estado no qual houve a ruptura democrática. O Brasil, em Dois mil e dezenove, denunciou o tratado da Unasul, deixando de ser membro de tal organização. Tal denúncia - determinada por ação unilateral da Chefia de Estado ( então presidente Jair Messias Bolsonaro ) foi questionada no Supremo Tribunal Federal ( STF ).
*6 ratione materiae: em razão da matéria. Dicionário latim - português : termos e expressões / supervisão editorial Jair Lot Vieira - São Paulo : Edipro, Dois mil e dezesseis.
*7 Tribunal Permanente de Revisão, "Laudo en el procedimiento excepcional de urgência solicitado por la República del Paraguay en relación com la suspensión de su participación en los órganos de Mercado Común del Sur ( Mercosur ) y la incorporación de Venezuela como miembro pleno", Laudo número Um / Dois mil e doze, de Vinte e um de julho de Dois mil e doze. Disponível em: < http://wwwmercosur.int/innovaportal/file/440/1/laudo_01_2012_pt.pdf >. Último acesso em: Quinze de setembro de Dois mil e vinte.
*8 In verbis: Artigo Quinto ponto Dois "Tais medidas compreenderão dese a suspensão do direito de participar no diferentes órgãos dos respectivos processos de integração até a suspensão dos direitos e obrigações resultantes destes processos.
*9 A Convenção Americana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/01/direitos-humanos-convencao-americana.html .
*10 A Corte Interamericana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-corte-interamericana.html .
*11 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/11/direitos-humanos-comissao-emite.html .
*12 A Carta da Organização dos Estados Americanos é melhor detalhada em: https://claudiomarcioaraujodagama.blogspot.com/2022/02/direitos-humanos-consagracao-da-ordem-e.html .
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